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Automedicação como Motor de Reconfigurações Profissionais

Parte II Automedicação e a Prática profissional do(a) farmacêutico(a)

4. Automedicação como Motor de Reconfigurações Profissionais

A prática crescente da automedicação e a ineficácia das medidas para a sua redução têm vindo a dar lugar a novos reposicionamentos profissionais neste domínio e a novas estratégias de recolocação de poder, tanto por parte do sector médico como do sector farmacêutico (Lopes, 2001). Estes reposicionamentos demonstram que a automedicação está a constituir-se como plataforma de estratégias profissionais de poder, que se verifica na disputa de novos espaços de controlo profissional, fazendo deslocar para as suas respetivas tutelas um campo de práticas que tradicionalmente se desenvolveu à margem do seu controlo (Lopes, 2003). Segundo Lopes, (2001:142), “fica excluída qualquer legitimidade profissional exterior à medicina, no sentido em que, mesmo quando o medicamento é recomendado por qualquer outro profissional de saúde, designadamente pelo farmacêutico, continua a ser uma prática de automedicação”.

4.1. Automedicação como Prática Desviante do Sector Médico

No sector médico, o reposicionamento profissional passa por dois tipos de estratégias aparentemente antagónicas. Como princípio, a profissão médica rejeita qualquer forma de automedicação, evocando que o recurso a qualquer solução terapêutica pressupõe sempre um diagnóstico, e que estes são domínios exclusivos da competência médica, podendo colocar em

risco a saúde dos indivíduos (Lopes, 2001). Trata-se, claramente, da reivindicação de uma pericialidade que lhes é exclusiva, pelo que pretende manter à margem da atuação neste domínio outros profissionais de saúde, nomeadamente os que estão mais próximos do medicamento, os farmacêuticos. No entanto, esta posição de princípio não exclui um aumento da tolerância e aceitação do recurso à automedicação para os considerados sintomas menores, transmitindo para os leigos a autonomia e o sentido de responsabilidade na sua própria saúde e bem-estar. Dessa forma estabelecem uma nova estratégia de centralização da intervenção médica nas situações clinicamente mais valorizadas e de resistência à desqualificação, que a rotinização das prescrições nas situações mais simples representa (Lopes, 2003).

Consciente do crescimento do recurso à automedicação, a profissão médica procura manter o controlo sobre um processo que parece cada vez mais descontrolado, colocando a enfâse na educação do utente, reclamando-a como prática a levar a cabo pelos médicos. Ou seja, esta nova abordagem à automedicação é legitimada nos argumentos médicos com a evocação de um novo requisito, que é a prévia educação do utente (Vicente, 2000). Esta educação é entendida como a transmissão de um conjunto de recomendações quanto às circunstâncias em que o recurso aos medicamentos pode ser feito, acentuando a sua restrição aos sintomas mais comuns e alertando para o contacto imediato com o médico face a qualquer alteração no quadro estabelecido (Lopes, 2003; Vicente, 2000).

O envolvimento dos utentes nas decisões terapêuticas é, em geral, considerado como um factor importante no processo terapêutico. Um grau de envolvimento elevado pressupõe maior e melhor informação e, portanto, maior probabilidade de utilização adequada dos medicamentos.

4.2. Influência da Automedicação na Expansão da Atividade

Farmacêutica

Contrariamente ao sector médico, desde há muito que o sector farmacêutico tem assumido uma posição de grande flexibilidade relativamente à automedicação, advogando mesmo as suas vantagens nos designados sintomas menores, por permitir economia de tempo, de custos e uma mais rápida recuperação do bem-estar (Soares, 2002).

Segundo Ribeiro et al., (2004), é notória uma facilidade na obtenção de medicamentos por meios onde não há a utilização da prescrição médica, onde na maior parte das vezes, a automedicação é consequência da inacessibilidade aos meios de saúde e ao elevado preço para obtenção dos medicamentos, o que leva à procura de formas alternativas de medicação, geralmente orientada pelos farmacêuticos.

O sector farmacêutico, com o evoluir da educação do utente, tem uma oportunidade única para alargar o seu campo de intervenção e para conseguir uma enorme revalorização profissional, aumentando a importância do seu papel no aconselhamento do utente.

O ato farmacêutico, além de assumir compromisso com a saúde individual e comunitária, passa a ter um papel fundamental na difusão do autocuidado, aplicando estratégias de educação e informação do utente para o uso racional dos medicamentos (Silva et al., 2000). O farmacêutico é o profissional de saúde que está mais perto de identificar possíveis situações de risco, pois é o elemento que está presente na dispensa dos medicamentos, Soares (2002). Este assume a função de comunicador, de forma a obter os dados suficientes da história do utente, colocar as perguntas chave ao utente, para se for o caso encaminha-lo para outro profissional de saúde, ou para receber e fornecer informação objetiva e imprescindível. Este assume também a função de dispensa de medicamentos, onde deve garantir a necessidade efetiva do medicamento em questão, e garantir que o utente perceba as informações fornecidas. Esta ação educativa traz grandes benefícios para o utente e proporciona um maior reconhecimento profissional ao farmacêutico (Silva et al., 2008). Segundo Taylor et al., (2003) os profissionais de farmácia são possuidores de competências técnico-científicas que lhes permite ter um papel alargado na sua atividade profissional, tais como:

 Aconselhar os utentes em doenças de sintomatologia menor;

 Aconselhar os utentes a usar os medicamentos de forma eficaz;

 Prestar serviços farmacêuticos ao domicílio;

 Participar na educação contínua dos profissionais de saúde da comunidade;

 Educar os utentes de forma a promover a saúde;

 Supervisionar o fornecimento e o armazenamento dos medicamentos em lares de idosos;

 Manter o registo de medicamentos prescritos e adquiridos;

 Aconselhar os utentes acerca dos medicamentos mais económicos e dos efeitos dos medicamentos;

 Monitorizar e reportar reações adversas e interações medicamentosas;

 Aconselhar os médicos de medicina geral e familiar sobre a administração e manuseamento de substâncias farmacêuticas complexas;

 Realizar medições de parâmetros bioquímicos.

O farmacêutico pode promover a saúde na sua comunidade oferecendo ajuda e apoio em diversas áreas da sua competência. O farmacêutico pode ajudar a população no que diz respeito:

 Ao desenvolvimento de campanhas antitabágicas, disponibilizando toda a ajuda e informação necessária;

 Promoção da saúde do bebé e da criança;

 Promoção de estilos de vida saudáveis, como a alimentação saudável e o incentivo à prática de atividade física;

 Alertar para o uso incorreto dos medicamentos e das consequências que daí podem advir;

 Desenvolver campanhas informativas acerca da saúde sexual e de contraceção;

 Promover saúde oral;

Promoção de programas de vacinação. (Taylor et al., 2003)

Ou seja, no âmbito do que se designa por papel alargado do farmacêutico nas sociedades modernas, a automedicação surge como um campo de atuação privilegiada para o exercício das suas competências, consubstanciando-se como uma clara zona de reivindicação de pericialidade por parte da profissão.

Segundo Zubioli (2000), é imprescindível que o farmacêutico tenha plena noção da sua competência e dos limites da sua intervenção no processo de saúde e doença, para que possa desempenhar a sua função profissional no momento oportuno, avaliando a situação do utente e encaminhá-lo se necessário a uma consulta médica, e se necessário para serviço de urgência hospitalar.