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Autoria e escritura: o “eu enviesado” da narrativa clariceana

3. SEGUNDO CAPÍTULO

3.3 Autoria e escritura: o “eu enviesado” da narrativa clariceana

Pois dedico esta coisa aí ao antigo Schumann e sua doce Clara que são hoje ossos, ai de nós. Dedico-me à cor rubra e escarlate como o meu sangue de homem em plena idade e portanto dedico-me a meu sangue. Dedico-me sobretudo aos gnomos, anões, sílfides e ninfas que me habitam a vida. Dedico-me à saudade de minha antiga pobreza, quando tudo era mais sóbrio e digno e eu nunca havia comido lagosta. Dedico-me à tempestade de Beethoven. À vibração das cores neutras de Bach. A Chopin que me amolece os ossos. A Stravinsky que me espantou e com quem voei em fogo. À “Morte e Transfiguração”, em que Richard Strauss me revela um destino? Sobretudo dedico-me às vésperas de hoje e a hoje, ao transparente véu de Debussy, a Marlos Nobre, a Prokofiev, a Carl Orff, a Schoenberg, aos dodecafônicos, aos gritos rascantes dos eletrônicos – a todos esses que em mim atingiram zonas assustadoramente inesperadas, todos esses profetas do presente e que a mim me vaticinaram a mim mesmo a ponto de eu neste instante explodir em: eu (LISPECTOR: 1999, p. 9).

Voltemos à “Dedicatória do autor (Na verdade Clarice Lispector)”, em A hora da estrela, para uma reflexão acerca das múltiplas temporalidades, subjacentes à escritura clariceana. Nesta, a escritora afirma que as referências destacadas na dedicatória lhe vaticinaram o ofício de escritor, ao explodir no eu autoral, uma vez que nela “atingiram zonas assustadoramente inesperadas”. Este “eu enviesado” dedica “esta coisa”, tal como um “fenômeno de ordem germinativa”, numa “espécie de surto floral”

(BARTHES: 2004, p.11), à saudade de sua antiga pobreza, a ilustres músicos, como Schumann, Beethoven, Bach, Chopin, Stravinsky, Strauss, Debussy, Marcos Nobre, Prokofiev, Carl Orff, Schönberg, aos dodecafônicos, além de endereçá-la aos gnomos, anões, sílfides, às ninfas que lhe “habitam a vida e aos gritos rascantes dos eletrônicos”.

De acordo com o pensador Michel Foucault (2006, p. 269), “o sujeito que escreve despista todos os signos de sua individualidade particular; a marca do escritor não é mais do que a singularidade de sua ausência; é preciso que ele faça o papel do morto no jogo da escrita”. Com efeito, sob o prisma foucaultiano, à proporção que um autor instaura uma discursividade, produz também a possibilidade e a regra de formação de outros textos, dos quais se engendram novos discursos, portanto o autor de um romance não pode ser reduzido apenas a autor de seu próprio texto, o que consolida a heterogeneidade da autoria, conforme se percebe na “Dedicatória do autor (Na verdade Clarice Lispector)”, na qual se percebe um tom, um etos da escritura clariceana, engendrada “de uma metamorfose cega e obstinada, provinda de uma infra-linguagem” (BARTHES: 2004, p.11), que a engaja e individualiza como uma significativa voz na Literatura Brasileira.

Roland Barthes (2004, p.10-11) considera o estilo como a parte privada do ritual do escritor, que se expande para fora de sua responsabilidade. Numa perspectiva barthesiana, compreendemos que “a linguagem nunca é inocente: as palavras têm uma memória segunda que se prolonga misteriosamente no meio das significações novas” (BARTHES: 2004, p.15), logo assumem esse compromisso entre uma liberdade e uma lembrança, cujo vestígio faz aparecer todo um passado em suspensão, o que faz aflorar a História de maneira muito mais sensível. Por conseguinte, há um Valor inerente à forma literária, através da qual “grandes temas verbais da existência” são escritos, sob uma “dimensão vertical e solitária do pensamento”, que se erguem “das profundezas míticas do escritor”, cujas referências estão no nível de sua própria biologia ou de seu passado, não de uma História.

Para Barthes (2004, p. 10), “a língua está aquém da Literatura, enquanto o estilo está quase além”, haja vista que, por sua origem biológica, “compreende uma Necessidade” e faz parte da própria vida do escritor: “imagens, um fluir, um léxico nascem do corpo e do passado do escritor e se tornam, pouco a pouco, os automatismos mesmos de sua arte”. Roland Barthes (2004, p. 15) considera que não é dado ao escritor escolher a sua escrita numa espécie de arsenal atemporal das formas literárias, uma vez

que a escrita é precisamente o compromisso entre uma liberdade e uma lembrança, que se estabelece sob a pressão da História e da Tradição:

Como Liberdade, a escrita não é mais que um momento. Mas esse momento é um dos mais explícitos da História, visto que a história é sempre e antes de tudo uma escolha e os limites dessa escolha. Porque a escrita deriva de um gesto significativo do escritor é que ela aflora a História de maneira muito mais sensível do que qualquer outro recorte da Literatura (BARTHES: 2004, p.16).

Roland Barthes (2004, p. 4) enfatiza que a História, espécie de fronteira funcional, que carrega os acontecimentos, as situações e as ideias ao longo do tempo histórico, propõe antes os efeitos do que os limites das escolhas do escritor; por conseguinte, ela está diante do escritor como o advento de uma opção necessária entre várias “morais” da linguagem, obrigando-o a significar a Literatura segundo possíveis que ele não domina.

No que concerne à relação entre escritura e História, Paul Ricouer (2007, p. 289), ao desenvolver reflexão acerca da representância, que condensa em si as expectativas, as exigências e as aporias ligadas à intencionalidade historiadora, questiona sobre uma ratificação ou credibilidade ao discurso histórico, ao se submeter a narrativa às formas de um estilo, haja vista que “se as construções da fase da explicação/compreensão visam constituir re-construções do passado, tal intenção parece dita e mostrada na fase representativa”. O pensador considera, pois, que representância “designa a expectativa ligada ao conhecimento histórico das construções que constituem reconstruções do curso passado dos acontecimentos” (RICOEUR: 2007, p. 289).

No primeiro capítulo, destacamos o conceito de representância a partir do “falso livre-arbítrio” com que Rodrigo S.M. capta, por meio da linguagem, a experiência de Macabéa, ao tentar preservar e contar a história da nordestina. Assim, verificamos uma problematização do próprio conceito de “realidade” aplicado ao passado, na medida em que se estabelece um entrecruzamento entre história e ficção. Em A hora da estrela, Rodrigo S.M. narra “apesar de”, constantemente se questiona por qual motivo escreve, assim como não hesita em expor as dificuldades inerentes ao processo de composição literário:

Se esta história não existe, passará a existir. Pensar é um ato. Sentir é um fato. Os dois juntos – sou eu que escrevo o que estou escrevendo. Deus é o mundo. A verdade é sempre um contato interior e inexplicável. A minha vida a mais verdadeira é irreconhecível, extremamente interior e não tem uma só palavra que a signifique. Meu coração se esvaziou de todo desejo e reduz-se ao próprio último ou primeiro pulsar. A dor de dentes que perpassa esta

história deu uma fisgada funda em plena boca nossa. Então eu canto alto agudo uma melodia sincopada e estridente – é a minha própria dor, eu que carrego o mundo e há falta de felicidade. Felicidade? Nunca vi palavra mais doida, inventada pelas nordestinas que andam por aí aos montes. (LISPECTOR: 1999, p. 11-12)

Para Benedito Nunes, o “drama da linguagem” insinua os questionamentos metanarrativos às últimas consequências, visto que Rodrigo S.M., tal como a história que relata sobre o homem jovem que carrega nos ombros um velho na travessia de um rio, demonstra o seu envolvimento com a datilógrafa nordestina, que se lhe “grudou na pele qual melado pegajoso” (LISPECTOR: 1999, p.21) e que insiste em permanecer sobre os seus ombros. Benedito Nunes considera a presença da própria escritora, disputando lugar com a do narrador Rodrigo S.M, como uma forma de desvelamento da máscara ficcional de Clarice Lispector. Assim, a personagem em construção, Macabéa, é para Rodrigo S.M. um incômodo, um fardo, ainda que seja uma lúcida construção ficcional de sua autoria: “tenho um personagem buliçoso nas mãos e que me escapa a cada instante querendo que eu o recupere” (LISPECTOR: 1999, p.22). Para Benedito Nunes (1989, p. 164), “uma outra presença, que disputa com a do narrador, insinua-se nessa modalidade de fala: a presença da própria escritora, já declarada na dedicatória da obra”.

Para o crítico, Clarice Lispector faz-se igualmente personagem, por intermédio de sua máscara pública de ficcionista. Representada por Rodrigo S.M, por meio do qual percebemos uma leitura de mundo, a escritora abre o jogo da ficção e o de sua identidade como ficcionista: “Comprometida com o ato de escrever, a ficção mesma, fingindo um modo de ser ou de existir, demandará uma prévia meditação sem palavras e esvaziamento do eu” (NUNES: 1989, p.165). Benedito Nunes considera que o jogo de identidade da narradora, convertida em personagem “se estende à sua própria narrativa, convertida num espaço literário agônico” (NUNES: 1989, p.168), em cujo processo cabe questionarmos se a escritura, sob “o feeling do fracasso da linguagem”, compreenderia, de acordo com o pensador Jacques Derrida, o seu efeito de phármakon ou veneno, haja vista que aponta para o transbordamento do conceito de linguagem.

Para a ensaísta Jucimara Tarricone (2011, p. 60-61), ao analisar a questão do narrador Rodrigo S.M. e da narrativa, Benedito Nunes desenvolve reflexão acerca do romance e os limites da ficção contemporânea, na medida em que se verifica, na poética clariceana, os reiterados questionamentos, que fundamentam a ficção ao integrá-las à sua matéria: por que narrar? O que narrar? Como e para que narrar? Sob o prisma de

Benedito Nunes, Jucimara Tarricone (2011, p. 62) enfatiza que a escritura clariceana “possui a força da paixão, da paixão pela linguagem em que a vida de Clarice Lispector se resumiu”. Assim, a ensaísta considera que a questão “como narrar” pode ser respondida pelo “improviso verbal” revelador de uma linguagem despojada, tecida pela palavra crua, seca, árida, sem a preocupação de um estilo. Por conseguinte, a questão “para que narrar?” serve, pois, para por em relevo a “tessitura do viver”, bem como para “defender a natureza humana contra a qualidade de alienação que a sociedade lhe impôs” (TARRICONE: 2011, p. 62).

Na poética de Clarice Lispector, na concepção de Benedito Nunes (1989, p. 68), a via introspectiva inverte-se na alienação da consciência de si, visto que o autodilaceramento da escritura, que manifesta essa alienação, “também exterioriza a possibilidade de transgressão que a vida subjetiva comporta”. Verifica-se, assim, uma ontologia à vida interior: “pelo naufrágio da introspecção, a personagem desce às potências obscuras, perigosas e arriscadas do Inconsciente, que não tem nome” (NUNES: 1982, p.20). Com efeito, Benedito Nunes (1989, p. 153) enfatiza que “o espaço literário da errância do sujeito é, na obra de Clarice Lispector, tanto o lugar das inversões e dos antagonismos quanto da negação e do esvaziamento”.

Nessa perspectiva, o “naufrágio da introspecção” compreende, pois, um mergulho ao âmbito ancestral da condição humana, “no subsolo escatológico da ficção, nas águas dormidas do imaginário, comuns aos sonhos, aos mitos e às lendas” (NUNES: 1982, p.20). Sob a transgressão engendrada “pela voz dubitativa de quem narra”, entregue “à impotência da linguagem - aos poderes e à impotência da linguagem, distante e próxima do real, extralinguística, indizível”, inversões súbitas são produzidas, no espaço literário de errância do sujeito, “da inquietude na quietude contemplativa, do ímpeto libertário na renúncia e na abdicação, que restabelecem, de cada vez, os extremos das mesmas polaridades: procura/fuga, encontro/perda, liberdade/necessidade, autenticidade/simulação”, conforme destaca Benedito Nunes (1989, p. 153).

Em entrevista concedida a Derek Attridge, intitulada Essa estranha instituição chamada Literatura, Jacques Derrida (2014, p.49) considera que o espaço da literatura não se reduz a uma ficção instituída, mas também pode ser compreendida como uma instituição fictícia, que, em princípio, “permite dizer tudo”, uma vez que transpõe os interditos, reúne, por meio da tradução, todas as figuras umas nas outras, totaliza formalizando. Por conseguinte, o pensador enfatiza que “a lei da literatura tende, em

princípio, a desafiar ou a suspender a lei. (...) É uma instituição que tende a extrapolar [déborder] a instituição” (DERRIDA: 2014, p. 49).

No que concerne ao jogo entre o texto literário e a referencialidade tética (não da referência ou da relação intencional em geral), Jacques Derrida compreende que não há literatura sem uma relação suspensa com o sentido e com a referência: “Suspensa quer dizer suspensão, mas também dependência, condição, condicionalidade. Em sua condição suspensa, a literatura apenas pode exceder a si mesma. (...) Não se deve escamotear essa dificuldade” (DERRIDA: 2014, p. 70). Ao destacar a referida dificuldade de dissociação da questão da verdade e da própria essência da linguagem, o pensador considera que “a literatura ‘é’ o lugar ou a experiência dessa ‘dificuldade’ que também se tem com a essência da linguagem, com a verdade e com a essência, com a linguagem da essência em geral” (DERRIDA: 2014, p. 71).

No ensaio A farmácia de Platão, Jacques Derrida parte do primeiro ensaio filosófico de Platão, o Fedro, para questionar o que compreende por logografia, destacando-se a ambiguidade e perigos da escritura, relegada a uma importância menor em relação à oralidade do discurso: “Fedro lembra que os cidadãos mais poderosos e mais venerados, os homens mais livres, sentem vergonha (aiskhúnontai) de ‘escrever discursos’ e deixar atrás deles sun-grammata. Eles temem o julgamento da posteridade, temem passar por ‘sofistas’” (DERRIDA: 2005, p. 12). O pensador enfatiza a incompatibilidade do escrito e do verdadeiro no momento em que Sócrates considera como os homens “são levados para fora de si, ausentam-se de si mesmos, esquecem-se e morrem na volúpia do canto” (DERRIDA: 2005, p. 12).

Ao serem comparados a uma droga (phármakon), ao mesmo tempo remédio e veneno, os textos escritos de Fedro trazem, na observação de Sócrates, toda sua ambivalência introduzida no corpo do discurso. Jacques Derrida (2005, p. 14) argumenta que a virtude de fascinação, a potência de feitiço do phármakon podem ser, alternada ou simultaneamente, benéficas ou maléficas:

O phármakon seria uma substância, com tudo o que esta palavra possa conotar, no que diz respeito a sua matéria, de virtudes ocultas, de profundidade críptica recusando sua ambivalência à análise, preparando, desde então, o espaço da alquimia, caso não devamos seguir mais longe reconhecendo-a como a própria anti-substância: o que resiste a todo filosofema, excedendo-o indefinidamente como não-identidade, não-essência, não-substância, e fornecendo-lhe, por isso mesmo, a inesgotável adversidade de seu fundo e de sua ausência de fundo.

gerais, naturais ou habituais. Aqui, ele faz Sócrates sair de seu lugar habitual e de seus caminhos costumeiros. Estes sempre o retinham no interior da cidade. As folhas da escritura agem como um phármakon que expulsa ou atrai para fora da cidade aquele que dela nunca quis sair, mesmo no último momento, para escapar da cicuta. Elas o fazem sair de si e o conduzem por um caminho que é propriamente de êxodo (DERRIDA: 2005, p. 14-15).

Jacques Derrida compreende a escritura, enquanto phármakon, remédio ou veneno, como uma categoria ambígua, por não apresentar uma essência estável, por não se constituir numa substância e por não se apresentar como uma síntese dialética entre substância e anti-substância. Não obstante, o pensador enfatiza que o escritor, em sua experiência de escrita, não pode deixar de estar envolvido, com relação ao passado, seja o da literatura, da história, da filosofia, ou cultura em geral, uma vez que “a experiência da ‘desconstrução’, de questionamento, de leitura ou de escritura ‘desconstrutora’ de nenhuma forma ameaça ou lança suspeita sobre o enjoyment” (DERRIDA: 2014, p. 84). Assim, o pensador considera que esse simulacro de levantamento do recalque, que permite a ambiguidade da escritura enquanto phármakon, nunca é neutro e sem eficácia, porquanto a desconstrução efetiva tem como efeito, nos limites da suspensão entre o sentido e a referencialidade, “senão como missão, liberar o gozo proibido” (DERRIDA: 2014, p. 84-85)

Em A escritura e a diferença, Jacques Derrida compreende que, para apreender a operação criadora da escritura, conforme se verifica na narrativa metalinguística de A hora da estrela, é preciso “virarmo-nos para o invisível interior da liberdade criadora. É preciso separarmo-nos para atingir na sua noite a origem cega da obra” (DERRIDA: 1995, p. 19). Para o pensador, esta experiência de conversão que instaura a escritura, o ato literário, no qual o crítico Benedito Nunes identifica o jogo de identidade da escritora Clarice Lispector convertida em personagem Rodrigo S.M., compreende, apenas enquanto metáfora, uma separação, exílio, que designam uma ruptura e um caminho no interior do mundo, tratando-se, pois, “de uma saída para fora do mundo, em direção a um lugar que nem é um não-lugar nem um outro mundo, nem uma utopia nem um álibi” (DERRIDA: 1995, p. 19). Em A hora da estrela, Rodrigo S.M. não hesita em afirmar o seu cansaço, uma exigência de separação da escrita, na medida em que desenvolve reflexão acerca do seu árduo processo de composição, por conta do envolvimento com a personagem Macabéa, bem como por conta de sua busca da “palavra no escuro”:

Estou absolutamente cansado de literatura; só a mudez me faz companhia. Se ainda escrevo é porque nada mais tenho a fazer no mundo enquanto espero a morte. A procura da palavra no escuro. O pequeno sucesso me invade e me põe no olho da rua. Eu queria chafurdar no lodo, minha necessidade de baixeza eu mal controlo, a necessidade da orgia e do pior gozo absoluto. O pecado me atrai, o que é proibido me fascina. Quero ser porco e galinha e depois matá-los e beber-lhes o sangue. Penso no sexo de Macabéa, miúdo mas inesperadamente coberto de grossos e abundantes pêlos negros – seu sexo era a única marca veemente de sua existência.

Ela nada pedia mas seu sexo exigia, como um nascido girassol num túmulo. Quanto a mim, estou cansado. Talvez da companhia de Macabéa, Glória, Olímpico. O médico me enjoou com sua cerveja. Tenho que interromper esta história por uns três dias (LISPECTOR: 1999, p. 70).

Compreende-se, portanto, sem se neutralizar a força do conteúdo, que o caminho percorrido pelo nome Clarice Lispector inscrito na capa do livro, presente também na “Dedicatória do Autor (Na verdade Clarice Lispector)” e que, segundo o jogo de identidade proposto pelo crítico Benedito Nunes, estaria na própria composição da narrativa por meio da personagem Rodrigo S.M., atinge a “origem cega da obra”, sob temporalidades distintas, ao ser convertido, ou mesmo disseminado em forma de escritura. A personagem Rodrigo S.M. instiga-nos a pensar acerca dessa disseminação do autor em sua escritura, ao afirmar, após os três dias que reservara ao descanso, a própria despersonalização, como quem retira a própria máscara ou a própria roupa: “Nestes últimos três dias, sozinho, sem personagens, despersonalizo-me e tiro-me de mim como quem tira uma roupa. Despersonalizo-me a ponto de adormecer” (LISPECTOR: 1999, p. 70).

Segundo Jacques Derrida (1995: p. 24-25), a escritura é, para o escritor, perigosa e angustiante pelo fato de ser constantemente inaugural, logo não há segurança contra o risco de uma precipitação essencial, haja vista que, ao ser inscrita, desconstrói os automatismos, por conseguinte a palavra é arrancada ao seu sono de signo, “quando o escrito está defunto como signo-sinal que nasce como linguagem” (DERRIDA: 1995, p. 26). Para o pensador, a escritura jamais poderá ser compreendida como a “pintura da voz”, porquanto “ao consignar a palavra, a sua intenção essencial e o seu risco mortal consistem em emancipar o sentido em relação a todo o campo de percepção atual, a esse compromisso natural no qual tudo se refere ao afeto de uma situação contingente” (DERRIDA: 1995, p. 26).

No que concerne à estrutura paradoxal dessa “estranha instituição chamada literatura”, Jacques Derrida compreende que, dada a sua fragilidade e ausência de especificidade e de objeto, “sua história se constrói como a ruína de um monumento que nunca existiu. É a história de uma ruína, a narrativa de uma memória que produz o

acontecimento por relatar e que nunca terá estado presente” (DERRIDA: 2014, p. 60). Jacques Derrida (1995, p. 19) enfatiza que, tal como a arquitetura de uma cidade desabitada ou destruída, ou antes assombrada pelo sentido ou pela cultura, reduzida ao esqueleto por uma catástrofe da natureza ou da arte, o relevo e o desenho das estruturas de uma obra, na qual se encontra a autoria, tornam-se mais visíveis “quando o conteúdo, que é a matéria viva do sentido, se encontra neutralizado”.

Nessa perspectiva, num traço autobiográfico mínimo, como se verifica na escritura poética clariceana por meio de um “eu enviesado”, pode estar reunida a maior potencialidade da cultura histórica, teórica, linguística e filosófica. Jacques Derrida (DERRIDA: 2014, p. 61) considera que “a potência que há, como linguagem ou como escritura, é a de que uma marca singular seja também repetível, iterável, como marca”. O ato literário, numa concepção derridiana, procede do querer-escrever; por conseguinte, ao reconhecer a responsabilidade perante a vocação da palavra “pura” que,

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