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2.3 Paradigma do capitalismo agrário: autores seminais e contemporâneos

2.3.2 Autores contemporâneos: a agricultura familiar e o novo mundo rural

Neste tópico vamos discutir as contribuições de Abramovay (2012) e Silva (1997), obras selecionadas devido à importância para a compreensão do PCA. Além disto, o pensamento destes autores possui um substancial impacto nas políticas públicas no Brasil dos anos de 1990 até o presente momento. Inicialmente, vamos entender como a questão da agricultura familiar está delineada por Abramovay (2012).

Ele afirma que os autores clássicos da questão agrária como Lenin e Kautsky, que estudaram o desenvolvimento do capitalismo no campo, não dão conta de entender os fenômenos contemporâneos e que a agricultura familiar, por ser um fenômeno generalizado nos países capitalistas avançados não pode ser explicada pelas heranças camponesas.

Segundo o supracitado autor, Marx não se ateve a um estudo aprofundado da produção familiar em sua obra, por razões que residem em sua própria estrutura lógica. Continuando sua reflexão, afirma que Marx concebe a sociedade capitalista como o desenvolvimento da contradição entre o caráter privado e social do trabalho, e esta seria uma preparação para uma organização social racionalmente disposta e controlada. Seus estudos visavam o desenrolar deste dilema ou da tragédia – para usar as palavras do próprio Abramovay (2012) – que resultaria na redução de duas classes em luta para a formação de um mundo novo. Neste sentido, o camponês inevitavelmente iria sucumbir. Portanto, “as duas únicas classes que possuem a universalidade de incorporar nelas mesmas os elementos básicos de organização da sociabilidade contemporânea são a burguesia e o proletariado” (ABRAMOVAY, 2012, p. 46, grifo do autor).

Para a social democracia russa no final do século XIX o camponês representava não só um atraso econômico, mas também político, pondo o seguinte dilema para o partido:

Essa constatação colocava aos social-democratas uma espécie de dilema em torno de cuja solução giraram não só seus conflitos internos básicos, mas sua originalidade política e intelectual: como desenvolver a luta por objetivos socialistas numa situação em que é necessário remover os obstáculos representados pelo absolutismo e pelas relações sociais sobre as quais se apoiava o poder da nobreza feudal? (ABRAMOVAY, 2012, p. 50)

A construção teórica a respeito da questão agrária de Lênin e Kautsky está além da realizada em O Capital, que versa principalmente a respeito da renda fundiária (ABRAMOVAY, 2012). Não se encontra um conceito de camponês na obra de Marx, diz Abramovay (2012). É por esta razão que o próprio afirma que não faz sentido para o marxismo falar em economia camponesa. No entanto, para os cientistas Alexander Chayanov e Jerzy Tepicht, ela pode ser sim, um objeto de conhecimento racional e positivo (ABRAMOVAY, 2012). Eles procuram demonstrar as leis de funcionamento desta economia. Para eles “o campesinato existe por uma necessidade social” (ABRAMOVAY, 2012, p. 63, grifo do autor).

Abramovay (2012) afirma que o fundamento da obra de Chayanov está na lei básica da existência camponesa que pode ser resumida na expressão equilíbrio entre trabalho e consumo, sendo este equilíbrio mediado pelo nível de auto exploração do campesinato. Assim, ao contrário dos socialdemocratas, Chayanov via o campesinato em sua unidade, se distanciando da ideia de que ele seria um pequeno capitalista. Por outro lado, Abramovay (2012) aponta limitações na obra de Chayanov e de outros economistas, dizendo que na maioria dos casos, estes não analisam de maneira minimamente satisfatória o ambiente social onde a vida camponesa transcorre e suas leis operam. O próprio Chayanov – continua Abromavay (2012) – em sua obra mais importante, nos diz pouquíssimo a respeito das condições exteriores que permitiam o funcionamento do equilíbrio entre trabalho e consumo.

Para o autor em tela, Chayanov debate o campesinato como se fosse uma entidade abstrata e sem história, onde suas leis possuíam independência do conjunto de circunstâncias exteriores. Portanto,

É neste sentido preciso que o conceito de modo de produção camponês padece do paradoxo de que, embora inspirado no materialismo histórico, é necessariamente uma categoria sem história: ele permanece igual a si mesmo no curso de sua secular existência (ABRAMOVAY, 2012, p. 110, grifo do autor).

Ora, Abramovay (2012) aponta que o debate das relações capitalistas de produção está ausente na obra de Chayanov, e consequentemente, a influência do mercado na economia

camponesa. Seguindo este pensamento, a racionalidade econômica do campesinato é incompleta, pois possui outros critérios de organização da vida, que constitui um conjunto de normas próprias e específicas.

Um dos fatores que explicam esta incompletude é que os mercados capitalistas supõem laços impessoais entre os agentes econômicos e um nível de agilidade e integração entre os diferentes mercados, elementos que não se encaixariam à lógica camponesa. Dois elementos se destacam nas argumentações de Abramovay (2012): a integração parcial aos mercados e o caráter incompleto dos mercados ao qual o campesinato está inserido. Em síntese:

Os mecanismos pelos quais as vendas de produtos se confundem com um conjunto de prestações pessoais (obrigação de vender a um comerciante, atendimento a membros da família em caso de doenças, obrigações comunitárias de natureza ritual etc.) indicam justamente a maneira incompleta, parcial com que os mecanismos de mercado atuam e, portanto, os limites da própria razão econômica no funcionamento das sociedades camponesas (ABRAMOVAY, 2012, p. 113, grifo do autor).

Por outro lado, o próprio “capitalismo é por definição avesso a qualquer tipo de sociedade e de cultura parciais” (ABRAMOVAY, 2012, p. 139-140). Portanto, o ambiente no capitalismo é profundamente hostil ao campesinato, isto se deve, sobretudo, à exposição permanente do campesinato às forças de mercado, à subordinação ao conjunto social dominante, à integração social camponesa parcial, pois sua subsistência vem da autoprodução. O camponês na sociedade capitalista estaria fadado a uma vida precária, sujeitada a uma eterna incompatibilidade.

As sociedades camponesas são incompatíveis com o ambiente econômico onde imperam relações claramente mercantis. Tão logo os mecanismos de preços adquiram a função de arbitrar as decisões referentes à produção, de funcionar como princípio alocativo do trabalho social, a reciprocidade e a personalização dos laços sociais perderão inteiramente o lugar, levando consigo o próprio caráter camponês da organização social (ABRAMOVAY, 2012, p. 128).

Seguindo na mesma direção que Abramovay (2012), Silva (1997) também irá colocar a agricultura familiar enquanto referência para pensar um campo adequado aos interesses dos mercados capitalistas, e com potencial para desenvolver estratégias segundo as necessidades do urbano. Silva (1997) defende que o meio rural brasileiro se urbanizou, e que está cada vez mais difícil delimitar o que é rural e o que é urbano. O rural é entendido por ele como um continuum do urbano do ponto de vista espacial. Por outro lado, do ponto de vista econômico,

as cidades não podem ser identificadas apenas com a atividade industrial. Isto resulta na industrialização da agricultura e no transbordamento do mundo urbano para os espaços outrora classificados como rurais.

Pelo que podemos extrair do texto, Silva (1997) entende o urbano fundamentado principalmente nas atividades econômicas ao qual irá se atrelar, principalmente a atividade industrial, bem como a presença de infraestrutura como saneamento básico, eletricidade, estradas, águas, serviços públicos, por exemplo, como um aspecto de urbanização. Concluímos, a partir disto, que o rural está associado a atividades mais rudimentares, especialmente atividades não industriais, e à precariedade dos serviços citados. Ele contrasta essa sua definição com a do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a classificando como limitada, no sentido em que toma como referência a legislação de cada município, definidas na data do censo populacional.

Segundo Silva (1997), acompanha este processo o fato de que o meio rural não pode ser mais definido a partir de atividades exclusivamente agropecuárias. Consequentemente, cresce cada vez mais no campo o número de trabalhadores part-time ou temporários, principalmente nos países desenvolvidos, que combinam cada vez mais atividades agrícolas e não agrícolas. Este processo se refere à denominada pluriatividade.

A pluriatividade pode se configurar: através de um mercado de trabalho relativamente indiferenciado, que combina desde a prestação de serviços manuais e o emprego temporário nas indústrias tradicionais até a combinação de atividades tipicamente urbanas do setor terciário com o gerenciamento das atividades agropecuárias (SILVA, 1997).

Outro elemento ou forma de pluriatividade é a realização de atividades rurais não agrícolas atreladas à migração das atividades urbanas, principalmente industriais, para o meio rural. Ademais, Silva (1997) reúne os elementos que delineiam o surgimento deste novo mundo rural e que são observados nos países desenvolvidos:

o “desmonte” das unidades produtivas em função da possibilidade de externalização de várias atividades que antes tinham que ser realizadas na fazenda fazenda (sic) através de contratação de serviços externos (aluguel de máquinas, assistência técnica, etc.); b) especialização produtiva crescente permitindo o aparecimento de novos produtos e de mercados secundários, como por exemplo, de animais jovens , mudas e insumos; c) formação de redes vinculando fornecedores de insumos, prestadores de serviços, agricultores, agroindústrias e empresas de distribuição comercial; d) crescimento do emprego qualificado no meio rural, especialmente de profissões técnicas e administrativas de conteúdo tipicamente urbano, como motoristas, mecânicos, digitadores e profissionais liberais vinculados à atividades rurais não agrícolas; e) melhoria da infra-estrutura social e de lazer, além de maiores facilidades de transporte e meios de comunicação, possibilitando maiores facilidades de acesso aos bens públicos como previdência, saneamento básico, assistência

médica e educação, além de uma melhora substancial na qualidade de vida para os que moram nas zonas rurais (SILVA, 1997, p. 6).

Silva (1997) diz que o cenário nestes países não é um “paraíso”, porém a questão que chama à atenção é que a paridade de remuneração entre trabalhadores rurais e urbanos está crescendo. Já no Brasil, também crescem as atividades não agrícolas no meio rural, principalmente as industriais, em primeiro lugar agroindústrias, em segundo lugar atividades ligadas à urbanização do meio rural como: a moradia, o turismo, lazer e outros serviços; e em terceiro, ocorre o crescimento dos sítios de recreio ou chácaras (SILVA, 1997).

Estas atividades não agrícolas no campo, inseridas no contexto da pluriatividade teriam o papel de estabilizar as rendas das pessoas residentes no meio rural em todo o país. Porque, enquanto as rendas daqueles que trabalham em atividades agropecuárias são baixas, tomando como referência o período estudado por Silva (1997) que é os anos 1980 e 1990, aqueles que trabalham em atividades não agrícolas no campo possuem renda mais próxima dos seus pares urbanos.

Em síntese, para este autor, “já não se pode caracterizar o meio rural brasileiro como agrário” (SILVA, 1997, p. 24). Salientamos: principalmente devido a um processo de urbanização do rural. No entanto, de forma controversa a esta afirmação, diz este que não nega o peso do agrário, mas reserva a sua influência maior à região Norte e Nordeste. Para Silva (1997), o que está em construção é a criação de um outro tipo de riqueza no mundo rural, baseada em bens e serviços não materiais e não suscetíveis de desenraizamento. Isto quer dizer que

[...] o espaço rural não mais pode ser pensado apenas como um lugar produtor de mercadorias agrárias e ofertador de mão-de-obra. Além dele poder oferecer ar, água, turismo, lazer, bens de saúde, possibilitando uma gestão multipropósito do espaço rural, oferece a possibilidade de, no espaço local-regional, combinar postos de trabalho com pequenas e médias empresas (SILVA, 1997, p. 25).

Para tal, propõe uma integração da produção agrária, ou seja, da agricultura familiar nas relações socioeconômicas do complexo agroindustrial e nas relações comunitárias locais- regionais, como forma de mitigar os problemas gerados pela radical modernização do agrobusiness. Seria necessário também a retomada da proposta do desenvolvimento rural para gerar novas ocupações, não necessariamente empregos, para aumentar a renda das pessoas residentes no meio rural. Portanto, afirma que estas propostas seriam de substancial relevância para as políticas agrárias.

A partir desta exposição de alguns dos pensadores tanto do PCA quanto PQA buscamos esclarecer alguns temas que são importantes para compreendermos a conflitualidade acadêmica em torno dos estudos agrários, e que nos auxilia também a compreendermos algumas dimensões da conflitualidade em torno da agroecologia, as diferentes perspectivas de seu desenvolvimento e os processos em curso na atualidade.

A conflitualidade acadêmica é alimentada a partir da criação de interpretações distintas a respeito do desenvolvimento do capitalismo no campo. Por outro lado, tanto o capital como os movimentos sociais do campo, por exemplo, podem engendrar territórios imateriais no âmbito acadêmico, a partir de seus think tanks. Neste sentido, questionamos de que maneira a