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Parte I: Perfil conceitual

Capítulo 3: Natureza da estabilização da tutela antecipada

3.3 Estabilização da tutela antecipada e coisa julgada

3.3.2 Ausência de declaração de direito

Argumento que poderia ser levantado acerca da estabilização da tutela antecipada é a ausência de declaração de direito, ou melhor, a declaração rarefeita que é própria das tutelas sumárias, pois fundada em aparência.

Embora o argumento possa impressionar de início, não parece ser suficiente para objetar a comparação – e até identificação – entre a estabilização da tutela antecipada e da coisa julgada. É que o elemento da sentença que se reveste de coisa julgada variará a depender da posição adotada.

Na posição de Liebman, o que se torna imutável e indiscutível são os efeitos da sentença e daí advém uma séria complicação, uma vez que os efeitos da decisão antecipatória estabilizada se tornam imutáveis após o decurso do prazo decadencial de dois anos, nos termos do art. 304, § 6.º, do CPC/15.

De modo coincidente, para quem adota a teoria de Liebman em sua forma pura, tanto a estabilização da tutela antecipada quanto a coisa julgada incidem sobre os efeitos da decisão.

Assim, a despeito de a Lei dizer não se tratar de coisa julgada, o nome que lhe é atribuído importa muito pouco. O que de fato é relevante é que se trata de uma imutabilidade não passível de revisão em razão do decurso de um prazo processual – o prazo de dois anos previsto no art. 304, §5º, do NCPC.

Cabe relembrar a célebre afirmação de José Joaquim Calmon de Passos ao tratar da coisa julgada no processo cautelar, segundo a qual:

“Essa imutabilidade pode não ser batizada com o nome de coisa julgada, mas que é imutabilidade é. Como chama-la para não colocá-la na nobre família do processo de jurisdição contenciosa? É problema de preferência: Hermengada,

Febronina, Ocridalina, ou coisa parecida. Mas que é mulher como outra é. Ou para ser específico: que é imutabilidade do decidido com repercussão fora do processo cautelar é. E temos dito”293

Por outro lado, para aqueles que seguem Ovídio Baptista da Silva, a imutabilidade da coisa julgada incide sobre o elemento declaratório da sentença, de modo que, diante de sua ausência na tutela antecipada, seria impossível identificar sua estabilização com a coisa julgada.

Já para quem segue a noção de Barbosa Moreira, com a imutabilidade incidindo sobre o conteúdo do comando sentencial, a identificação com coisa julgada, apesar de possível, demanda algum esforço de compatibilização.

Portanto, afirmar que a estabilização da tutela antecipada se diferencia da coisa julgada pela ausência de declaração de direito não põe fim discussão, a não ser a partir de uma concepção de coisa julgada que, ainda que seja consistente e absolutamente respeitável, não é unânime.

Não obstante haja controvérsia acerca de se tratar ou não de coisa julgada, o importante é a concordância sobre a imutabilidade que incide sobre os efeitos da decisão definitivamente estabilizada.294 Leia-se com cautela: não se quer dizer, de modo algum, que a referida imutabilidade (coisa julgada) é efeito da decisão, mas, a contrário, que sobre os seus efeitos incide.

Com essa concordância, a discussão passa a ser terminológica. Que se chame de coisa estabilizada ou coisa definitivamente estabilizada, após o decurso do prazo em que é possível a revisão da decisão. O nome não alterará a natureza jurídica: decisão imutável – porque a via de revisão se encontra preclusa – cujos efeitos transcendem para além do processo em que proferida.

3.3.3 Eficácia negativa e eficácia positiva da estabilização da tutela antecipada

A estabilização da tutela antecipada, após o decurso do prazo de dois anos, impede a revisão dos efeitos da decisão. Embora não pareça ser correto tratar esse fenômeno como coisa julgada, certo é que se trata de uma estabilidade que está destinada a produzir efeitos para além do processo em que

293 CALMON DE PASSOS, José Joaquim. Comentários ao Código de Processo Civil, v. 10, t. 1, p. 237.

294 TALAMINI, Eduardo. Coisa julgada e sua revisão, p. 43-45.

proferida a decisão, uma vez que, não fosse assim, não haveria sentido na extinção do processo e não haveria um prazo para ajuizamento de ação visando a discussão dos efeitos da decisão estabilizada.

Por ser uma estabilidade ou imutabilidade que produz efeitos pamprocessuais, certo é que em alguma medida é vedado aos magistrados reformar, invalidar ou modificar a decisão. Se não é assim imediatamente após a extinção do processo e estabilização da tutela antecipada, certo é que isso ocorre após o decurso do prazo de dois anos.

Há parcela da doutrina295 que não vê essa eficácia na estabilização da tutela antecipada. Ou melhor, não vê que ela possa obstar uma decisão posterior de cognição exauriente sobre o pedido principal, com a reversão dos efeitos concedidos quando da análise do pedido urgente.

Com o devido respeito, tal posicionamento comporta críticas.

É que, conquanto a estabilização da tutela antecipada ainda tivesse alguma utilidade caso pudesse ser revista a qualquer tempo (respeitados os prazos do direito material), por impor uma inversão no ônus de iniciativa do contraditório, certo é que o prazo de dois anos para discussão dos efeitos da tutela antecipada estabilizada seria uma previsão supérflua e carente de qualquer sentido. Se há um prazo para discussão da tutela antecipada após sua estabilização, certo é que após seu decurso ela não pode ser modificada.

Chame-se isso de coisa julgada ou não, a tutela antecipada antecedente, após o decurso do prazo do art. 304, § 6.º, do CPC/15 ganha imutabilidade, mesmo diante de decisões fundadas em cognição exauriente.

É preciso, então, investigar os efeitos positivos e negativos da coisa julgada para averiguar se a estabilização da tutela antecipada possui alguma dessas eficácias.

A eficácia negativa “consiste na proibição (...) de que qualquer órgão jurisdicional torne a apreciar o mérito de objeto do objeto processual sobre o qual

295 “Apesar disso, diante da perda do direito de rever, reformar ou invalidar a decisão que antecipa os efeitos da tutela, preserva-se a possibilidade de obtenção de decisão prestadora de tutela definitiva de natureza certificadora, ainda que eventualmente essa decisão se apresente incompatível com a decisão estabilizada. Ou seja, ainda que ‘superestabilizados’ os efeitos da decisão, o seu teor ainda pode ser objeto de debate, porque coisa julgada nenhuma sobre ele terá sido formada” LIMA, Bernardo Silva de; EXPÓSITO, Gabriela. “Porque tudo que é vivo, morre” comentários sobre o regime da estabilização dos efeitos da tutela provisória de urgência no novo CPC, p. 185.

recai a coisa julgada”.296 Esse efeito negativo se aproxima “do princípio mais amplo do ne bis in idem, impondo uma vedação de outro julgamento sobre o mesmo tema”.297 É uma verdadeira vedação a uma nova análise do mérito por outros órgãos jurisdicionais, consistindo, nesse sentido, em pressuposto processual negativo.298

A eficácia negativa veda um novo julgamento, “é um efeito que visa a impedir que o processo se desenvolva e que a tutela jurisdicional seja prestada novamente”299 e se manifesta quando a coisa julgada é invocada como matéria de defesa pelas partes.

Na estabilização da tutela antecipada é possível enxergar uma manifestação dessa eficácia negativa, uma vez que não poderá outro magistrado decidir aquele pedido urgente novamente.

No que toca a eficácia positiva, parece ser mais problemática a questão.

A eficácia positiva é aquela pela qual “impõe-se a obediência ao julgado como norma concreta indiscutível, e então o que foi decidido passa a ser considerado vinculante não só naquele processo, mas em outros processos posteriores, quando nestes venha a ser alegada uma questão prejudicial já decidida, com força de coisa julgada no processo anterior”.300

A eficácia positiva da coisa julgada “atine à possibilidade de invocação da coisa julgada como ponto de apoio para uma nova ação. Vale dizer, a eficácia positiva da coisa julgada ocorre quando a parte alega na causa de pedir de uma nova ação a indiscutibilidade de determinada questão decidida com força de coisa julgada”.301

“O decisum (resultado) sobre o qual recai a coisa julgada terá de ser obrigatoriamente seguido por qualquer juiz, ao julgar outro processo, entre as partes, cujo resultado dependa logicamente da solução a que se chegou no processo em que já houve coisa julgada material”.302

296 WAMBIER, Luiz Rodrigues; TALAMINI, Eduardo. Curso avançado de processo civil, vol. II p.

809.

297 CABRAL, Antonio do Passo. Coisa julgada e preclusões dinâmicas, p. 102.

298 TALAMINI, Eduardo. Coisa julgada e sua revisão, p. 130.

299 MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz; MITIDIERO, Daniel. Novo curso de processo civil: tutela dos direitos mediante procedimento comum, vol. II, p. 634.

300 CABRAL, Antonio do Passo. Coisa julgada e preclusões dinâmicas, p. 103.

301 MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz; MITIDIERO, Daniel. Novo curso de processo civil: tutela dos direitos mediante procedimento comum, vol. II, p. 635.

302 TALAMINI, Eduardo. Coisa julgada e sua revisão, p. 130.

Ainda que possa haver discussão a respeito, aprece que ao menos nos efeitos da estabilização da tutela antecipada há uma vinculação dos magistrados, inclusive nas decisões fundadas em cognição exauriente, se posteriores ao prazo em que é possível discutir a estabilização da tutela antecipada.

Não é que não seja possível decisão reconhecendo a inexistência – ou a existência em extensão diversa – do direito satisfeito pela medida antecipatória antecedente definitivamente estabilizada. É possível a discussão sobre o mérito do processo que se seguiria ao procedimento antecedente caso não houvesse a estabilização, sobretudo quando esse reconhecimento for questão prejudicial em um novo processo. O que deve ser respeitado são os efeitos, vale dizer, mesmo que se reconheça que o direito não merece tutela jurisdicional, a medida satisfativa concedida e definitivamente estabilizada não poderá ser atingida por esse reconhecimento.

Essa vinculação dos futuros magistrados que venham a ter contato com a causa é característica essencial da coisa julgada, pois “é sempre a autoridade da coisa julgada que faz o juiz ficar vinculado ao conteúdo do comando anterior seja para negar novo julgamento, seja para decidir tomando aquele comando como premissa necessária”303 e esse fenômeno se apresenta, em alguma medida, na estabilização da tutela antecipada. As diferenças decorrem da distinção entre o comando sobre o qual incidiu a estabilidade.