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No ensaio A morte do autor, publicado em 1968, Barthes (2004) expõe refle- xões contundentes sobre a figura do autor26. Sobre ele, de modo polêmico, prega seu desaparecimento. A argumentação do teórico se guia na compreensão das ori- gens da configuração do autor, que, segundo ele, se cristalizaram com o passar do tempo e ainda repercutem na sua época. Para Barthes (2004, p. 58, grifo do autor):

O autor é a uma personagem moderna, produzida sem dúvida por nossa sociedade na medida em que, ao sair da Idade Média, com o empirismo inglês, o racionalismo francês e a fé pessoal da Reforma, ela descobriu o prestígio do indivíduo ou, como se diz mais nobre- mente, da “pessoa humana”.

Como se vê, para Barthes (2004), o autor como figura de destaque está vin- culado a um período histórico em que correntes filosóficas situaram o sujeito huma- no como centro das dinâmicas da vida. Nesse contexto, a “pessoa humana” está à frente de toda a racionalidade, de toda fé, de toda experiência que rege seu estar no mundo, sendo ainda o eixo para o entendimento de toda a existência.

Desde então, o autor assumiu o protagonismo no campo literário, incluindo-se como tópico fundamental para análises de obras literárias, visto que “[...] a explica-

ção da obra é sempre buscada do lado de quem a produziu, como se, através da

alegoria mais ou menos transparente da ficção, fosse sempre afinal a voz de uma só e mesma pessoa, o autor, a revelar a sua ‘confidência’” (BARTHES, 2004, p. 58, gri- fos do autor). Nessa direção, o valor de uma obra apenas se revela se buscamos os sentidos do texto em relação à vida do sujeito criador.

26 Para Bellei (2014, p. 164), embora Barthes se manifeste sobre a questão autoral de modo mais categórico no ensaio de 1968, ele inicia essa discussão no estudo Sur Racine (1963), em que “aponta para a necessidade de uma crítica capaz de ir além dos estudos tradicionais do autor e sua obra”, voltando ao tema em Sade, Fourier, Loyola (1971).

A força do autor, segundo Barthes (2004), teria percorrido os séculos e se mantido como catalisadora dos interesses sobre a literatura.

O autor ainda reina nos manuais de história literária, nas biografias de escritores, nas entrevistas dos periódicos e na própria consciência dos literatos, ciosos por juntar, graças ao seu diário íntimo, a pessoa e a obra; a imagem da literatura que se pode encontrar na cultura es- tá tiranicamente centralizada no autor, na pessoa, na história, seus gostos, suas paixões (BARTHES, 2004, p. 58).

Embora o “império do autor” persista, Barthes (2004) acredita que já há algum tempo escritores vêm tentando desarticulá-lo. Dentre eles, cita os franceses Stépha- ne Mallarmé (1842-1898), Paul Valéry (1871-1945), Marcel Proust (1871-1922). Con- forme Barthes (2004), Mallarmé – o primeiro nessa ação desestabilizadora – apon- tou para a necessidade de reposicionar a linguagem no lugar daquele que lhe tomou como proprietário, o autor. Para Mallarmé, como para Barthes (2004), quem fala é a linguagem e não o autor: “[...] toda a poética de Mallarmé consiste em suprimir o au- tor em proveito da escritura (o que vem a ser, como se verá, devolver ao leitor o seu lugar” (BARTHES, 2004, p. 59). Em caminho semelhante, Valéry pôs em dúvida e desprezou a ideia de autor como centro literário. Para tanto, enfatizou o caráter lin- guístico da atividade literária e, por meio dos seus livros em prosa, defendeu “a con- dição essencialmente verbal da literatura, em face da qual todo o recurso à interiori- dade do escritor lhe parecia pura superstição” (BARTHES, 2004, p. 59). Proust, por sua vez, construiu em seu extenso romance À la recherche du temps perdu, o qual Barthes (2004) chama de “suas análises”, uma complexa relação entre escritor e personagens, oferecendo “à escritura moderna sua epopeia” (BARTHES, 2004, p. 59). Nesse caso, como nos outros citados, há uma busca da linguagem que se so- brepõe à figura do autor.

Barthes (2004) parece conceber a ausência do autor como fato inequívoco. Consequentemente, considerá-lo para uma intepretação literária seria desnecessá- rio, uma vez que a obra se compõe da sua linguagem, esta “inscrita” e não “expres- sa” pelo autor. Além do mais, “o autor, quando se crê nele, é sempre concebido co- mo passado do seu livro [...]: considera-se que o autor nutre o livro, quer dizer que existe antes dele, pensa, sofre, vive por ele [...]” (BARTHES, 2004, p. 61). Porém,

diferente disso, Barthes (2004) acredita que o “escriptor”27 moderno surge ao mesmo tempo que a sua obra, não vindo nem antes nem depois do escrito: “outro tempo não há senão o da enunciação, e todo texto é escrito eternamente aqui e agora” (BARTHES, 2004, p. 61, grifos do autor). Dito isso, Barthes aparenta acreditar na obra literária como unidade isolada, o texto que nasce sem origem.

Não obstante, mais a frente, Barthes (2004) demonstra essa “origem”, a qual não está no autor, mas em diversas dimensões da cultura em que o escritor está imerso. Nessa ótica, o texto não possui um único significado, não está como palavra inicial ou final, como o seria em um texto de natureza teológica, de um “Autor-Deus”. O texto, na verdade, produz um “espaço de dimensões múltiplas, onde se casam e se contestam escrituras variadas, das quais nenhuma é original: o texto é um tecido de citações, oriundas dos mil focos da cultura” (BARTHES, 2004, p. 62).

Qual seria, então, o papel do escritor nessa tessitura? Conforme Barthes (2004, p. 62), “o escritor pode apenas imitar um gesto sempre anterior, jamais original; seu único poder está em mesclar as escrituras, em fazê-las contrariar-se umas pelas ou- tras, de modo que nunca se apoie em apenas uma delas”. O autor, nesse prisma, ca- rece de autonomia inventiva, restringindo-se ao papel de rearranjador de outros dize- res. Em termos metafóricos, ainda no campo da tessitura, se poderia dizer que o autor desfia uma peça de crochê, por exemplo, para, com o mesmo fio, tecer uma outra.

Ao decretar a morte do autor ou, de modo parcimonioso, sugerir o apagamen- to do seu protagonismo, Barthes (2004) acredita que caem por terra as tentativas de “explicar” a escritura, pois, ao encontrar o autor, teria ele de dar suas hipóteses, seus contextos, suas intenções, restringindo o texto a um sentido único, aquele dado pelo seu criador. “Dar ao texto um autor é impor-lhe um travão, é provê-lo de um significado último, é fechar a escritura” (BARTHES, 2004, p. 63). Esse fechamento, segundo Barthes (2004), é útil apenas aos críticos, que tentam, de todo modo, expli- car o texto a partir do autor. A crise do autor é uma crise também do crítico.

Ao sublimar o autor, os sentidos do texto se abrem, as possibilidades se am- pliam. “Na escritura múltipla, com efeito, tudo está para ser deslindado, mas não pa- ra ser decifrado” (BARTHES, 2004, p. 63, grifos do autor). Não há mais um sentido teológico, uma verdade suprema, inquestionável. Se o texto é composto por uma

27 Para Navarrete (2012), Barthes propõe uma reconceituação de termos: escriptor e não autor; escri-

multiplicidade de dizeres anteriores, não originais, não é o autor quem lhe dá unida- de, mas o leitor, “[...] a unidade do texto não está em sua origem, mas no seu desti- no” (BARTHES, 2004, p. 63). Quando Barthes (2004) diz que é preciso devolver ao leitor o seu lugar, está se referindo ao lugar ativo daquele que torna os sentidos inte- ligíveis. É dele que se deve esperar uma palavra sobre o texto, uma interpretação, nunca única, mas sempre possível. É necessário dar vez ao leitor, e não ao autor, para que a literatura se mantenha múltipla em suas ressonâncias: “[...] o nascimento do leitor deve pagar-se com a morte do Autor”, conclui Barthes (2004, p. 64).

Com o sugestivo título de A morte do autor: um retorno à cena do crime, Bellei (2014) reconstrói os principais argumentos de Barthes (2004) e abre espaço para algumas críticas. Para Bellei (2014), teorias anteriores e mais convencionais já ante- viam o apagamento do autor, mas não determinaram sua morte, como fez Barthes (2004). Wayne C. Booth, por exemplo, no livro The retoric of fiction, de 1961, propu- nha o conceito de “autor implícito”, que se conforma diferente do autor ou do narra- dor. O “autor implícito” é constituído, na verdade, pelo leitor, a partir dos sentidos percebidos na estrutura do texto.

Our sense of the implied author includes not only the extractable me- anings but also the moral and emotional content of each bit of action and suffering of all of the characters. It includes, in short, the intuitive apprehension of a completed artistic whole; the chief value to which this implied author is committed, regardless of what party his creator belongs to in real life, is that which is expressed by the total form. (BOOTH, 1983, p. 73-74)28

À vista disso, percebe-se que o movimento de destituição do poder do autor não era então uma novidade. Bellei (2014) propõe que o uso da expressão “morte do autor” por Barthes (2004) deu-se mais por uma vontade de radicalização de uma teoria, do que pelo rigor teórico esperado de um pensador como ele. Bellei (2014) sugere que essa escolha de Barthes (2004) se baseia nas circunstâncias de publi- cação do ensaio. Segundo Bellei (2014), o texto é erroneamente datado como sendo do ano de 1968. Na verdade, foi apresentado em um simpósio realizado em 1967 e

28 Tradução de Bellei (2014, p. 165): “O sentido que apreendemos do autor implícito inclui não apenas os significados obtidos do texto, mas também o conteúdo moral e emocional de cada elemento de ação e de sofrimento de todos os personagens. Inclui, em resumo, a apreensão de um todo artístico completo; o valor legitimado por esse autor implícito, a despeito das posições ideológicas do autor na vida real, é aquele expresso pela forma total”.

publicado nos Estados Unidos no periódico Aspen (v. 5-6), o qual possuía um cará- ter “experimental, iconoclasta e vanguardista” (BELLEI, 2014, p. 165). Por esse mo- tivo, o tom de manifesto normalmente esperado em publicações desse tipo possi- velmente tenha inflamado as críticas de Barthes (2004) e justificaria os seus “trope- ços argumentativos” (BELLEI, 2014, p. 165).

O possível equívoco de Barthes (2004) em tratar da “morte” do autor, de acordo com a observação de Bellei (2014), não enfraquece sua crítica. Avalio que o objetivo foi expor uma sobrevalorização do autor frente uma marginalização do leitor, sendo este, de fato, o real protagonista do universo literário. Acredito que o posicio- namento de Barthes (2004) é, na verdade, uma defesa de uma função da literatura e seus efeitos. A função seria servir como mediadora da produção de sentidos do lei- tor, sobre o qual recairiam os efeitos, originados na narrativa. Dentre outros, sugiro como efeitos da literatura: reconhecimento de si e do outro, favorecendo a empatia; aquisição de conhecimentos e o impulso à imaginação, promovendo o desenvolvi- mento de ideias; e exercício da ludicidade, implicando no prazer da leitura e de viver.

Na adolescência, tive contato com leituras marcantes que despertaram alguns desses efeitos. Destaco especialmente Capitães da areia e Tenda dos milagres, ambos do escritor baiano Jorge Amado. Àquela época, conhecia o autor apenas das adaptações que se fazia das suas obras para a televisão na forma de minisséries ou telenovelas. Possivelmente, isso me influenciou a buscar seus livros, mas o que hoje questiono é se a autoria determinou os efeitos da leitura sobre mim. Em Capitães da

Areia, acompanha-se a vida de menores marginalizados nas ruas de Salvador, que

encontram no crime uma forma de sobrevivência. Recordo até o hoje o sentimento de liberdade que senti ao ler a história de Pedro Bala, líder do bando, e seus ami- gos. A forma como se deslocavam pela cidade, sem regras, sem questionamentos, infringindo a norma, me fez querer, romanticamente, fazer parte daquela realidade. Por outro lado, em Tenda dos milagres, conta-se a história de Pedro Arcanjo, um mestiço sem formação acadêmica, mas intelectual autodidata. O que me impressio- nou e me marcou foi a força da cultura étnica e religiosa defendida na história. Isso me levou a refletir sobre o papel da cultura na vida de toda a sociedade, bem como sobre a necessidade da sua preservação. Em ambos os livros, percebo os sentidos que me foram provocados e os efeitos da leitura.