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Auto-avaliação da necessidade de tratamento dentário

IV. DISCUSSÃO

2. Análise dos resultados

2.3 Auto-avaliação da necessidade de tratamento dentário

Cerca de metade dos participantes (51,2%) no nosso estudo referiu ter necessidade de recorrer a tratamento dentário que é uma proporção superior à encontrada recentemente em estudos nos Estados Unidos (46%)240 e Sri Lanka (43%)241 mas inferior à registada num estudo no Brasil (55%)242. Atendendo às grandes diferenças das políticas de saúde e realidades culturais entre os países, estes resultados captam as necessidades relatadas pelos indivíduos e proporcionam informações complementares ao exame clínico, permitindo uma visão integral do paciente nos conceitos actuais de saúde e de importância no planeamento de acções para que sejam efectivas e que vão de encontro aos anseios das populações50, 215.

Gilbert153, avaliou a percepção da necessidade de tratamento dentário em idosos levado em consideração os sinais e sintomas das doenças orais, os problemas psicossociais decorrentes da condição oral e outros factores que podem afectar a percepção da necessidade de tratamento odontológico. Os resultados mostraram que as pessoas percebiam a necessidade de tratamento a partir de sinais e sintomas específicos e não a partir de uma avaliação geral da sua saúde dentária e periodontal. Grande parte das pessoas relatou sinais e sintomas orais que, considerados do ponto de vista profissional, eram

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suficientes para indicar a necessidade de tratamento, mas não do ponto de vista das pessoas.

De facto, no nosso estudo, apesar de os indivíduos terem feito uma avaliação positiva da sua Saúde Oral, analisando os dados da percepção das necessidades de tratamento dentário, tendo em conta a situação periodontal apresentada ao exame clínico, verificamos que a maioria dos participantes reconheceu a necessidade de recorrer ao dentista para tratamento, fosse qual fosse a situação patológica periodontal presente, mas com maior expressão na presença de bolsas periodontais profundas (90%), bolsas periodontais superficiais (68%) e sangramento gengival (66%).

A auto-percepção da necessidade de tratamento reflecte, em parte, o impacto que a doença tem sobre os indivíduos, evidenciando o grau das deficiências e as disfunções decorrentes da condição de saúde, assim como das percepções e das atitudes dos indivíduos a respeito dessa condição243, 244. Como referido anteriormente, de modo geral, os indivíduos dão maior importância aos sintomas e aos impactos funcionais e psicossociais das doenças orais do que aos sinais visíveis da doença62.

A associação positiva entre dor e auto-percepção da necessidade de tratamento é frequente na literatura241, 245, 246. Esse achado também foi evidenciado no presente estudo, pois a percepção da necessidade de tratamento dentário foi associada à condição dentária, na medida em que os indivíduos que referiram necessidade de recorrer ao dentista para tratamento apresentaram maior número de dentes cariados que são situações frequentemente acompanhadas por dor e desconforto. Resultados similares foram obtidos noutros estudos240, 241, 246 evidenciando que a auto-percepção da necessidade de tratamento odontológico entre os idosos é influenciada preponderantemente pela auto-percepção negativa de diversos aspectos da Saúde Oral.

Um componente importante da auto-percepção da necessidade de tratamento é o uso de serviços dentários. De facto, vários estudos mostraram que a auto-percepção é influenciada pelo uso de serviços, sendo maior entre

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os que usam os serviços médico-dentários125, 153, 247. O uso influencia a percepção e vice-versa.

Gift243 propôs um modelo teórico para a compreensão geral da percepção da Saúde Oral em 1998, fundamentado em modelos sociológicos de interacção e no modelo comportamental de saúde de Andersen & Davidson (1997)248. Segundo o modelo de Gift, a auto-percepção da necessidade de tratamento é resultante da condição da Saúde Oral do indivíduo (número de dentes cariados, perdidos e obturados – índice CPO, condição periodontal, necessidades de tratamento definidas clinicamente). O modelo proposto sugere que a auto-percepção é, hipoteticamente, determinada pelas orientações recebidas nos serviços de saúde.

No nosso estudo este facto pode explicar que os indivíduos que indicaram maior percepção de necessidade de tratamento dentário tinham, mais dentes presentes e maior número de dentes obturados apontando para uma maior atenção para os cuidados de Saúde Oral. Estes resultados estão de acordo com os de outros estudos como, por exemplo, o efectuado por Giddon, que avaliou a relação entre a percepção da pessoa sobre a condição dos seus dentes e a necessidade de tratamento dentário231. Concluiu que os dentes cariados tiveram maior correlação com a percepção da condição dentária enquanto que os dentes restaurados apresentaram maior correlação com a percepção das necessidades de tratamento. Por outro lado, os idosos desdentados apresentaram menor frequência de auto-percepção da necessidade de tratamento dentário, possivelmente reflectindo uma certa acomodação à situação de desdentado.

As pessoas utilizam critérios diferentes dos utilizados pelo médico dentista para avaliar a sua Saúde Oral. Kay representou graficamente o relacionamento entre as necessidades definidas clinicamente e subjectivamente (Figura IV.1) 249.

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Figura IV.1: Representação gráfica das necessidades clínicas e subjectivas de cuidados médico-dentários (Kay, 1993249)

O segmento B, formado pela sobreposição do círculo A com o círculo C, representa os casos em que há concordância entre os dois tipos de julgamento. Como esta concordância não é grande, facto relatado por vários autores em estudos que avaliaram a discrepância entre a auto-percepção da necessidade de tratamento e as necessidades definidas clinicamente58, 153, 245, pode-se argumentar a utilidade das medidas subjectivas, em especial, da auto- percepção.

Se o objectivo for identificar todas as pessoas que apresentam necessidades de tratamento definidas clinicamente, os indicadores subjectivos não são, com certeza, um bom instrumento de avaliação. No entanto, como assinalaram Locker e Jokovic, em tempos de escassez de recursos pode ser muito mais importante identificar subgrupos que necessitam de maior atenção do que todas as pessoas143. Consequentemente, saber se estas medidas são ou não úteis depende dos propósitos e dos objectivos do estudo.

Nos países onde as pessoas têm acesso a serviços públicos de Medicina Dentária, os estudos sobre auto-percepção são realizados com o objectivo de detectar as pessoas que necessitam de encaminhamento aos serviços, bem como de avaliar os tratamentos recebidos138. Em Portugal, que praticamente não oferece esses serviços na área pública, os estudos sobre a auto-percepção podem ser mais importantes na área educativa, pois são questões ligadas ao auto-diagnóstico e auto-cuidado e podem fornecer informações sobre a necessidade de intervenção nessa área. Dessa forma,

A B C A: Necessidades definidas clinicamente

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será possível melhorar a capacidade dos indivíduos de realizarem o auto- exame oral e identificar precocemente sinais e sintomas não dolorosos das doenças orais, assim como associá-los à necessidade de tratamento odontológico.

Na eventualidade de mudança política de Saúde Oral, estes trabalhos poderão contribuir para o planeamento e/ou motivar mudanças nas politicas de serviços de Saúde Pública.