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2. Pesquisando sobre o tema e delineando o problema investigado

1.3 Autismo e família na psicanálise

Com o intuito de retomar e aprofundar, não de repetir, tornamos a dizer que a criança humana, diferentemente da maioria dos animais, não nasce pronta para sobreviver. Sozinha, não sobrevive. Ela depende da ajuda de cuidadores. Necessita da presença de um outro que a alimente, que se ocupe dela, possibilitando que um psiquismo se constitua nas relações (SILVA, A., 1997).

Lacan (1979) ressalta a importância do Outro na constituição do aparelho psíquico. “É a partir da relação com esse Outro que se inscreverão as primeiras marcas constituintes do aparelho” (RIBEIRO, 2005, p. 48). Para além do desamparo, da dependência de um ponto de vista de sobrevivência, há uma carência

[...] de todo ser que, para se constituir como sujeito, terá que se fazer representar no campo do Outro, na linguagem. Os sujeitos humanos precisam articular sua demanda em palavras e, para isso, é necessária a intervenção de um Outro que interprete seu grito, transformando-o em mensagem; um Outro que, com suas palavras, suas próprias demandas, irá dar sentido a estas primeiras manifestações da criança, transformando o grito em apelo. Para além do alimento, o que esse primeiro Outro irá ofertar à criança são palavras, significantes (RIBEIRO, 2005, p. 48).

O grito do nascimento é transformado por aquele que ouve e coloca-se como destinatário, em ato. O grito é ouvido pela mãe (Outro materno) como apelo. Esse ato é fundador, pois “a mãe atribui ao grito um estatuto de mensagem” e o bebê é “promovido ao estatuto de sujeito falante” (CULLERE-CRESPIN, 2004, p. 41, 42).

A mãe, aí como Outro Primordial, exercendo os cuidados com o bebê, exerce- os como detentora de um saber, e sustenta uma constelação simbólica. É a partir dessa rede simbólica que um bebê pode constituir-se psiquicamente. A função deste Outro está para além de suprir as necessidades vitais, colocando o bebê numa posição de real dependência e inserindo-o em uma rede com um saber simbólico (BERNARDINO et al., 2008).

Quando falamos em Outro materno, ressaltamos, nos referimos a uma função que pode ser exercida pela pessoa da mãe ou por quem quer que exerça essa função junto à criança. Mas é na relação com o Outro que se dá ou não o nascimento do sujeito. É pelo investimento libidinal nos cuidados maternos que o bebê começa “a criar sua dimensão de sujeito unificado” (SILVA, M., 1997, p. 74). Para abrigar a subjetividade, o corpo se constitui como “representação de significantes”.

“Todo filho evoca em seus genitores a própria história. Ocorre um reencontro de si neste ser que convive com eles. Desdobra-se um projeto com o filho e pelo filho” (ARIAS, 1999, p. 294).

Mas quando a criança “não é normal, a criança é sentida como „um intruso‟. [...] Um projeto se quebra irremediavelmente” (ARIAS, 1999, p. 295). Não será indiferente para os pais, a família ou a sociedade, uma criança marcada como

diferente. A chegada deste “ser intruso” “quebra o narcisismo6 parental” (ARIAS, 1999, p. 295). Essa fratura dá-se no equilíbrio narcísico por um não preenchimento do filho com relação a um ideal formado pelos pais. Em outras palavras, há dificuldade no estatuto da criança como representação dos pais e da cultura, como lugar de realização daquilo que os pais não realizaram, rumo a um ideal de civilização (VORCARO, 1999).

Um filho com dificuldades, sobretudo com deficiência, pode ter consequências também sobre a mãe. Pelas argumentações anteriores, pode ocorrer a não instituição da maternidade nesta mulher, delegando à equipe médica a maternagem de seu filho, destituindo-se do lugar de mãe (BRAUER, 1998).

Jerusalinsky (1984) considera que o aparecimento tanto de traços quanto de quadros autistas está vinculado ao desequilíbrio do encontro do agente materno com a criança.

O narcisismo do pai, sendo atingido pelo Autismo do filho, traz como consequências um não-investimento libidinal (ROCHA, 1997). Ainda em Rocha (1997, p. 21), questiona-se: “Será que a mãe ou o pai terão a disponibilidade necessária para esse bebê que exige mais, que não se mostra tão encantado nem encantador, que não seduz tanto?” O bebê teria a capacidade de devolver ou suscitar a maternagem em seus pais, as funções parentais, a transformação deste homem em pai e desta mulher em mãe (ROCHA, 1997). Mas nem sempre!

Cullere-Crespin (2004) fala sobre uma “catástrofe subjetiva”, um desinvestimento do bebê real, que pode ser provocada por fatores da criança, dos pais ou do ambiente, que determinaria um “estado de sideração”, impedindo os pais de se comportarem com aquela criança como com os outros. As mães perdem suas capacidades maternantes diante dessa criança nesse “estado de sideração” que as impede de funcionar como numa espécie de “destituição recíproca”.

Importantíssimo ressaltar que considera-se os pais em sua dimensão simbólica: não se trabalha com os pais reais, “e sim com as funções paterna e materna, que não estão necessariamente coladas respectivamente ao pai ou à mãe” (KUPFER, 2002, p. 119).

6 Termo utilizado por Freud pela primeira vez em 1910. Refere-se ao mito de Narciso, pelo amor à sua própria imagem. Entre os vários sentidos, narcisismo pode ser visto como uma identificação, a interiorização de uma relação. Lacan (1949) relaciona o narcisismo à fase do espelho (LAPLANCHE; PONTALIS, 1988).

Kupfer (2001) sugere que a relação estabelecida por Kanner entre a criança autista e traços patológicos maternos, implicou claramente as mães na constituição da patologia. Continuando no pensamento de Kupfer, as reações adversas para desculpabilizar as mães, parecem ter gerado um movimento de tirar-lhes a responsabilidade do destino subjetivo do filho. A autora relaciona essa forma de pensar e conduzir as reflexões sobre a etiologia do autismo ao contexto da sociedade contemporânea que, cada dia mais, apresenta dificuldades em assumir responsabilidades sobre as gerações futuras.

Léo Kanner, mesmo estabelecendo relação entre as características dos pais e a etiologia do autismo, afirmou a supremacia do biológico e do inato, pois acreditava ser difícil atribuir todo o quadro às relações parentais. Ao estabelecer essas primeiras relações, tornaria os pais culpados, o que trouxe, mais tarde, revolta e inaceitação deste lugar tão duro: o de mães “frias”. Em 1946, Kanner escreve “Em defesa das mães”. Ao afirmar a patologia como inata, ele, então, desresponsabilizou os pais e desimplicou-os do destino subjetivo de seus filhos, como enfatizou Kupfer (2001).

Bettelheim, com base nos estudos de Spitz, “atribuía a etiologia do Autismo à impossibilidade da mãe de responder às demandas do seu bebê, privando-o da sua presença e do seu investimento, indispensáveis à constituição do eu” (CAVALCANTI; ROCHA, 2002, p. 63). Essas incapacidades maternas levaram-no a defender a separação do convívio entre os pais e a criança. Assim, as crianças teriam mais condições de se restabelecer em outro ambiente.

Mas Kanner, no texto de 1968, abandonou a pesquisa psicodinâmica, criticou o livro de Bettelheim, A Fortaleza Vazia, e disse que as mães não poderiam ser acusadas pelo isolamento autista da criança; que era difícil atribuir o isolamento às primeiras relações parentais (TAFURI, 2003, p. 122).

Já Mahler tentava tratar mãe e filho simultaneamente, por estar convencida da importância da relação simbiótica mãe-bebê na unidade original (MAHLER, 1965 apud BETTELHEIM, 1987, p. 439).

Mas a psicanálise entende esse quadro autístico como efeito de uma relação patogênica mãe-filho e não culpa, mas responsabiliza a mãe, pergunta “[...] a respeito da parte que lhe cabe na criação de seus filhos” (KUPFER, 2001, p. 51). Responsabilizar “significa engajá-la neste movimento de resgate do que não pôde

acontecer quando seu filho ainda era um bebê [...]” (KUPFER, 2001, p. 52), seja por limitações do filho ou da mãe.

O fato é que o diagnóstico de Autismo impacta de tal forma aqueles que convivem com a criança, que muitas vezes passam a tratá-la de forma diferenciada. São impactadas pelo Autismo da criança, passando a vê-la através de sua patologia, de suas limitações e características, comprometendo seus cuidados e sua vinculação com a criança. O Autismo pode, mesmo, levar à ruptura entre os membros no seu contexto familiar. Medo, constrangimento, estresse, são comuns aos pais.

Vários estudos, entre eles os de Fávero e Santos (2005) e Schimidt e Bosa (2003), investigaram o impacto do Autismo na família e o estresse gerado. Ambos evidenciam a ocorrência de alterações na dinâmica familiar e identificam estressores parentais crônicos que interferem no cotidiano dessas famílias e cuidadores, identificando tanto agentes estressores advindos da própria situação dos filhos, como a alta demanda, a agressividade; quanto advindos da comunidade, como as reações, os limitados recursos de apoio e as renúncias advindas da situação.

Pensar o Autismo como um modo de subjetivação, pensar o sujeito em suas relações tão singulares com o meio e escutá-lo em seu sofrimento, são algumas das funções da psicanálise.

Na intenção de resgatar essas relações, a psicanálise vem implicar essas famílias na responsabilização por seus filhos, tão importante neste papel de dar à criança uma pertinência, um lugar de filho e, juntamente com a escola, um lugar de aluno.

Qualquer que seja a origem, o Autismo na criança traz efeitos danosos nos pais. O trabalho psicanalítico com os pais visa avaliar as transformações ocorridas no seio familiar e tornar possível refletir os sentimentos dos mesmos diante do filho, pois seus sentimentos interferem na sintomatologia da criança e na estruturação de toda a família (TAFURI, 2002).

Cavalcanti (2008) relata exemplos de efeitos nas famílias após o impacto do diagnóstico. Entre eles, há pais que deixam de falar com seus filhos pela sensação de que eles não seriam compreendidos pela criança. As concepções formuladas sobre o que é Autismo traz consequências impactantes na relação com a criança. Em outro exemplo, Cavalcanti (2008) refere o relato de uma mãe que afirmou, após

o diagnóstico, terem, os pais, passado a ver tudo o que era Autismo, e deixado de ver a criança, o filho.

Ilustrando, ainda, Reis (2003, p. 6) reflete sobre a possibilidade de relação entre o Autismo e a função materna visto a psicanálise entender o sujeito “dependente de uma exterioridade simbólica que possa iniciar sua humanização”. Ela busca investigar o que está envolvido com a articulação inconsciente entre função materna e Autismo. Em seu estudo, parte da construção da cultura no processo civilizatório, limitando, muitas vezes, o destino e a função da mulher à reprodução de valores sociais, morais, éticos e traz a análise de 3 casos clínicos, 2 deles publicados por Jerusalinsky e 1 por Laznik-Penot, de crianças atendidas com suas mães pelo viés da psicanálise freudolacaniana. Observa que mudanças ocorrem após o nascimento de um filho, na transformação de mulher em mãe, quando pode ser revivida uma identificação com sua própria mãe. Ressalta que a constituição subjetiva feminina se dá além das determinações culturais, materiais ou metafísicas, estando, o inconsciente, no centro dessa estruturação. Embora as investigações não tenham resultado em certezas, mantém um espaço aberto a tratamentos que se direcionem às crianças e às famílias, reafirmando o que disse Laznik-Penot (1997) acerca de um círculo vicioso de desorganização da mãe e não resposta do bebê que deve ser interrompido.

Historicamente, a relação da psicanálise com os pais mudou. Klein, na década de 30, não estabeleceu relação analítica com os pais, considerava que a presença no tratamento interferia negativamente na relação analítica transferencial. Quanto maior a neutralidade, não sendo contaminada pelos dados dos pais, mais chance de analisar o inconsciente da criança (TAFURI, 2002). Mesmo anos mais tarde, “[...] os pais eram mantidos longe do tratamento. Consideravam-se quaisquer encontros com eles como uma invasão do espaço psíquico da criança” (ROSENBERG, 2002, p. 55).

Françoise Dolto, no entanto, em caso publicado em 1984, não responsabilizou os pais pelo isolamento autista do filho. “Os pais foram ouvidos como uma forma de conversarem sobre eles mesmos e sobre o filho, e para poderem expressar suas angústias mais arcaicas [...]” (TAFURI, 2002, p. 51).

Mesmo em não se tratando, neste trabalho, de atividade clínica, ressaltamos algumas posições acerca da relação entre psicanalistas e pais, reconhecendo que há leituras clínicas muito diferentes. Rosenberg (2002), por exemplo, mesmo com

formação de base kleiniana, diz que “[...] se não abrimos um espaço de escuta para os adultos, a análise da criança não se torna possível” (ROSENBERG, 2002, p. 48). Para Cullere-Crespin (2004), a escuta implica em um não saber de antemão o que se vai produzir, mas ouvir. A posição de escuta comporta implicação subjetiva e não intrusão, ao mesmo tempo.

Outros psicanalistas, como Kupfer (2002), por exemplo, pensam em grupo de mães ou grupo de pais “[...] como um lugar no qual poderá ser feita a „desamarração‟ entre as manifestações neuróticas de uma mãe e a estrutura de seu filho [...]” (KUPFER, 2002, p. 128).

Jerusalinsky (1993) já chamava a atenção para a posição em que a deficiência é tomada no campo discursivo parental, e que o modo como a criança é recebida neste discurso simbólico da função materna, do Outro primordial, seria um fator determinante da sua passagem pelo primeiro momento da estruturação subjetiva.

Nessa perspectiva, os pais são incluídos no tratamento dos filhos, pois objetiva-se deslocamentos na posição subjetiva dos pais com relação às dificuldades do filho. Qual a posição da criança na discursividade dos pais?

[...] Quando o psicanalista recebe os pais de uma criança, propõe-se inicialmente a escutá-los, tentando saber o que querem e como problematizam os sintomas do filho. A escuta do discurso dos pais nos fornecem elementos que ajudam a saber qual a posição da criança na estrutura familiar (OLIVEIRA, 1999, p. 37).

No referencial da teoria lacaniana, a problemática da criança não está só nela, mas no campo discursivo, o que inclui os pais; portanto, o trabalho de escuta dos pais (OLIVEIRA, 1999). Essa escuta do discurso parental é imprescindível para localizar a posição da criança com problemas na constituição subjetiva, na estrutura discursiva em que os pais colocam o filho e em que o filho responde ao outro parental.

Ainda segundo Oliveira (1999), no grupo de pais do Lugar de Vida, o pedido inicial é de que os pais falem dos filhos! Assim, os pais reconstroem a história familiar, e nessa reconstrução da história, “[...] há a possibilidade de implicação dos pais na problemática dos filhos [...]” (OLIVEIRA, 1999, p. 43). “A implicação subjetiva dos pais nos problemas de seus filhos se dá num particular movimento desses pais: a passagem da culpabilização imaginária, para a responsabilização simbólica [...]”.

Algumas propostas institucionais seguem os princípios do que Alfredo Zenoni (1991) chamou de Tratamento do Outro. No texto citado, o autor discute a diferença entre os tipos de psicoses infantis, que nomeia de genética e de “estrutural”. A perspectiva estrutural, diferente da genética, não cita a psicose e sua causalidade na relação entre predisposição inata e meio ambiente, mas “[...] no plano do Outro, no campo das determinações significantes do sujeito” (ZENONI, 1991, p. 107).

Alguns autores (Zenoni, 1991; Soler, 1999) não estabelecem distinções entre psicose e autismo, pois Lacan realizou um ordenamento em torno das estruturas clínicas: neurose, psicose e perversão. Zenoni supõe que tanto na psicose quanto no Autismo, o que está presente é o Outro excessivo e invasivo. Para Soler (1999) o Outro da criança autista assemelha-se ao Outro do psicótico; a posição do autista é a de ser falado pelo Outro; de alguém referir-se a ele, dirigir-lhe a palavra. Sendo falado pelo Outro, pode-se dizer que está na linguagem, assujeitado a ela, como todos os seres falantes, sendo um sujeito que não transforma esse assujeitamento em enunciação.

Contrapondo, outros autores (IZAGUIRRE, 2001; STEFAN, 1998; LAZNIK- PENOT, 1998) trabalham com a distinção entre autistas e psicóticos e se fundamentam em uma diferença no modo de situar “[...] a relação dessas crianças com o Outro: para os psicóticos, excesso. Para os autistas, falta” (KUPFER; FARIA; KEIKO, 2007). Izaguirre (2001) defende a não-existência do Outro no autismo, faltaria um Outro do desejo a supor uma demanda por parte da criança. Stefan (1998) também afirma que no autismo não haveria Outro e, sequer, o outro, o semelhante. Ambos afirmam a ausência de laço das crianças autistas na constatação de que não estão constituídas na e pela linguagem, estando fora do discurso e fora da linguagem, portanto, em uma ausência de subjetivação.

Para LAZNIK-PENOT (1998), no autista há um fracasso na construção do circuito pulsional completo, o que representaria o não-surgimento de um sujeito da pulsão. Em trabalhos mais recentes, LAZNIK (2005 apud KUPFER; FARIA; KEIKO, 2007) atribui uma sensibilidade ao autista que o impede de criar laços com os pais, mantendo, mesmo assim, um fundo de ausência do Outro na construção do Autismo. Entre aqueles que entendem haver laço com o Outro, este laço é, de tal forma, intrusivo, que o Autismo é entendido como proteção contra a invasão do Outro. A criança não oferece e não se oferece de maneira sublimada ao gozo pulsional do outro (PEREIRA; LAZNIK, 2008).

Para Strauss (1993 apud KUPFER; FARIA; KEIKO, 2007) o que está em jogo é a tentativa de barrar a iniciativa do Outro em ambos os casos. No psicótico, por meio do delírio, no autista por um trabalho de oposição ou de anulação do Outro. Mudam os estilos e recursos de manobra.

A depender da perspectiva, o tratamento será concebido. Pode ser pensado o tratamento da criança ou o tratamento do Outro. O Tratamento do Outro não deixará de ter consequências para o tratamento da criança, objetivo da intervenção. A criança localiza o outro, registra sua presença e reage às variações desse Outro. Daí pensar a proposta de tratamento do Outro.

Na leitura de Laznik-Penot (1998), o lugar do outro, do semelhante, está articulado ao do Outro, na constituição do sujeito. O outro dá suporte ao Outro.

O entendimento é de que, no Autismo, há um laço com o Outro, mesmo que intrusivo, específico, com características próprias. Isso faz do autista um ser com uma subjetivação peculiar, mas trata-se, de todo modo, de uma subjetivação. Nessa estrutura, o Outro toma espaço, invade o sujeito com seu gozo. A intervenção, a palavra dirigida ao Outro do sujeito, pode apaziguar ou negativizar esse gozo. Essa prática parceira do sujeito, onde esvazia-se de todo saber prévio e acompanha-se a criança em suas construções, pode ser chamada, também, de “prática entre vários” (BASTOS; MONTEIRO; RIBEIRO, 2005).

Tendo como prioridade o tratamento do gozo invasivo e desregulado, trata-se de uma clínica do real. A prática entre vários é uma forma de responder à relação ou ausência de relação que essas crianças parecem manter com o Outro, deslocando o saber e o gozo do lado do Outro, para o lado da criança. Os “vários” não dependem de um conhecimento ou técnica; a própria criança conta entre os vários que, apesar de não deterem saber sobre ela, desempenham uma parte na construção do saber com sua presença e testemunho (FREIRE; BASTOS, 2004).

As mudanças geradas na rede discursiva barram o gozo do Outro e dão espaço para a circulação num campo do Outro “pacificado”. Essa intervenção apaziguadora do Outro, essa oferta de Outro, já é tratamento em direção à elaboração de uma estabilização. A presença pacificada traz “a possibilidade de fazer laço com os outros, da maneira que lhe for possível, e nas brechas que o mundo puder lhe oferecer” (KUPFER; FARIA; KEIKO, 2007, p. 8).

Refletindo sobre o papel atribuído ao Outro, pela psicanálise, e os benefícios advindos do “tratamento do Outro”, percebem-se mudanças na subjetivação, na

construção, na constituição do sujeito autista. Por meio das produções discursivas, pode-se supor a posição do Outro, a forma da presença, da posição do autista na fala, a referência feita a ele e, assim, partindo da rede discursiva em que se encontra, supor a presença/ausência do laço com o Outro. Como o autista é visto, pela família, na condição de aluno? Houve mudanças nessa visão a partir da inclusão escolar? É possível observar deslocamentos na posição discursiva dos pais em relação ao filho?

Nesta perspectiva, é que propomo-nos a escutar os pais, com ênfase na vida escolar dos seus filhos, com o método de investigação autobiográfica, sabendo que a escuta tem efeito sobre a subjetivação dos próprios pais, que irão refletir, reviver e reconstruir parte da sua história, do seu vivido.