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AUTO-AFIRMAÇÃO IDENTITÁRIA

4. AS COMPOSIÇÕES DE RAP E A LITERATURA POPULAR: ANÁLISE

4.1. Análise comparativa

4.1.5. AUTO-AFIRMAÇÃO IDENTITÁRIA

O facto de os autores utilizarem dados biográficos e de transmitirem mensagens aos seus ouvintes, proporciona o ambiente necessário para que se estabeleça o processo de identificação entre uns e outros. Essas mensagens, que se baseiam por vezes em conhecimentos empíricos, contribuem para este processo de identificação.

Nas cidades, sobretudo os jovens147, que muitas vezes pertencem a núcleos familiares disfuncionais, têm mais probabilidades de seguir por caminhos incertos,

145 Fernando Cardoso, op.cit., vol.3, pp. 44-45.

146 Arlinda Spínola de Freitas e Guida da Silva Drummond, Santana a Rimar, Santana, Câmara

Municipal de Santana, 2002, p.34.

147 Vamos fazer incidir as nossas considerações sobre as faixas etárias em que se inserem os

81 procurando um alicerce na rua, tal como é descrito pelos Black Company na canção “Só malucos”,

Malucos sem nada a perder tão se a passar / A vida não foi boa então vão se vingar /A mãe gosta da pinga o pai pôs-se a andar / Não sabem quem é culpado mas alguém tem de pagar (…) Malucos e malucos e meio sem medo rápido / No dedo que sem hesitar puxam o gatilho / Viciados no estrilho sem receio seguem em frente / Porque as ruas afinal são seu porto de abrigo // Malucos que provam o seu próprio produto / Começam na sala de estar acabam na sala de chuto…148

Ao improvisarem um abrigo nas ruas, os jovens encontram-se mais susceptíveis à corrupção, à delinquência, à marginalização e às drogas, situações mais propícias e latentes nos meios urbanos.

O desamparo das famílias, ou daqueles que os rodeiam, em especial da mãe e do pai, da família mais próxima, contribuem para que os jovens se associem a determinados grupos, aproximando-os aos perigos. O desamparo da família em relação aos jovens pode motivar mudanças inesperadas nos seus comportamentos. Há uma necessidade de encontrar em espaço ou um grupo que congregue o sentimento de pertença. Assim, em “Sala 101” dos Dealema cantam:

E ele puxou o gatilho da 6.35, bazou, deixou sangue no recinto Ele era um puto normal, um puto bombástico

Mas era mal tratado pelo padrasto, A mãe não tinha tempo para intervir

Trabalhava horas extras numa fábrica para subsistir Sem tempo para o acompanhar ou dar educação Primeiro meteu patelas, depois veio o sabão Passou para os quilos, depois veio o filho,

Passou para as bases, depois veio o vício (e a ressaca) Começaram os assaltos à mão armada, a joalharias Com fiats uno roubados e gunarias de todos os lugares

De todos os bairros, do Aleixo ao Tarrafal até criar um gang local O seu pai estava demente, estava a flipar

Veterano, ex-combatente do ultra-mar Tinha ido para morrer, tinha ido para matar Mas não estava preparado para o que ia enfrentar Veio traumatizado com quem tinha matado Com pastilhas que tinha tomado,

Obrigado a ingeri-las com a comida

Continham LSD e anfetaminas, drogas químicas O puto acabou condenado, encarcerado

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A mãe com um desgosto e o pai alcoolizado.149

Nesta canção, o sujeito é apresentado como um jovem “normal”, que mudou os seus comportamentos devido às situações vivenciadas no seio familiar. Os pais do sujeito são separados, a mãe está constantemente ausente, o pai teve uma experiência traumática de combatente no ultra-mar; os maus tratos do padrasto, foram situações que se repercutiram no comportamento do jovem. O consumo abusivo de álcool e de drogas, a violência e a ausência contribuíram para que o jovem facilmente entrasse para um grupo de delinquentes, que não medem nem os riscos nem as consequências dos actos que praticam.

Se por um lado temos exemplos de canções que descrevem as más opções dos sujeitos para tentar prevenir os ouvintes dos possíveis erros que possam vir a cometer ou dos possíveis perigos que possam vir a enfrentar, por outro em “Vivo Puro”, DNA, Ruiz e NBC transmitem outra situação:

Sinto que cresci direito e à minha mãe eu devo tudo,

Mesmo vendo bem diferente entendeu sempre o meu mundo, Sem experiência torrei-lhe muita paciência,

Não me negou a convivência, Que me deu cor e transparência, Forte aparência, ambição e insistência,

Se conheceres alguém assim, é pura coincidência.

Neste excerto os compositores expõem um sujeito que apesar de ter tido as suas fases difíceis, teve o apoio da mãe, que contribuiu para que se mantivesse num caminho certo. Assim, podemos constatar que nestes meios, e não só, o apoio familiar, sobretudo das figuras maternas e paternas, contribuem para o desenvolvimento dos indivíduos desde cedo. Com o apoio da mãe o sujeito conseguiu manter-se num caminho que o próprio considera correcto. Ao analisarmos estas letras de canções é evidente que, os próprios autores têm consciência de que o apoio familiar, ou a falta dele, condicionam e influenciam o crescimento do indivíduo. Há uma preocupação em transmitir aos ouvintes os factores marcantes da evolução e de formação do indivíduo. Estas preocupações sociais reflectem-se também nos discursos que os artistas têm no seu quotidiano.

83 MC Valete em entrevista à revista Blitz afirma-se como um rapper que pretende saber a razão pela qual os jovens chegam à delinquência, pois acredita que há um motivo, algo os levou a isso:

Vamos saber as histórias desses miúdos, vamos saber porque estão a roubar, quais são os problemas. Se calhar a culpa não é deles, é de todo o sistema social que está corrompido. Mas também é culpa dos nossos governos que são muito neo-liberais, muito de direita e gostam de analisar tudo muito superficialmente. Eu, como sou de esquerda, prefiro aprofundar.150

Desta forma, Valete afirma que a sociedade é essencial no processo de formação dos indivíduos, em que toda a envolvente conta, criticando desta forma as opções tomadas pelas classes políticas no que diz respeito à classe juvenil. Ele próprio se afirma como representante de parte de uma sociedade, a parte mais desfavorecida, pois acredita e afirma que o Rap surgiu com o intuito social de representar os mais desfavorecidos:

A questão é que o hip-hop é mais um meio para chegar a um fim. É uma luta. Acredito nesta luta e interessa-me mais estar ao lado do público dos subúrbios, das classes inferiores, mais consciente, preocupado, consciencializado, do que de este público que só se quer entreter.151

Os rappers que assumem uma preocupação social, não pretendem fazer do rap apenas um produto para o entretenimento do público. Desejam antes, contribuir para a consciencialização e mudança sociais.

Na Literatura Popular, os autores têm igualmente a noção de que o meio é uma influência de relevo no processo de crescimento e de formação do indivíduo: “Não sou esperto nem bruto, / nem bem nem mal educado: / sou simplesmente o produto / do meio em que fui criado.”152 Esta é uma tese defendida por Jean-Jacques Rousseau no mito do bom selvagem, em que defende que até entrar em contacto com a sociedade o homem é “puro”, a sociedade é que corrompe o homem. Isto é, o homem é moldado e influenciado pelo meio que o envolve, pois apesar de o indivíduo possuir características únicas e particulares, é também um misto de especificidades das várias culturas e das várias identidades que o rodeiam.

150 http://www.h2tuga.net/hiphop/hiphop-na-imprensa/entrevistas/1944-valete.html.

151 http://www.h2tuga.net/hiphop/hiphop-na-imprensa/entrevistas/1944-valete.html.

84 O poeta-contínuo, António Vilar da Costa, em “Gandaia” retrata essa mesma questão: a influência do indivíduo pelo meio em que se encontra, transformando-o, naturalmente, num produto desse mesmo meio.

Amanheceu no cais. O Zé Cachucho, (…)

lá foi a farejar, por entre a lota, qualquer coisa trivial,

para matar o “bicho”…

– Toma lá este rabo, ó desalmado, salta daí, vai assá-lo!

– gritam da lota as varinas – – Pega lá excomungado, leva mais este robalo… – Anda cá, meu “fomenica”, toma este naco de broa!... Gente honrada! Gente boa! Ó santa gente do mar! Aí, quanta, quanta virtude ocultais, num gesto rude, na maneira de falar!

Assim fora criado o Zé Cachucho. Por ali ao Deus dará…

ao frio, à chuva… eu sei lá!... (…)

Saíra esperto o miúdo… Desenvolveu-se, crescera, alegre, vivo, traquinas… E fora, por muito tempo, o “ai Jesus” das varinas! A mãe não a conhecera. Coitada, morreu de parto… O pai,

perecera na frota da pesca do bacalhau. Zé Cachucho, de menino, tivera um passado mau!... Deixou de ser como as mais crianças da sua igualha… Nunca soubera brincar! Cedo,

sem eira nem beira,

se viu no meio da “canalha” a “rapinar”pela praia…

85

sua mãe é a ribeira. O seu destino a gandaia!153

Outro dos temas que é abordado é o da procura de um grupo com o qual o indivíduo se identifica, por não ter o apoio de que necessita em casa, junto da sua família. O sujeito deste poema, o Zé Cachucho, desde cedo se juntou à “canalha” (a um grupo), pois não teve uma família que o amparasse. A mãe faleceu ao dar à luz, o pai faleceu durante a pesca do bacalhau. Zé Cachucho passou a encontrar-se numa situação de desamparo, por morte dos pais, enquanto era ainda novo. No seu processo de crescimento, deparou-se com um grupo, com o qual se identificou e onde encontro “conforto”. Este era um pequeno grupo de delinquentes que roubavam pela praia. Assim, para além de neste poema se retratar a influência do grupo/sociedade sobre o indivíduo, também se refere a necessidade de o indivíduo sentir que pertence a algum grupo, seja a família sejam os amigos da rua.

A defesa da identidade nacional também é desenvolvida em ambas as formas de expressão. Enquanto no Rap se faz a defesa da utilização da língua portuguesa, na Literatura Popular esta já é a regra. Mas os autores populares não deixam de defender a sua nacionalidade, tal como o faz Luciano Marques: “Sou português, eu grito ao mundo inteiro, / Filho de gente humilde mas honrada.”154

Para além de afirmar a sua identidade portuguesa, o poeta-criador de cães, Luciano Marques, também faz referência à sua condição social humilde, remetendo para o povo. Esta referência ao povo, à pertença desta classe social, é comum nos poetas populares portugueses que encontrámos. É constante a afirmação de que são do povo. Desta forma, os poetas assumem-se como representantes e porta-vozes de uma parte da sociedade, neste caso, do povo.