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2.3.1 Habitação Autogestionária: Em Busca do Conceito

Compreender a especificidade do PMCMV-E significa compreender as particularidades que a autogestão é capaz de promover à temática habitacional. Antes, porém, de se pormenorizar as perspectivas da autogestão na habitação social, e consequentemente no PCMV-E, é necessário se deter na análise conceitual deste termo, pois, como esclarecem Mello (2011), Ferreira (2012) e Tatagiba et al. (2015), a autogestão pode ser vista como um processo que possui vários significados e usos.

A pluralidade deste termo deriva, para Singer (2002), do fato de o processo autogestionário ter se iniciado ainda no século XIX. Segundo o autor, desde a articulação dos primeiros movimentos operários europeus, os trabalhadores fabris, reivindicando melhores condições de trabalho, reuniram-se em torno da gestão coletiva dos meios de produção, dando origem ao cooperativismo revolucionário. Oriundas desse contexto de precariedade e desemprego, surgiram os primeiros registros de novas formas organizacionais como as cooperativas, associações e organizações geridas por autogestão. Desde então, como esclarece Ferreira (2012), muito tempo se passou, e as experiências de autogestão seguem presentes em toda a sociedade, capitaneadas, atualmente, pela chamada economia solidária6.

A autogestão possui particularidades que a afastam da gestão tradicional (heterogestão) praticada, prioritariamente, nas organizações. De acordo com Albuquerque (2003), a autogestão é um conjunto de práticas sociais que possui como base a natureza democrática da tomada de decisão, o que propicia a autonomia de um grupo. É, ainda, um exercício de poder compartilhado, presente nas relações sociais de cooperação coletiva, independentemente do tipo das estruturas organizacionais ou das atividades operacionalizadas. Sua finalidade é promover relações sociais mais horizontalizadas.

Do ponto de vista político, para o italiano Noberto Bobbio (1998), o processo autogestionário se caracteriza como um sistema de organização das atividades sociais, derivado da cooperação entre pessoas, em que as decisões relativas à gerência são determinadas pelos indivíduos que dela participam. Sob essa perspectiva, dois elementos funcionam como base da

6 Segundo o Fórum Brasileiro de Economia Solidária, FBES (2017), a economia solidária possui caráter autogestionário, uma vez que nela não existe patrão nem empregados. Todos os integrantes do empreendimento (associação, cooperativa ou grupo) são, ao mesmo tempo, trabalhadores e donos.

autogestão: a superação da dicotomia entre os tomadores de decisão e seus executores; e a autonomia decisória, observada pela superação das vontades alheias às coletividades na definição do processo decisório.

Para Rosenfield (2003), a autogestão é um modelo que busca a autonomia real, juntamente com a inserção ativa dos participantes nas decisões do coletivo. Ao se contrastar as definições de Bobbio (1998), Albuquerque (2003) e Rosenfield (2003), depreende-se que a autogestão pode ser entendida como socialização dos processos decisórios, compartilhada por quem vivencia a experiência associativa em um ambiente que possui autonomia sobre atores externos.

Após apresentar as origens e definições da autogestão em seu sentido lato, analisar-se- á a transposição desse conceito para o campo habitacional. Para Mineiro e Rodrigues (2012, p. 21), a autogestão na habitação social corresponderia:

Às ações em que a construção de moradias ou a urbanização de uma área é produto do controle da gestão dos recursos públicos e da obra pelos movimentos populares, associações, entidades e cooperativas. Seria a própria comunidade gerindo o processo de produção da solução habitacional. Pontua-se o controle em todas as etapas, desde a definição do projeto, do terreno, da equipe técnica que os dará suporte, da forma de construção, contratação de mão de obra, compra de materiais, prestação de contas, organização do mutirão e organização da vida comunitária (MINEIRO; RODRIGUES, 2012, p. 21).

Ainda para os autores, a autogestão habitacional visa não apenas à construção de habitações ou urbanização, mas, sobretudo, à construção de uma vida comunitária pautada na qualidade de vida e no sentimento de pertencimento de uma população.

Com visões semelhantes às de Mineiro e Rodrigues (2012), Rizek e Barros (2006) e Tatagiba et al. (2015) identificam a autogestão habitacional como um processo de gestão autônoma dos recursos disponibilizados para o provimento da produção habitacional, em que as associações possuem efetivamente o controle sobre todo o empreendimento, de modo a planejar e executar a obra, mantendo sua autonomia perante atores externos ao coletivo – no caso os agentes públicos e as construtoras. Além da obrigatoriedade do controle, a autogestão habitacional pressupõe a cooperação entre os envolvidos, sendo esta traduzida pelo compartilhamento das decisões que envolvem a gestão do empreendimento.

É importante observar que a habitação autogestionária extrapola o vínculo operacional da construção de moradias a partir da formação de um grupo e sua identificação com a entidade organizadora. O relacionamento intragrupo possibilita a formação dos principais produtos da autogestão: os ideais de coletividade, convivência e compartilhamento.

2.3.2 O Desenvolvimento da Habitação Autogestionária no Brasil

Uma vez esclarecidas as bases conceituais da autogestão, bem como suas particularidades no processo habitacional, este tópico aborda o desenvolvimento da habitação autogestionária no Brasil sob a perspectiva de como a pressão social em torno de uma política habitacional democrática reverberou, décadas depois, na criação da modalidade Entidades do PMCMV.

As primeiras reivindicações em torno de uma política habitacional autogestionária no país remontam, de acordo com Blikstad (2012), aos movimentos sociais urbanos que encontraram na bandeira da autogestão habitacional uma forma de defender o seu lugar no processo de produção da política habitacional para a população de baixa renda.

Segundo Ferreira (2012), a luta reivindicatória por políticas habitacionais inclusivas iniciou-se na década de 1960, quando movimentos sociais urbanos começaram a se mobilizar em torno de uma reforma que revertesse a lógica de apropriação do solo, fundamentada na especulação imobiliária e na apropriação privada dos financiamentos públicos habitacionais. Esse período é caracterizado pela existência do Banco Nacional da Habitação (BNH), o qual, em seus 22 anos de existência, de 1964 a 1986, construiu mais de 4,3 milhões de unidades habitacionais (AMORE, 2015).

Ainda no período ditatorial brasileiro, ao mesmo tempo em que os movimentos populares urbanos reivindicavam uma agenda política mais democrática, vários países da África, Ásia e América Latina, notadamente Chile, Peru e Uruguai, sob estímulo do Banco Mundial, começaram a adotar processos alternativos na produção de moradia social, como a autoconstrução, mutirão e outros programas heterodoxos, vistos como mais apropriados para atender esta demanda da sociedade (BONDUKI, 2006).

É nesse contexto histórico de pressão popular por políticas públicas participativas e de expansão da habitação autogestionária em outros países do mundo que, em 1988, a Constituição Federal brasileira, incorporando importantes mecanismos como as funções sociais da propriedade e da cidade, foi promulgada. Desde então, segundo Ferreira (2012), as reivindicações dos movimentos sociais urbanos se detêm, principalmente, no cumprimento destes princípios constitucionais e na formulação de políticas públicas habitacionais que apontem para a elaboração de um projeto coletivo de sociedade, fundamentado na autogestão e nas premissas de democracia, solidariedade e justiça social.

Sobre as experiências de autogestão na habitação, derivadas dessa longa agenda reivindicatória, Mineiro e Rodrigues (2012) esclarecem que os primeiros empreendimentos

autogestionários, iniciados na década de 1980, tiveram caráter pontual no país. Oriundas de organizações populares, com suporte técnico de profissionais da área, pastorais da igreja católica e ONG’s, essas primeiras iniciativas eram vistas, praticamente, como projetos-pilotos.

É a partir de 1989 que, efetivamente, a proposta habitacional autogestionária se estabelece como uma possibilidade no rol de políticas públicas habitacionais – especificamente, citam-se os programas implementados nos municípios de São Paulo, Diadema, Santo André, em São Paulo, e Ipatinga, em Minas Gerais (FERREIRA, 2012). Após estas primeiras diretrizes públicas com princípios de autogestão, outras políticas7 foram, aos poucos, sendo formuladas

e implementadas em municípios e estados, contando com diferentes características e níveis de participação (MINEIRO; RODRIGUES, 2012).

Do ponto de vista federal, entretanto, a década de 1990 foi marcada como um período sem políticas públicas significativas para a habitação social (MOREIRA, 2009). Em uma época marcada pela administração de governos liberais, apenas políticas públicas em nível estadual e municipal foram implementadas em diferentes localidades do Brasil, enquanto importantes marcos legais, como o Projeto de Lei de Iniciativa Popular de 1991, não eram aprovados. A partir da eleição do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em 2002, após um longo período inerte houve uma preocupação do governo federal quanto à produção habitacional no país, com destaque ao provimento de residências orientadas para famílias com renda de até três salários mínimos (CAMARGO, 2016).

Assim, os anos 2000 são marcados, em nível federal, pela aprovação de importantes marcos legais que deram suporte à construção de novas políticas e programas habitacionais. Dentre eles, destacam-se: a criação do Ministério das Cidades em 2003; a realização das Conferências Nacionais das Cidades; a formulação do Programa de Regularização Fundiária inédito em nível federal em 2003; a criação do Conselho das Cidades e da Política Nacional de Habitação em 2004; e a aprovação da Lei Federal nº 11.124, em 2005, – que dispõe sobre o Sistema Nacional de Habitação de Interesse Social e cria o Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social, FNHIS. É importante salientar que até a lei nº 11.124 ser sancionada, seu projeto tramitou por 14 anos no Congresso, sendo oriundo do primeiro Projeto de Lei de Iniciativa Popular do país enviado ao Congresso Nacional em 1991. Este projeto foi entregue

7 Conti (2001) aponta como maiores experiências autogestionárias desenvolvidas por governos estaduais e municipais os respectivos programas: Programa FUNAPS-Comunitário, da Prefeitura de São Paulo (1989-1992); Programa de Mutirões em Autogestão, da Prefeitura de Ipatinga - MG (1989-1998); Programa de Mutirões em

em mãos pelos próprios movimentos sociais de moradia em ocasião da quarta caravana a Brasília, a qual levou cinco mil pessoas ao Planalto Central.

De acordo com Camargo (2016), é nesse contexto de formulação das macropolíticas urbanas que os movimentos sociais voltaram a pressionar o governo e apresentaram propostas buscando, mais uma vez, a criação de um programa público federal fundamentado na autogestão habitacional. Derivado dessa pressão social, o MCidades indicou a possibilidade de empregar os recursos de um fundo governamental secundário, o Fundo de Desenvolvimento Social (FDS), que estava inoperante desde 1991. Destaca-se que o FDS foi criado com o intuito de fomentar projetos de iniciativa privada que tenham como foco a habitação popular, infraestrutura urbana e equipamentos comunitários. Estabelecido durante o governo Itamar Franco, este fundo é gerido pelo Conselho Curador do FDS (CCFDS) que dispõe sobre as diretrizes de concessão de credito, os desenhos operacionais de financiamento, a supervisão dos créditos concedidos, dentre outros (MOREIRA, 1999).

Fruto de pressão popular, em 2004, o CCFDS homologou a resolução nº 93, criando o primeiro programa de habitação autogestionária federal, o Programa Crédito Solidário (PCS). De acordo com Moreira (2009, p. 104), o PCS “nasce como um programa social de habitação, sustentado pelo movimento popular e viabilizado por recursos privados de um fundo de importância secundária, cujo desenho operacional foi formulado pela CEF, agente operadora dos recursos do FDS, a ser operacionalizado por um banco”.

Ao fazer compilação de dados oficiais, Ferreira (2012) aponta que até agosto de 2011, o Crédito Solidário investiu cerca de 387 milhões de reais, construiu 21.695 unidades habitacionais e contratou 341 empreendimentos. Para Moreira (2009), uma das maiores barreiras enfrentadas pelo PCS diz respeito à utilização de uma lógica de financiamento tradicional voltada à população de baixa renda, o que resultou em uma concessão de crédito em desconformidade com as condições de pagamento desse público.

Quanto à criação do programa Minha Casa Minha Vida, PMCMV, observa-se que ela está atrelada à crise econômica mundial de 2008, que, em resposta ao desaquecimento da economia nacional, o governo federal lançou a diretriz, moldada para atender à promoção pública habitacional, mas, sobretudo, para agir como instrumento anticíclico (REIS, 2013). Para Baravelli (2015), o MCMV, em ocasião do seu lançamento em março de 2009, por meio da Medida Provisória 459, deixava claro seu principal objetivo: a construção de novas unidades habitacionais. Neste lançamento, orientado pela meta física, que estava no centro de sua divulgação pública, o governo estipulou a construção de 1 milhão de novas moradias para a

fase 1 do programa – das quais apenas 40% seriam destinadas à faixa de interesse social (de 0 a 3 salários mínimos).

No contexto de formulação do PMCMV, houve novas mobilizações sociais, como a Jornada de Lutas da Reforma Urbana, as quais reivindicaram a participação dos movimentos sociais nessa nova política nacional de habitação. Em consequência disso, foram abertas vias de comunicação que culminaram em uma audiência com o então Presidente Luís Inácio Lula da Silva e, posteriormente, com a ministra da Casa Civil, à época, Dilma Roussef, oportunidade na qual os movimentos solicitaram que parte das habitações fossem erguidas por ideais autogestionários. Dessa negociação, surgiu, ainda em 2009, o Programa Minha Casa Minha Vida Entidades, o maior Programa autogestionário do país (MINEIRO e RODRIGUES, 2012).

Operacionalmente, o PMCMV-E enviou fundos orçamentários para o FDS. Parte de sua base normativa veio do PCS e o restante foi compartilhada pelo MCMV executado pelas empreiteiras. Na fase 1 do PMCMV, de 2009 a 2012, a modalidade Entidades recebeu cerca de 500 milhões de reais, valor superior ao investido em toda a execução do PCS. Na visão de Ferreira (2012), o programa teve o mérito de incorporar várias demandas apresentadas pelos movimentos, principalmente no que se refere ao alto subsídio financeiro concedido às entidades, situação que não se verificava no PCS. Apesar dessa virtude, o PMCMV-E ainda possui lacunas que são debatidas no Capítulo 4.