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Construção de significações provisórias: a fragmentação do processo narrativo

3. SEGUNDO CAPÍTULO

3.1 Construção de significações provisórias: a fragmentação do processo narrativo

A FRAGMENTAÇÃO DO PROCESSO NARRATIVO

O cavalo e a carroça

Estavam atravancados no trilho E como o motorneiro se impacientasse Porque levava os advogados para os escritórios Desatravancaram o veículo

E o animal disparou Mas o lesto carroceiro Trepou na boléia

E castigou o fugitivo atrelado Com um grandioso chicote

(ANDRADE, Mário de. Pau brasil: 1924)

Ao estabelecer comparação entre os processos históricos e sociais no poema “Pobre alimária”, de Mário de Andrade, e aspectos da narrativa A cidade sitiada, de Clarice Lispector, o crítico Silviano Santiago problematiza o entrecruzamento entre história e ficção, no qual se verificam “as relações entre as construções da história e seu contraponto, ou seja, um passado simultaneamente abolido e preservado em seus vestígios”. Assim como Mario de Andrade narrava a modernidade de São Paulo pelo conflito entre o carroceiro (o Brasil arcaico) e o motorneiro (o Brasil moderno).

A cidade de São Geraldo, na visão de Clarice Lispector, para atingir a condição de metrópole, enfrentava semelhante transição na medida em que o subúrbio, “no ano de 192... já misturava ao cheiro de estrebaria algum progresso” e “não se poderia atravessar uma rua sem desviar-se de uma carroça que os cavalos vagarosos puxavam, enquanto um automóvel impaciente buzinava atrás lançando fumaça” (LISPECTOR: 2009, p.11). Nesta cisão cultural que acompanha o processo de modernização na cultura brasileira, a escritora narra os acontecimentos sob um notável procedimento que tem a narrativa, segundo destaca Paul Ricoeur (2012b, p. 103), “de poder se desdobrar em enunciação e enunciado”, como se verifica na imprecisão, na fluidez que podemos inferir da data “no ano de 192...”, o que privilegia a experiência do tempo para além de uma cronologia linear.

Verifica-se, em A cidade sitiada, uma dialética “de um complexo formado de tempos sociais distintos, cuja simultaneidade é estrutural, pois estrutural é a presença de dominantes e dominados, e estrutural é a sua contradição” (BOSI: 1992, p. 62). No ensaio Dialética da colonização, o crítico Alfredo Bosi (1992, p. 51) considera que “esse coabitar do arcaico com o modernizador não seja um paradoxo conjuntural, mas um fenômeno recorrente na história da colonização”; por conseguinte, na visão de

Alfredo Bosi, os projetos mais agressivos do capitalismo ocidental se plantam por entre modos de viver antigos e resistentes.

Paul Ricoeur, a partir do conceito de representância, problematiza o paralelo entre “realidade” aplicada ao passado e a ficção “irreal”, considerando os efeitos de revelação e transformação da vida e dos costumes resultantes da leitura: “É através da leitura que a literatura retorna à vida, isto é, ao campo prático e pático da existência” (RICOEUR: 2010c, p. 172). No que concerne ao âmbito “prático e pático da existência”, no qual se encontra o complexo formado de tempos sociais distintos, resultante da coabitação do arcaico com o processo modernizador, Clarice Lispector pode vivenciar, ao longo de sua formação literária e cultural, temporalidades distintas que permitiram enxergar tempos sociais distintos. Na crônica “Literatura e Justiça”, a escritora enfatiza a importância do fato social em seu processo de criação literária: “Desde que me conheço o fato social teve em mim importância maior do que qualquer outro: em Recife os mocambos foram a primeira verdade para mim. Muito antes de sentir ‘arte’, senti a beleza profunda da luta” (LISPECTOR: 1999, p. 29).

Para Paul Ricoeur, o trabalho de refiguração da práxis pela narrativa, bem como do presente real, documentado, compreende o desafio de mostrar como a refiguração do tempo tanto pela história quanto pela ficção se concretiza por meio dos empréstimos que cada modo narrativo toma um do outro:

Esses empréstimos consistirão no fato de que a intencionalidade histórica só se dá incorporando à sua perspectiva os recursos de ficcionalização que remetem ao imaginário narrativo, ao passo que a intencionalidade da narrativa de ficção só produz seus efeitos de detecção e de transformação do agir e do parecer assumindo simetricamente os recursos de historização que lhe oferecem as tentativas de reconstrução do passado efetivo. Dessas trocas íntimas entre historização da narrativa de ficção e ficcionalização da narrativa histórica, nasce o chamado tempo humano, que nada mais é que o tempo narrado. (RICOEUR: 2010c, p. 173)

No caso do escritor, os empréstimos recíprocos entre recursos da intencionalidade histórica e recursos de ficcionalização da narrativa compreendem também o processo de desapropriação de suas leituras, o que consolida o estilo de sua escrita e, por conseguinte, favorece a obnubilação dos seus motivos mais secretos. Cada leitura do escritor, enquanto sujeito-leitor, encadeia-se num processo de descoberta, de revelação, em que o imaginário lida com o encantamento, com o mistério; em contraste, todavia, com as restrições impostas pela realidade, conforme a escritora narra no conto

“Felicidade clandestina”, no qual se verifica uma verossímil tentativa de reconstrução do passado efetivo.

Nesse conto, a narradora-personagem, em tom autobiográfico, rememora as humilhações a que se submetia ao implorar emprestados os livros de uma colega de infância, no Recife, que “possuía o que qualquer criança devoradora de histórias gostaria de ter: um pai dono de livraria” (LISPECTOR: 1998g, p. 10). Com fascínio e inquietação, revela o desejo de ler os livros que a colega tinha, mas que não lia, principalmente As Reinações de Narizinho, de Monteiro Lobato8, o qual “como casualmente” informou-lhe que possuía, daí o seu “talento para a crueldade”: “Era um livro grosso, meu Deus, era um livro para se ficar com ele, comendo-o, dormindo-o. E completamente acima de minhas posses” (LISPECTOR: 1998g, p.10).

A torturante expectativa do empréstimo, sucessivamente adiado, só termina quando a mãe da garota intervém, permitindo-lhe ficar com o livro “por quanto tempo quiser”. Tal experiência proporciona-lhe o desvelamento do encanto, uma vez que elucida uma das peculiaridades de sua poética, a clandestina felicidade, com frequência vivenciada por suas personagens.

Chegando em casa, não comecei a ler. Fingia que não o tinha, só para depois ter o susto de o ter. Horas depois abri-o, li algumas linhas maravilhosas, fechei-o de novo, fui passear pela casa, adiei ainda mais indo comer pão com manteiga, fingi que não sabia onde guardara o livro, achava-o, abria-o por alguns instantes. Criava as mais falsas dificuldades para aquela clandestina que era a felicidade. A felicidade sempre iria ser clandestina para mim. Parece que eu pressentia. Como demorei! Eu vivia no ar... Havia orgulho e pudor em mim. Eu era uma rainha delicada.

Às vezes sentava-me na rede, balançando-me com o livro aberto no colo, sem tocá-lo, em êxtase puríssimo.

Não era mais uma menina com um livro: era uma mulher com seu amante. (LISPECTOR: 1998g, p. 12)

A excitação pela proximidade do livro transforma-o em objeto erotizado: “um livro grosso (...) para se ficar vivendo com ele, comendo-o, dormindo-o”. Para o crítico Ricardo Iannace (2001, p. 50), “este amante com o qual se mantém uma ligação clandestina, proibida, é por sugestão o leitor, a quem se dirige o autor de maneira sigilosa e fugaz”, imprescindível na composição do “tempo narrado”. Nesse sentido, do sucessivo adiamento, da clandestina felicidade, podemos inferir um “jogo de sedução”,

8 Quanto a Monteiro Lobato, Clarice Lispector permanece-lhe fiel até a maturidade, como afirma em

crônica ao Jornal do Brasil (LISPECTOR, apud GOTLIB: 1995, p. 108), intitulada “Fidelidade”: “Quanto a mim, continuo a ler Monteiro Lobato. Ele deu iluminação de alegria a muita infância infeliz. Nos momentos difíceis de agora, sinto um desamparo infantil, e Monteiro Lobato me traz luz”.

existente entre leitor e texto, cujo brio seria “a sua vontade de fruição”. Para Barthes (2004, p.20), o texto de fruição é “aquele que põe em estado de perda, aquele que desconforta (talvez até um certo enfado), faz vacilar as bases históricas, culturais, psicológicas do leitor, a consistência dos seus gostos, de seus valores e de suas lembranças, faz entrar em crise sua relação com a linguagem”. No conto “Felicidade clandestina”, a escritora transforma a relação, aparentemente ingênua, entre a menina e o livro, numa relação erótica, entre “uma mulher com seu amante”, na qual se verificam as trocas íntimas entre a historização da narrativa de ficção e a ficcionalização da narrativa histórica.

Para o crítico Silviano Santiago, Clarice Lispector pertenceria a uma categoria muito especial de ficcionistas, onde é alta a densidade autobiográfica nos textos propriamente ficcionais, o que favorece a identificação dos empréstimos dos recursos de ficcionalização e historização da narrativa e suas múltiplas temporalidades. Na crônica “Lembrança de uma fonte, de uma cidade”, Clarice Lispector relembra a monotonia de Berna, onde morou com o marido Amaury Gurgel Valente e tiveram o primeiro filho, de abril de 1946 a maio de 1949, assim como enfatiza as condições do processo de composição de A cidade sitiada: “o esforço de escrevê-lo me ocupava, salvava-me daquele silêncio aterrador das ruas de Berna, e quando terminei o último capítulo, fui para o hospital dar à luz o menino. Berna é uma cidade livre, por que então eu me sentia tão presa, tão segregada” (LISPECTOR: 1999, p. 270).

Conforme destacado no primeiro capítulo, Clarice Lispector sofre inquietação e estranheza com a vida tranquila e solitária dos primeiros anos em Berna, “uma vida exteriormente calma e interiormente ocupada” (LISPECTOR: 2007, p.132). O contexto de incerteza e silêncio das pessoas da “sólida Berna”, de nebulosidade, após as catastróficas guerras, em contraste com a realidade do Brasil, onde coabitavam um paradoxal amálgama de estruturas sociais arcaicas e as forçadas tentativas de modernização dos centros urbanos, evidenciam os movimentos físicos em diferentes temporalidades vivenciadas pela escritora. Na crônica “Lembrando uma cidade”9 (Fundação Casa de Rui Barbosa: CL: 48, p.i), é possível verificar empréstimos dos recursos de ficcionalização e historização da narrativa, haja vista que a escritora descreve o ambiente de silêncio e mistério, “é o que vejo de uma janela de Berna”:

9 A crônica teve como primeiro título “Lembrando uma cidade” (Fundação Casa de Rui Barbosa: CL: 48,

O forasteiro, tendo diante dos olhos essa beleza perfeita, não saberá talvez elucidar o seu mistério: a cena suíça tem um excesso de evidência de beleza. Após a primeira sensação de facilidade, segue-se a ideia do indevassável. Cartão-postal, sim. Mas aos poucos a imobilidade e o equilíbrio começam a inquietar.

Olha-se para as montanhas ao longe, e é tanto e tranquilo espaço. Mas na pequena cidade alta, de casas e igrejas apertadas por muros que já tombaram, há uma concentração íntima e severa. Na cidade de torres, becos, ogivas e silêncio, o Demônio terá sido expulso para além dos Alpes. Sem o Demônio, restou uma paz perturbadora, marcas de uma vida que se formou com dureza, (...) sinais de conquista lenta, aperfeiçoamento obstinado e penoso.

Obstinação de manter afastado o Demônio? Obstinação que se trabalha nessa ânsia tão suíça de limpeza, vontade de copiar em terra a clareza do ar, obediência à lei de nitidez que a montanha, na sua implacável fronteira, dita. Vontade de imolar a coisa humana, fatalmente impura e desordenada, à límpida abstração dessa natureza. A ordem não é mais um meio, é necessidade em si mesma moral. A ordem não é mais um meio. A ordem é o único ambiente onde um homem suíço pode, na Suíça, respirar. Fora da Suíça, ele se espanta, encantado com aquele Demônio que ele mesmo expulsou.

A descrição da cena suíça abrange desde aspectos geográficos, da pequena cidade alta, dos Alpes, “de casas e igrejas apertadas por muros que já tombaram”, a relacionados à História, ao processo civilizatório do país, “sinais de conquista lenta, aperfeiçoamento obstinado e penoso”; de forma personificadora, à proporção que contrasta o ambiente silencioso, com um “excesso de evidência de beleza”, com o alegórico Demônio, expulso para além dos Alpes. O olhar do forasteiro enfrenta, pois, o desafio de elucidar, em detrimento dos impulsos instintivos, um mistério que subjaz à obstinação suíça pela ordem, por meio da qual se vislumbra “imolar a coisa humana, fatalmente impura e desordenada, à límpida abstração dessa natureza”.

O excesso de evidência de beleza de Berna, obstinada pela ordem, sob um ambiente ainda à sombra das Grandes Guerras, causara estranhamento à escritora, em face do contraste entre realidades sociais e temporalidades distintas às que vivenciara no Brasil. Nos fragmentos aforísticos de “Seco estudo de cavalos”, Silviano Santiago considera que a escritora reescreve parte considerável do primeiro capítulo do romance A cidade sitiada, no qual se verificam aspectos arcaicos, de desordem, que permanecem resistentes na realidade social brasileira, mesmo após os processos de modernização, portanto o crítico enfatiza que “no texto curto de Clarice Lispector se recalcam, por exemplo, ‘os gritos com que os carroceiros imitavam os animais para falar com eles’ (grifo nosso)’, manifesto no romance” (SANTIAGO: 2004, p. 219), o que pode ser verificado no fragmento “O cavalo perigoso”:

Na cidadezinha do interior – que se tornaria um dia uma pequena metrópole – ainda reinavam os cavalos como proeminentes habitantes. Sob a necessidade

cada vez mais urgente de transporte, levas de cavalos haviam invadido o lugarejo, e nas crianças ainda selvagens nascia o secreto desejo de galopar. Um baio novo dera coice mortal num menino que ia montá-lo. E o lugar onde a criança audaciosa morrera era olhado pelas pessoas numa censura que na verdade não sabiam a quem dirigir. Com as cestas de compras nos braços, as mulheres paravam olhando. Um jornal se inteirara do caso e leu-se com certo orgulho uma nota com o título de O Crime do Cavalo. Era o Crime de um dos filhos da cidadezinha. O lugarejo então já misturava a seu cheiro de estrebaria a consciência da força contida nos cavalos.

O Crime do Cavalo compreende um marco para a cidade de São Geraldo, a partir do qual a cidade passa a ser notada por uma esfera comunicacional mais ampla, o jornal. Conforme enfatiza o crítico Carlos Mendes de Sousa (2004, p.159), o referido fato “conduz-nos à fábula fundadora onde o primeiro nome se liga a um episódio protagonizado por esses animais que figuram a exaltação da força originante. Crianças e cavalos na representação do excesso: da energia incontida provoca-se o acidente”. A fusão de elementos entre crianças e os cavalos, no que concerne ao aspecto selvagem junto ao “secreto desejo de galopar” ratificam a condição arcaica do lugarejo que se tornaria uma pequena metrópole.

Em “Seco estudo de cavalos”, Silviano Santiago enfatiza que, ao desaparecerem o narrador objetivo e o personagem em terceira pessoa, ambos são substituídos pelo narrador-personagem subjetivo, “um ‘eu’ que passa a representar e a agir como a ‘moça’ Clarice” (SANTIAGO: 2004, p. 220), portanto o crítico ratifica sua concepção de densidade autobiográfica nos textos propriamente ficcionais da escritora, uma vez que considera os fragmentos aforísticos de “Seco estudo de cavalos” uma série de reflexões dominadas pela subjetividade da escritora, responsável pela narrativa da experiência com cavalos e também pelas novas observações de caráter comportamental e filosófico sobre “moça e cavalo”. No fragmento “Os olhos do cavalo”, as múltiplas temporalidades que transitam tanto em “Seco estudo de cavalos” quanto no romance A cidade sitiada, em cujas narrativas se verifica a coabitação do arcaico com o processo de modernização do mundo Ocidental, evidenciam os movimentos físicos e psicológicos da escritora em seu processo de composição, ao imergir no recôndito âmbito da introspecção:

Vi uma vez um cavalo cego: a natureza errara. Era doloroso senti-lo irrequieto, atento ao menor rumor provocado pela brisa nas ervas, com os nervos prestes a se eriçarem num arrepio que lhe percorreria o corpo alerta. O que é que um cavalo vê a tal ponto que não ver o seu semelhante o torna perdido como si próprio? É que – quando enxerga – vê fora de si o que está dentro de si. É um animal que expressa pela forma. Quando vê montanhas,

relvas, gente, céu – domina homens e a própria natureza. (LISPECTOR: 1999, p. 37)

Para o crítico José Miguel Wisnik (1988, p. 287), a expressão vertical do olhar, metafísica, na poética clariceana, remete-se à dimensão da experiência e não se separa do concreto, conforme se verifica a partir do estranhamento em relação ao “cavalo cego”, no trecho acima de “Os olhos do cavalo”, o que aproxima o texto de Clarice Lispector à concepção benjaminiana, acerca do Surrealismo, de revelação ou “iluminação profana”, de inspiração materialista e antropológica, identificado a um tipo de olhar que sonda o impenetrável no cotidiano, e o cotidiano no impenetrável: “De nada nos serve a tentativa patética ou fanática de apontar no enigmático o seu lado enigmático; só devassamos o mistério na medida em que o encontramos no cotidiano, graças a uma ótica dialética que vê o cotidiano como impenetrável e o impenetrável como cotidiano” (BENJAMIN: 1994, p. 33).

A partir da análise do conto “O ovo e a galinha”, José Miguel Wisnik (1988, p. 287) compreende, ao analisar o ovo doméstico e cotidiano, “prototípico, alegórico, marca sublinhada e apagada de um real que hesita entre a consciência e o inconsciente, o eu e o Outro”, que a visão, na poética clariceana, “não se limita a comentar as vicissitudes do olho e do pensamento diante da coisa, mas cifra na própria escolha do objeto arquétipo, matriz e produto final, côncavo e convexo, a um só tempo um modelo de introversão (puro conteúdo oculto) e de extroversão (aparência sem sombra)”. Em “Os olhos do cavalo”, os referidos modelos de introversão e extroversão são pensados a partir da forma do animal, do encontro com o Outro, o que evidencia, ao questionar a cegueira do cavalo, um tipo de olhar que sonda “o impenetrável no cotidiano, e o cotidiano no impenetrável”: “O que é que um cavalo vê a tal ponto que não ver o seu semelhante o torna perdido como si próprio? É que – quando enxerga – vê fora de si o que está dentro de si” (LISPECTOR: 1999, p. 37) .

Conforme considera o crítico Alfredo Bosi (1988, p. 79), “a corporeidade, imanente na expressão do olhar, busca e acha suas metáforas no ser vivo, não excluindo nossos parentes mais próximos, os animais”. O crítico enfatiza que, além de descrever os seus limites, as suas determinações objetivas, situar o olhar compreende uma sondagem da qualidade complexa da sua intencionalidade:

O que é “puro” e o que é “impuro” no interesse, no empenho, na paixão com que o olhar fita as pessoas e as coisas num processo labiríntico onde se enlaçam amor e paixão, medo e conhecimento? A hermenêutica da

linguagem cotidiana, com seus símbolos e figuras e suas alianças de ver e sentir, me parece um dos caminhos para fazer esse exercício de compreensão. (BOSI: 1988, p. 79)

No ensaio Clarice Lispector: uma poética do olhar, a ensaísta Regina Pontieri considera que A cidade sitiada é uma tentativa radical de percepção e construção da alteridade, na qual é possível verificar a referida hermenêutica da linguagem cotidiana, na medida em que a ensaísta enfatiza que “essa radicalidade subverte a forma usual de construção do mundo, alterando-a vertiginosamente e apontando para o humano como vidente-visível” (PONTIERI: 2001, p. 85). Nessa perspectiva, Regina Pontieri destaca que a experiência artística realizada pelo trabalho clariceano em A cidade sitiada se põe como costura pelo avesso ao se tornar “lugar de prática de uma literatura do concreto, do material” (PONTIERI: 2001, p. 85).

Sob uma ontologia do sensível, em Fenomenologia da percepção, o pensador Merleau-Ponty (1999, p. 105) compreende que “olhar um objeto é vir habitá-lo e dali apreender todas as coisas segundo a face que elas voltam para ele”. Nesse sentido, uma hermenêutica da linguagem cotidiana começa por uma abertura ao olhar do Outro, o qual se encontra mergulhado no espaço fluido e aberto da visibilidade. Conforme Alfredo Bosi (1988, p. 81), o olhar fenomenológico, na esfera do pensamento de Merleau-Ponty, “vai descobrindo, perfil a perfil, os aspectos coextensivos ao olho e ao corpo, ao corpo e ao mundo vivido”. O crítico considera que a misteriosa realidade, com seus símbolos e figuras e suas alianças de ver e sentir, na linguagem cotidiana, é “a nossa escola do olhar, e o seu método encontra na descrição do fenômeno pictórico um terreno fértil de exercício” (BOSI: 1988, p. 81).

A ensaísta Regina Pontieri (2001, p. 185), na esteira do pensamento de Merleau- Ponty, estabelece comparação entre a narrativa de A cidade sitiada e a arte pictórica ao considerar que esta narrativa “se apresenta como tradução descritivo-ficcional de uma realidade cuja essência é a aparência. Essa tradução se faz pela narrativa que se refrata, concretizando-se através de corpos expostos à visão” (PONTIERI: 2001, p. 185). Não obstante, no que se refere à comparação entre a narrativa clariceana e a arte pictórica, Regina Pontieri enfatiza que a obra de Lispector apresenta uma realidade que tende “a se fechar sobre si como forma de evitar a voragem da força que arrasta para o abismo da não-linguagem, (...) opera ao fim a introjeção explícita do vidente no visível, do escritor na escritura” (PONTIERI: 2001, p. 185-186).

Para Jean Paul Sartre, as artes de uma mesma época se influenciam mutuamente e são condicionadas pelos mesmos fatores sociais, porém considera que não há

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