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A autorização para instalações portuárias situadas fora do porto organizado

Nos tópicos anteriores, expusemos as diretrizes adotadas pela Lei nº 12.815/2013, bem como as principais características dos instrumentos previstos na referida lei para a outorga do serviço portuário no âmbito do porto organizado. A partir desse momento, passaremos a tratar do tema central objeto deste estudo, qual seja a autorização. O objetivo principal deste tópico é estabelecer com nitidez os critérios que diferenciam a autorização dos demais instrumentos de outorga previstos na referida lei.

A autorização é a modalidade de outorga cabível em relação a instalações portuárias situadas fora da área do porto organizado (art. 1º, § 2º, da Lei nº 12.815/2013), enquanto que as demais modalidades são voltadas para o porto organizado. A concessão envolve a cessão onerosa do porto organizado como um todo, bem como a prestação de serviços de administração do porto. Já o arrendamento tem por objeto a cessão de parcela da área do porto organizado, bem como a prestação do serviço público portuário no âmbito da instalação arrendada.

Tanto a concessão como o arrendamento envolvem a cessão de bem público. Já a autorização implica tão-somente a delegação do serviço portuário titularizado pela União. O terreno sobre o qual se funda a autorização é privado, devendo o autorizatário comprovar posse legítima sobre tal área para que se possa dar início ao procedimento de outorga (art. 11, parágrafo único).

O que justifica a outorga ao autorizatário é a circunstância de o serviço portuário ser titularizado pela União, por imposição constitucional.103 Historicamente, os portos eram atrelados a modalidades de uso de bem público (concessão de obra pública, arrendamento de bem público etc.). Na Constituição atual, não há associação necessária entre o uso de bem público e o serviço portuário. O serviço portuário tem assento constitucional autônomo, cabendo à União legislar sobre os diversos regimes de prestação do referido serviço, não

103 Art. 21, XII, alínea “f” (BRASIL, 1988).

necessariamente vinculados ao uso de bem público.104 Portanto, a autorização é uma modalidade de outorga do serviço portuário que não está atrelada à utilização de bem público, diferenciando-se do arrendamento e da concessão quanto a esse último aspecto.

A Lei nº 12.815/2013 prevê a outorga de autorizações para as seguintes modalidades de instalações portuárias: (i) terminal de uso privado;105 (ii) estação de transbordo de carga;106 (iii) instalação portuária pública de pequeno porte;107 e (iv) instalação portuária de turismo.108 Dentre tais modalidades de instalação, a que desperta maior interesse prático é o terminal de uso privado. As demais modalidades são pouco usuais. Em contraste com a autorização, o arrendamento permite apenas a exploração de instalações portuárias.109

Quando comparado à concessão e ao arrendamento (mecanismos de outorga de áreas situadas no porto organizado), verifica-se que o contrato de autorização não conterá cláusulas relativas ao reajuste tarifário e à reversão de bens à União. Isso ocorre por expressa determinação legal, ex vi do art. 8º, § 1º, da Lei n º 12.815/2013. De forma a reforçar a inexistência de cláusula de reversão de bens em contratos para outorga de autorização, o art. 5º, § 2º, prevê que os bens vinculados à concessão ou ao arrendamento reverterão ao patrimônio da União, sendo que tal previsão inexiste para o regime de autorização.

Portanto, não há diferença entre a autorização, a concessão e o arrendamento quanto à natureza do vínculo. As três modalidades de outorga geram vínculo contratual entre a União e o delegatário do serviço portuário. A autorização portuária conferida com base na Lei nº 12.815/2013 não é unilateral, ao contrário do que ocorre com algumas outras espécies de autorização.110

De acordo com o art. 26, § 1º, do Decreto nº 8.033/2013, a operação da instalação portuária será iniciada em três anos a partir da outorga de autorização, “contado da data de

104 Ou exploração indireta, como previsto no art. 1º, § 1º e § 2º da Lei nº 12.815/2013 (BRASIL, 2013b).

105Terminal de uso privado: instalação portuária explorada mediante autorização e localizada fora da área do porto organizado (Ibidem, art. 2º, IV).

106Estação de transbordo de cargas: instalação portuária explorada mediante autorização, localizada fora da área do porto organizado e utilizada exclusivamente para operação de transbordo de mercadorias em embarcações de navegação interior ou cabotagem (Ibidem, art. 2º, V).

107Instalação portuária pública de pequeno porte: instalação portuária explorada mediante autorização, localizada fora do porto organizado e utilizada em movimentação de passageiros ou mercadorias em embarcações de navegação interior (Ibidem, art. 2º, VI).

108Instalação portuária de turismo: instalação portuária explorada mediante arrendamento ou autorização e utilizada em embarque, desembarque e trânsito de passageiros, tripulantes e bagagens, e de insumos para o provimento e abastecimento de embarcações de turismo (Ibidem, art. 2º, VII).

109 Ibidem, Art. 2º, III e art. 2º, VII.

110 Conforme mais bem abordado no capítulo _, autorização é um termo polissêmico, o que gera controvérsia sobre os atributos da autorização. Em nossa opinião, a autorização é um gênero do qual decorrem diversas espécies, de acordo com o regime jurídico específico que vier a ser fixado pelo legislador ordinário.

celebração do contrato de adesão”, prazo esse que é prorrogável por igual período, a critério da Secretaria dos Portos.111

A autorização vigerá por até 25 anos, prorrogável por períodos sucessivos, desde que (a) o serviço portuário seja mantido; e (b) o autorizatário promova investimentos necessários para a expansão e modernização das instalações portuárias (art. 8º, § 2º, I e II). Para o arrendamento e a concessão, também está previsto prazo de 25 anos, com a diferença de que o referido prazo é prorrogável uma única vez, a critério da União.112

A lei exige intensos monitoramento e fiscalização por parte da ANTAQ para verificação do cronograma de investimento a que o autorizatário se comprometer, para o que poderá a referida agência reguladora exigir garantias ou aplicar sanções, “inclusive a cassação da autorização” (art. 8º, § 3º).

Outra disposição relevante está contida no art. 13, pelo qual a ANTAQ poderá disciplinar condições de acesso “por qualquer interessado, em caráter excepcional, às instalações portuárias autorizadas, assegurada remuneração adequada ao seu titular”. Portanto, a outorga não é conferida no interesse exclusivo do autorizatário. As instalações portuárias autorizadas integram o sistema portuário nacional, e devem ser compreendidas nesse contexto mais amplo, que impõe um dever de compartilhamento de infraestrutura. Nesse aspecto, a autorização é equiparada à concessão e ao arrendamento, para os quais também se prevê a obrigação de disponibilizar acesso a terceiros.113

Conforme já mencionado, na Lei nº 12.815/2013, desapareceu a distinção constante da legislação anterior quanto ao tipo de carga movimentada.114 No novo regime, o autorizatário poderá movimentar livremente carga de terceiros.

Não há mais exigência de que a carga seja preponderantemente própria ou exclusiva do autorizatário – o que anteriormente era critério diferenciador entre os “terminais privativos” (que coerentemente passaram a ser denominados terminais privados) e os portos públicos. De fato, sob a Lei nº 8.630/93, os terminais de uso privativo (e não “privado”, denominação introduzida pela nova lei) eram classificados de acordo com o tipo de carga movimentada (art. 4º, § 2º). No terminal privativo de uso exclusivo, o particular somente

111 BRASIL, 2013a.

112 Art. 19 do Decreto nº 8.033/2013 (Ibidem).

113 Art. 7º A Antaq poderá disciplinar a utilização em caráter excepcional, por qualquer interessado, de

instalações portuárias arrendadas ou exploradas pela concessionária, assegurada a remuneração adequada ao titular do contrato (Ibidem).

podia movimentar carga própria. Os terminais de uso misto destinavam-se à movimentação de carga própria e de terceiros. Resoluções da ANTAQ limitavam o direito do autorizatário de movimentar carga de terceiros. Havia uma obrigação de movimentação de carga “preponderantemente própria” (art. 3º da Resolução ANTAQ nº 1.660/2010), a qual desapareceu a partir da Lei nº 12.815/2013.

Essa restrição desestimulava a competição no setor de portos, na medida em que o delegatário sujeito ao regime privado deveria observar limitações quanto à movimentação de carga de terceiros. Há certo alinhamento entre essa antiga restrição regulatória e a noção clássica de autorização, pelo qual a autorização é concedida no interesse do autorizatário. Ou seja, pela mesma noção, o atendimento ao interesse de terceiros somente poderia ser realizado em caráter subsidiário, sob pena de desnaturação da autorização. É interessante notar que essa restrição não tinha base constitucional. A Constituição não diz que o interesse a ser atendido mediante autorização exarada com fundamento no art. 21, XII, “f” deve ser preponderantemente próprio.

A intenção do Governo Federal em acabar com a referida distinção quanto à origem da carga constou da mensagem de veto da Presidência da República ao dispositivo do projeto de lei que fazia a comentada restrição: “a retomada de restrições ao tipo de carga a ser movimentada em cada terminal portuário constitui um empecilho à ampla abertura do setor e à elevação da concorrência.”.115

Portanto, sob a Lei nº 12.815/2013, terminais públicos e privados competem pela movimentação de cargas. É uma tentativa de ampliar a eficiência em setor que historicamente esteve sujeito ao privilégio estatal.116 Considerando que áreas localizadas fora de portos organizados também podem receber terminais portuários, a saída encontrada pelo legislador foi permitir a exploração de áreas privadas por meio de autorização, em regime de competição com os terminais públicos.

De forma proposital, o legislador introduziu uma assimetria entre os regimes de autorização e de arrendamento. Como os autorizatários não contam com a estrutura do porto organizado – ao contrário dos arrendatários –, foi necessário estabelecer um regime mais flexível para possibilitar a entrada de novos operadores. Tal mecanismo visa a compensar o

115 BRASIL. Mensagem nº 222, de 5 jun. 2013. Portal da Legislação do Governo Federal, Brasília, DF, 2013c. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2013/Msg/VEP-222.htm>. Acesso em 7 jul. 2014.

116No julgamento da ADPF nº 46/DF, o Supremo Tribunal Federal decidiu que o termo “monopólio” é aplicável apenas à prestação de atividade econômica em sentido estrito, empreendida por agentes privados.

encargo imposto aos autorizatários de construir um terminal literalmente do zero, sem qualquer infraestrutura preexistente.

Os autorizatários estão liberados da obrigação de contratar mão de obra por intermédio do Órgão Gestor de Mão de Obra (OGMO), órgão esse responsável pela contratação de trabalhadores avulsos no âmbito do porto organizado (além de fornecer cadastro de trabalhadores que podem ser contratados por prazo indeterminado). James Dantas comenta que não há possibilidade de intervenção do OGMO nos terminais de uso privado, sendo que os autorizatários podem optar por contratar trabalhadores (i) com vínculo empregatício; (ii) temporários; ou (iii) terceirizados. Confira-se:

A Lei nº 12.815/2013 sepultou definitivamente a discussão quanto a possibilidade de intervenção do OGMO nas atividades portuárias realizadas nos Terminais de Uso Privado, de modo que os mesmos poderão [...] contratar livremente a mão de obra, em direta concorrência com os agentes lotados na área do porto organizado [...]

O próprio art. 44 da Lei nº 12.815/2013 facultou aos titulares de instalações portuárias sujeitas a regime de autorização a contratação de trabalhadores a vínculo empregatício, observado o disposto no contrato, convenção ou acordo coletivo, o que faz inclusive sugerir a possibilidade dos Terminais de Uso Privado se utilizarem de mão de obra terceirizada ou temporária, nos moldes da Lei nº 6.019/74.117

O mesmo autor afirma que a contratação de mão de obra avulsa por intermédio dos OGMOs é um entrave para o desenvolvimento do setor portuário, dada a baixa eficiência e alto custo dos serviços prestados pelos trabalhadores avulsos.118

É projetado declínio do trabalho avulso mesmo no âmbito do porto organizado, onde tal modalidade deverá ficar restrita a atividades de menor complexidade e que exijam força física. A modernização dos métodos de movimentação de carga, com a crescente utilização de contêineres, tem reduzido a quantidade de trabalhadores necessários para a operação dos terminais. A tendência atual é a contratação de trabalhadores mais qualificados e em menor número, mediante vínculo empregatício permanente.119

O autorizatário é responsável pela disciplina da atividade portuária realizada nas instalações autorizadas. A autoridade portuária que atua no âmbito do porto organizado

117 DANTAS, James. As alterações trazidas pela lei nº 12.815/2013 no trabalho portuário. In: MOREIRA, Egon Bockmann (Coord.). Portos e seus regimes jurídicos. Belo Horizonte: Fórum, 2014, p. 294-295.

118 Ibidem, p. 295. 119 Ibidem, p. 302.

fiscalizando a operação portuária dos arrendatários não exerce qualquer influência sobre a atividade do autorizatário. Apesar disso, o autorizatário deve observar a regulamentação da ANTAQ e submeter-se às autoridades marítima, aduaneira, sanitária, de saúde e de polícia marítima.120

Em contrapartida a um regime mais flexível de atuação, o autorizatário atua por sua conta e risco, sem qualquer garantia quanto à preservação do equilíbrio econômico-financeiro do contrato. O risco referente à amortização dos investimentos é assumido integralmente pelo autorizatário, que não fará jus a qualquer espécie de remuneração por parte do poder titular da outorga durante a vigência do contrato de autorização.121

120 Art. 30 da Lei n° 12. 815/2013 (BRASIL, 2013b).

121 A observação é de Vitor Rhein Schirato. SCHIRATO, Vitor Rhein. As Infraestruturas privadas no novo marco setorial dos portos. In: MOREIRA, Egon Bockmann (Coord.). Portos e seus regimes jurídicos. Belo Horizonte: Fórum, 2014, p. 338/339.

4 A PRESTAÇÃO DO SERVIÇO PÚBLICO PORTUÁRIO POR INTERMÉDIO DE AUTORIZAÇÃO

Para respondermos as questões levantadas no capítulo anterior, de forma a delinearmos o regime das autorizações portuárias, entendemos que a análise deve partir da Constituição Federal. Nesse sentido, concordamos com a observação de Egon Bockmann Moreira de que

[...] a Constituição deve ser interpretada a partir dela mesma (sobretudo de seu texto normativo) em confronto com o caso em exame, não se deve tentar compreender o seu significado e alcance por meio de teorias jurídicas em outro tempo elaboradas.122

O mesmo autor prossegue com a observação de que é inviável aplicar modelos conceituais extraídos da doutrina de forma acrítica e automática. A hermenêutica constitucional é evolutiva e adaptativa, devendo o intérprete procurar o sentido atual das normas, sem apegar-se a formulações teóricas tradicionais.