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Como visto na seção anterior, Bakhtin (2011b) faz uma distinção entre dois ti- pos de autores. O centro desta pesquisa, porém, está sobre o autor pessoa e não sobre o autor criador, a quem Bakhtin dedicou-se, acredito, com mais afinco. Dife- rentemente de Bakhtin, não proponho uma reflexão sobre o objeto estético por si mesmo, mas uma análise sobre o enunciado do autor pessoa, isto é, o enunciado do sujeito no mundo da vida, que, nesse caso, discorre sobre sua atividade literária. Os elos entre o autor pessoa e a realidade concreta são os alvos principais.

Bakhtin (2011b) é enfático quando afirma que o processo de construção literá- ria não é percebido na “confissão do autor”, mas apenas na obra de arte. O autor, diante disso, nada tem a dizer acerca do seu processo de criação, uma vez que este se coloca inteiramente no produto criado.

[...] quando o artista começa a falar da sua criação além da obra cri- ada e, para lhe acrescentar algo, costuma substituir sua atitude efeti- vamente criadora, não vivida por ele, mas realizada na obra (que foi não experimentada por ele, mas experimentou a personagem), por sua atitude nova e mais receptiva em face da obra já criada (BAKH- TIN, 2011b, p. 5).

Assim, nessa “confissão”, o autor expõe sua verdadeira posição frente às per- sonagens, nesse momento já construídas e acabadas, e apresenta suas refle- xões/reações diante delas como sujeitos, vividamente concretos, encarando-as por distintos pontos de vista (moral, ético, social etc.). Nesse ponto, surge a distinção realizada por Bakhtin entre as duas categorias de autor: o autor pessoa e o autor criador. A “confissão”, em que o autor reage às suas personagens, parte do autor pessoa, que diz respeito ao escritor, ao artista, ao sujeito da vida, a quem lhe com- pete o exercício da escritura. Já o autor criador refere-se à função estético-formal engendradora da obra, que tem a atribuição de formalizar determinada relação axio-

lógica com o herói e o seu mundo. É papel do autor criador a configuração de um universo ficcional, tomando para tal elementos reais, mas acomodados de modo a integrar um mundo particular, o qual segue as diretrizes do seu inventor. É a este segundo que Bakhtin dedica maior atenção, pois o vê como constituinte do objeto estético, aquele que o sustenta e lhe dá forma.

Dito isso, reitero que investigo os enunciados de autores pessoas, isto é, su- jeitos na vida, que refletem e questionam suas práticas literárias. Uma leitura super- ficial da diferenciação entre os conceitos de autor pessoa e de autor criador poderia deslegitimar qualquer pretensão de análise de enunciados dos primeiros. Sobre es- ses enunciados, Bakhtin (2011b, p. 6) afirma:

Se levarmos em conta todos os fatores aleatórios que condicionam as declarações do autor pessoa sobre suas personagens [...], vere- mos com absoluta evidência o quanto é incerto o material que deve emanar dessas declarações do autor sobre o processo de criação da personagem. Esse material tem um imenso valor biográfico e pode adquirir também valor estético, mas só depois de iluminado pelo sen- tido artístico da obra.

Todavia, argumento que o projeto investigativo de Bakhtin foi um projeto de caráter estético, isto é, um projeto filosófico acerca do sensível na obra de arte, par- ticularmente na obra literária, como o concretizou por meio de análises de obras de Fiódor Dostoiévski52, François Rebelais53, entre outros autores. Para tanto, não se debruçou sobre declarações desses escritores em contemplação ou crítica às suas obras, mas dirigiu-se a elas próprias, fazendo emergir delas os sentidos para uma análise estética, cunhando, por conseguinte, as noções que acreditou pertinentes para esse empreendimento. Nesta tese, não me detenho a apreciações estéticas, visto que não interpreto produtos artísticos, mas o discurso que se faz sobre eles. Dito de outra forma, ocupo-me do enunciado sobre a criação literária proferido pelo autor pessoa e não o enunciado do autor criador, que se nota na obra acabada.

No início do Capítulo V de O autor e a personagem na atividade estética, inti- tulado “O problema do autor”, Bakhtin (2011b, p. 173) destaca que irá definir o autor como “participante do acontecimento artístico”, o qual compreendo como o autor

52 Cf. Bakhtin (2013). 53 Cf. Bakhtin (2008).

pessoa. Nessa direção, defende o homem (aqui, o artista) como centro organizador do conteúdo-forma da visão artística. Com esse objetivo, o homem se posiciona no mundo concreto a partir de uma certa determinação, de uma presença axiológica, o que vem, certamente, influir na sua construção estético-literária.

Essa orientação axiológica e essa condensação do mundo em torno do homem criam para ele uma realidade estética diferente da reali- dade cognitiva e ética (da realidade do ato, da realidade ética do acontecimento único e singular do existir), mas, evidentemente, não é uma realidade indiferente a elas (BAKHTIN, 2011b, p. 173).

Dessa maneira, “viver significa ocupar uma posição axiológica em cada mo- mento da vida, significa firma-se axiologicamente” (BAKHTIN, 2011b, p. 174). Assim, o eu e o outro se constituem como categorias axiológicas basilares, pois é a partir delas, do diálogo travado nesse entremeio, que se materializa qualquer “juízo de valor efetivo”. No diálogo entre eu e outro se constituem as diretrizes axiológicas da consciência do homem, que se estendem a toda e qualquer vivência. Em todas as formas estéticas, afirma Bakhtin (2011b, p. 175), “a força organizadora é a categoria axiológica do outro, é a relação com o outro enriquecida pelo excedente de visão para o acabamento transgrediente”. Especialmente aqui, Bakhtin (2011b) refere-se à consciência do autor em relação à consciência da personagem, cujo diálogo é acrescido do excedente de visão estética da primeira sobre a segunda, permitindo o acabamento da obra de arte em sua totalidade. Conforme Bakhtin (2011b), o artista é aquele que não apenas vivencia eticamente sua existência, mas aquele que tam- bém a percebe a partir de um ponto de vista externo, que aprecia-a e examina-a sob o seu excedente de visão: “O artista é aquele que sabe ser ativo fora da vida, não só o que participa de dentro dessa vida (prática, social, política, moral, religiosa) e de dentro dela compreende mas também a ama de fora [...]” (BAKHTIN, 2011b, p. 176).

Dessa forma, a obra de arte apresenta-se como acontecimento artístico vivo, posto que não é objeto de um conhecimento puramente teórico, vazio de significa- ção ou peso axiológico. Ambos concorrem na criação artística do autor. Nessa di- nâmica, o autor é o portador da visão artística e da criação no acontecimento do existir: “O autor ocupa uma posição responsável no acontecimento do existir, opera com elementos desse acontecimento e por isso a sua obra é também um momento desse acontecimento” (BAKHTIN, 2011b, p. 176).

De Bakhtin (2011b), depreende-se muito claramente uma das experiências do sujeito no seu fazer artístico-literário em que se manifesta sua posição axiológica sobre o mundo: o uso das palavras. A obra literária não se realiza com o encaixe estrutural de verbetes a partir de um significado consagrado e estável que delas se entende. Não se compreende a palavra em seu sentido sistêmico, como código. Não há, portanto, interpretação da determinidade linguística, pois não se vê a língua em seus componentes estritamente morfológicos, sintáticos, fonéticos. A língua é mate- rial do escritor, mas sua tarefa artística fundamental é a superação do material. Para a criação, a língua é enformada a partir de posicionamentos axiológicos do autor, os quais só podem ser estabelecidos no mundo da vida. “A língua em si mesma é indi- ferente em termos axiológicos, é sempre escrava e nunca um objetivo, serve ao co- nhecimento, à arte, à comunicação prática, etc.” (BAKHTIN, 2011b, p. 179). O artis- ta, por meio de seus juízos de valor, jamais elaborados em mítico vazio existencial, atribui às palavras determinados sentidos, coincidentes ou não, com os sentidos comumente compartilhados.

Pelo que pode ser compreendido e relacionado a partir do conceito de ato ético, exposto anteriormente, o autor é um sujeito concreto, o qual encarna uma po- sição sócio-histórica na vida, e esta reflete-se, com consciência, sobre o seu ato de escrita. A esse respeito, Bakhtin (2011b, p. 190-1) afirma:

O efetivo ato criador do autor (como aliás qualquer ato em linhas ge- rais) sempre se move nas fronteiras (axiológicas) do mundo estético da realidade (realidade do dado – realidade estética), na fronteira do corpo, na fronteira da alma, move-se no espírito; o espírito ainda não existe; para ele tudo ainda está por vir; para ele tudo que existe já houve.

São precisamente os atos criadores, atos éticos, que busco ao deter-me em autores potiguares. Neles, perscruto suas fronteiras axiológicas, sempre determina- das por suas fronteiras de corpo e de alma, cuja unidade, embebida em uma unidade cultural específica, se manifesta em criações artístico-literárias individuais e únicas.