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Apenas dois exemplares do Diálogo de Bonecas foram identificados na fase de seleção do material. Ambos estavam na biblioteca de Cristina Florentino, autora de um dos trabalhos utilizados nesta dissertação, que os cedeu para a pesquisa. O dicionário foi produzido pelo grupo ASTRAL, a primeira organização de travestis do Brasil.

Jovanna Baby, em entrevista a Gilson Carrijo (2012b), situa o surgimento do movimento de travestis com o Encontro Nacional de Travestis e Liberados (ENTLAIDS) e o financiamento do ISER, mesma instituição responsável pelo subsídio para a publicação do Diálogo de Bonecas:

[em 1993] Não se chamava ainda ENTLAIDS, começou como Encontro Nacional de Travestis e Liberados (ENTL) e aconteceu no Rio de Janeiro. Neste primeiro encontro, não houve financiamento. Naquele momento, não havia ONG composta somente por travestis, foi feito o convite para ONGs gays e elas custearam seus representantes. Participaram 06 travestis e outros representantes das cidades de São Paulo, Espírito Santo, Minas Gerais, Paraná e do próprio Rio de Janeiro. [...] O encontro aconteceu na Ladeira da Glória e, pasme, foi sediado por uma instituição religiosa, o Instituto Superior de Estudos da Religião, ISER, ligado à Diocese do Rio de Janeiro.

[...] Foi curioso, pois o Instituto possuía um projeto que atendia as prostitutas e nós [equipe do projeto e Jovanna] nos conhecemos em uma área de prostituição do Rio e, a partir daí, eles começaram a atender também as travestis. O Instituto me convidou para trabalhar como monitora na prevenção de aids. Fiquei responsável por fazer o contato (interface) com as

53 travestis. No primeiro mês de trabalho, já se pensava em um mecanismo para ajudar as travestis a sair daquela situação [de violência policial], que era horrível. Isso foi entre 1990 e 1991, antes do primeiro encontro. O ENTL aconteceu dois anos depois, após termos fundado a ASTRAL – Associação de Travestis e Liberados do Rio de Janeiro. (CARRIJO, 2012b, p. 253). O Diálogo de Bonecas foi publicado pela ASTRAL, com recursos do projeto Saúde na Prostituição, em 1995, ano em que aconteceu o segundo ENTLAIDS. Segundo Jovanna Baby, em entrevista que irá compor o terceiro capítulo, o documento circulou no ENTLAIDS, que ocorreu no Rio de Janeiro no ano da publicação do documento. Ela assinalou que a tiragem foi pequena, não sabendo precisar o número de exemplares, e que foram distribuídos entre as instituições presentes.

A publicação do dicionário reitera não somente a relação entre o poder público e o movimento social, mas também a presença de organização e organismos internacionais, uma vez que o dicionário foi financiado pelo projeto que recebia recursos através do convênio com o Ministério da Saúde e pela Agência de Cooperação Internacional Sueca (ABF). Essa interlocução sugere uma questão fundamental que discutiremos no final do capítulo: o impacto das ações de prevenção na elaboração do dicionário e a decisão de quais termos e palavras deveriam circular através dele.

O Diálogo de Bonecas está organizado em dezesseis páginas e possui 232 palavras com seus respectivos significados. A introdução, escrita pelo antropólogo Raul Lody34, evidencia o reconhecimento da violência e da linguagem como forma de

proteção do grupo, sob o título: “Dialeto criado pelos travestis da prostituição para se defenderem dos ataques sofridos”.

O antropólogo nomeou o documento de glossário, ainda que reconhecesse nele a potencialidade de ser compreendido como dicionário. Reafirmou a influência do iorubá- nagô no dialeto das travestis, mostrando a relação de troca entre esse grupo e as religiões afro-brasileiras, como já apontado neste trabalho e identificado por outros pesquisadores:

Este glossário, de vocação para dicionário tenta traduzir o ideário das palavras e seus fortes significados sociais e culturais. E nele, observo algumas apropriações de vocábulos recorrentes nos terreiros de Candomblé, Mesclado, Yorubá ou Nagô com diferenças entre o povo do santo – dos terreiros – e o universo gay. As trocas acontecem em moedas iguais. Os significados têm valores e sentidos comuns. São referências de integração em prol de integridades que compõem entendimentos de gênero, de raça, de grupo, de hierarquia, de cultura, de civilização. É fascinante a variedade de formas associativas vindas da linguagem gay, no caso eminentemente urbana.

54 O valor de cada palavra incluída no seu contexto traz riqueza sociológica que motivará futuros estudos, certamente. (LODY, 1995, p. 2).

Raul Lody se referiu à linguagem gay em um dicionário escrito por e para travestis. Como já citamos anteriormente, travesti, e posteriormente transexual, são categorias historicamente recentes, e o uso da palavra gay para designar travestis naquele período era recorrente, assim, o tratamento dado às travestis era comumente no masculino. Segundo Jovanna Baby, a introdução foi escrita pelo antropólogo Raul Lody a pedido da coordenadora do projeto, Célia Szterenfeld.

As interlocutoras desta pesquisa perceberam o deslocamento do uso do pronome masculino para o feminino como resultado da constituição da resistência desses sujeitos, como afirma Keila Simpson: “Você pode pensar o Diálogo de Bonecas foi publicado em 95 e o movimento se constitui em 93, têm dois anos. E mudou completamente, porque já é pelas travestis, com as travestis, com o gênero feminino.”35 De acordo com

Jovanna Baby, no período de publicação do dicionário os homossexuais e as travestis ainda eram lidos/as sob o mesmo prisma, portanto algumas palavras do bajubá se referiam tanto às travestis como aos homossexuais:

O adé era usado pra travesti, porque todo mundo era no bojo de homossexual. Todo mundo era nesse bojo. As travestis além de serem identificadas por adé também eram identificadas como mona de equê, que é mulher de mentira. A gente nem discutia transexualidade na época. (Entrevista realizada com Jovanna Baby, em Brasília, 28/11/2017)

O uso do pronome masculino para se referir às travestis na década de 1990 ainda era comum, sobretudo na academia, embora alguns trabalhos já utilizassem o pronome feminino, como na etnografia de Florentino (1998). O trabalho de Florentino tensionou a academia, através das ferramentas da antropologia, a repensar seus próprios termos. A pesquisa de Benedetti (2005), também realizada no campo da antropologia, teve maior circulação e produziu efeitos em relação ao reconhecimento do feminino, através do deslocamento do artigo masculino para o feminino, como aponta o autor:

É relevante esclarecer os motivos que me levam a empregar o substantivo travesti como pertencente ao gênero gramatical feminino. Além das razões que valorizam o próprio processo de construção do gênero feminino no corpo e nas subjetividades das travestis, e que levam em conta a utilização êmica desse termo, usualmente empregado na flexão feminina, há uma justificativa política. O respeito e a garantia à sua construção feminina estão entre as principais reivindicações do movimento organizado das travestis e transexuais. (BENEDETTI, 2005, p. 19).

55 Chama a atenção o fato de Raul Lody ter sido convidado a apresentar o Diálogo

de Bonecas, mas sem nenhuma interface de pesquisa com o tema. Naquele momento,

Hugo Denizart e Hélio Silva eram pesquisadores no Rio de Janeiro, e mantinham relações tanto com o ISER quanto com as travestis.

Raul Lody é reconhecido por sua pesquisa no campo da religião e, mais uma vez, o convite, e consequentemente o aceite para apresentar o documento, apontam para o reconhecimento de que a linguagem das travestis é atravessada por elementos das religiões afro-brasileiras. Este argumento se opõe ao defendido por Kulick, que afirmou não haver relação entre as travestis e as religiões afro-brasileiras (KULICK, 2008). Sobretudo, porque, segundo este autor, até o momento de sua pesquisa não havia qualquer estudo que confirmasse a participação ativa das travestis nas religiões afro- brasileiras, apenas estudos referentes à participação dos homossexuais afeminados. Algumas pesquisas atuais analisaram a presença e relação das travestis e transexuais com terreiros de religiões afro-brasileiras (FERNANDES, 2013; SANTOS, 2013; NASCIMENTO; DA COSTA, 2015; NASCIMENTO, 2016).

Publicado no contexto de enfrentamento da epidemia da aids, o Diálogo de

Bonecas materializa essa preocupação. As palavras e expressões apresentadas se

relacionavam às interações nas situações de trabalho, com a polícia e com os/as agentes responsáveis pelas políticas de prevenção da aids.

O projeto Saúde na Prostituição recrutava as prostitutas e as travestis nas principais zonas de prostituição do Rio de Janeiro, como Praça Tiradentes e Lapa, propondo sua inserção como multiplicadoras, estratégia amplamente conhecida na metodologia de educação pelos pares (CAMPOS DA PAZ, 1993). O projeto foi coordenado por Christopher Peterson, médico, e Célia Szterenfeld, psicóloga, que foi supervisora na publicação do Diálogo de Bonecas e principal articuladora com as travestis.

O trabalho com as travestis, para a difusão de informações sobre HIV/Aids e a distribuição de preservativos, demandava a inserção em territórios específicos, ainda hoje consideradas como “grupo de difícil acesso”36. Naquele momento, o uso do bajubá

pode ter sido interpretado pelos/as agentes como barreira e a proposta de elaboração do

36 Em 2017 o Ministério da Saúde financiou a pesquisa DIVAS, através de uma parceria entre a ENSP/FIOCRUZ, Universidade Johns Hopkins, Departamento de DST/Aids e Hepatites Virais e UNESCO. Foi utilizada a metodologia Respondent-Driven Sampling (RDS), que assume a perspectiva de que membros de uma população de difícil acesso são melhores em recrutar pares de sua população do que outros indivíduos. (Disponível em: http://www.pesquisadivas.com.br/apresentacao.html).

56 documento foi adotada como uma estratégia para aproximação com o grupo. Não passa despercebida a presença no documento de frases com palavras do bajubá, com informações sobre prevenção, sugerindo o uso de preservativo e difusão de informação sobre o HIV/Aids.