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Tomando por base o procedimento descrito nos itens anteriores, poderíamos questionar se há exigência de licitação para a outorga de autorização portuária. A Lei nº 12.815/2013 não responde a essa questão diretamente, utilizando outras terminologias ao referir-se às diferentes etapas do procedimento de outorga. Para examinarmos se tais etapas correspondem a procedimentos licitatórios, é necessário partirmos de uma definição doutrinária de licitação. De acordo com Celso Antonio Bandeira de Mello, licitação é

o procedimento administrativo pelo qual uma pessoa governamental, pretendendo alienar, adquirir ou locar bens, realizar obras ou serviços, outorgar concessões, permissões de obra, serviço ou de uso exclusivo de bem público, segundo condições por ela estipuladas previamente, convoca interessados na apresentação de propostas, a fim de selecionar a que se revele mais conveniente em função de parâmetros estabelecidos e divulgados.222

Verifica-se que a licitação é definida pela doutrina como procedimento competitivo conduzido por ente público, no qual a Administração apreciará as propostas de interessados, selecionando aquela que revelar melhores condições de acordo com parâmetros previamente estabelecidos.

Anteriormente (ver item 5.1), nós descrevemos os procedimentos de anúncio e chamada pública, cuja finalidade é identificar a existência de outros interessados na obtenção de autorização portuária na mesma região e com características semelhantes.223 Tais procedimentos visam a atribuir publicidade ao ato de outorga. A divulgação de dados dos terminais a serem implementados (compreendendo a região geográfica, o perfil e o volume de carga a ser movimentada) concretiza o princípio da isonomia, ao permitir que interessados avaliem mutuamente as propostas submetidas à ANTAQ. Caso os interesses sejam conflitantes, há a possibilidade de reformulação das propostas pelos interessados, visando à eliminação do impedimento locacional.224 Se for formulado um único pedido de autorização

222 MELLO, 2014, p. 534.

223 Anúncio instaurado por solicitação do interessado e chamada pública por determinação da Secretaria Especial de Portos.

(ou se as diversas propostas não gerarem impedimento locacional), as outorgas serão realizadas diretamente.225

As outorgas diretas tendem a ser mais frequentes quando comparadas ao processo seletivo público. Na maioria dos casos, não será necessário excluir uma proposta em detrimento de outra, por se tratar de terrenos privados (cada interessado será proprietário ou terá justo título sobre o terreno descrito no pedido de autorização). Se houver um único interessado ou se forem conciliáveis os interesses dos diversos interessados em instalar terminais portuários na mesma região, as outorgas deverão ser realizadas diretamente. Nessas situações – que representam a ampla maioria dos casos –, estar-se-á diante de inexigibilidade, uma vez que a licitação supõe disputa entre interessados.226

Nem por isso o anúncio e a chamada pública deixam de desempenhar relevante função, atribuindo lisura ao procedimento de outorga e incentivando a autocomposição entre os interessados, de forma a limitar a realização de processo seletivo público às hipóteses estritamente necessárias. Com isso, é mitigado o risco de paralisação das outorgas em decorrência de tais processos, que podem ser demorados.

Qual seria o sentido em aplicar-se indistintamente a regra da licitação, supondo-se que os particulares estarão sempre em posição de antagonismo frente à Administração? Nas outorgas de autorizações portuárias, essa situação será excepcional, tendo em vista se tratar de áreas privadas. Ainda assim, a identificação de interessados e a ampla divulgação de dados dos terminais são medidas fundamentais para que se verifique eventual conflito de interesses, de forma a legitimar as outorgas.

Para Carlos Ari Sundfeld e André Rosilho, seria um engano acreditar que a licitação é a única forma de preservar os princípios da igualdade e da boa administração nas contratações públicas. Os referidos autores afirmam que “não só por meio da licitação são cumpridos os mandamentos constitucionais e realizados valores públicos”:

De fato, do texto constitucional podem ser extraídos princípios jurídicos mais abrangentes, especialmente os da igualdade e da boa administração. O equívoco está em extrair efeitos bastante concretos destes princípios genéricos e abstratos – como, por exemplo, o de que “não há como, em regra, atender a esses princípios sem um procedimento administrativo do tipo licitatório” – ou, então, imaginar que certos princípios pressuponham, contenham em si, o dever de licitar. [...]

225 Art. 12., § 1º (BRASIL, 2013a).

O primeiro engano está em imaginar que a ausência de licitação necessariamente dê lugar à barbárie. [...] Eventual opção legislativa por não licitar seria vista por esta ótica com grande desconfiança, como a pura e simples institucionalização da corrupção ou de favoritismos injustificados; como chancela legal à realização de negócios espúrios entre o público e o privado. Não é bem assim, a realidade é significativamente mais complexa do que este raciocínio, baseado em meras ilações.

É impossível, em abstrato, dizer que licitar seja melhor – ou mais justo, isonômico, correto, eficiente, adequado etc. – do que não licitar. A comparação entre estes tipos jurídicos ideais e opostos é impertinente, pois são necessários ou úteis em situações diferentes [...]

O segundo engano está em pressupor que a única maneira e atender aos princípios constitucionais que preconizam, exemplificativamente, a separação entre o público e o privado, a isonomia entre interessados e a busca do negócio mais vantajoso para a Administração seja por meio da licitação. [...]

A verdade é que não há um único modelo ou forma juridicamente adequados. Não só por meio da licitação são cumpridos os mandamentos constitucionais e realizados valores públicos. Há outros mecanismos, procedimentos e soluções, para além dos licitatórios, que se ajustam ao texto constitucional.227

A instituição de procedimentos prévios para a identificação de interessados não chega a ser uma novidade da Lei nº 12.815/2013. Sundfeld e Rosilho mencionam outros exemplos extraídos dos setores de telecomunicações e de mineração.228 Os autores chamam atenção para o art. 91 da Lei nº 9.472/1997 (Lei Geral de Telecomunicações), que prevê o chamamento público para a identificação de interessados na exploração de satélites. A licitação será considerada inexigível quando apenas um interessado puder realizar o serviço (art. 91, § 1°) ou quando todos os interessados puderem desempenhar simultaneamente os serviços (art. 91, § 2°). A licitação será aberta apenas se os interesses não puderem ser harmonizados na chamada pública.229 O mecanismo é semelhante ao previsto na Lei nº 12.815/2013.

Outro exemplo lembrado pelos autores está no Decreto-Lei nº 227/1967, também conhecido como Código de Minas. O referido diploma prevê que a área descrita em requerimento de autorização e pesquisa ou de registro de licença será considerada livre, desde que não se enquadre em quaisquer das seguintes hipóteses: (i) vinculação a autorização de

227 SUNDFELD, Carlos Ari; ROSILHO, André. Onde está o princípio universal da licitação. In: SUNDFELD, Carlos Ari; JURKSAITIS, Guilherme Jardim. Contratos públicos e direito administrativo. São Paulo: Editora Malheiros, 2015. p. 32-33.

228 Idem, 2015, p. 33/35.

229 Art. 172, § 3° (BRASIL. Lei nº 9.472/1997. Portal da Legislação do Governo Federal, Brasília, DF, 1997. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L9472.htm>. Acesso em 18 out. 2015).

pesquisa, registro de licença, concessão da lavra, manifesto de mina ou permissão de reconhecimento geológico;230 e (ii) ter sido objeto de pedido de autorização anterior, salvo se indeferido. Ou seja, o Código de Minas estabelece critério de prioridade: aquele que primeiro solicitar a autorização de pesquisa de determinada a área terá direito de requerer a concessão de lavra, desde que comprovada a viabilidade técnica da exploração. O referido diploma não prevê a comparação de propostas entre interessados no âmbito de uma licitação pública. A realidade setorial impôs outro critério de seleção, baseado na anterioridade do pedido, o que foi devidamente considerado pelo legislador.

Em nosso entendimento, a exemplo dos procedimentos especiais previstos em outros setores, o anúncio e a chamada pública desempenham importante papel ao compatibilizar as outorgas de autorizações portuárias com os princípios que regem a Administração (legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade, eficiência).

Na hipótese excepcional de os pedidos serem incompatíveis, será necessária a abertura de processo seletivo público. Entendemos que a rigor o referido processo seria uma modalidade de licitação, por envolver a comparação de propostas apresentadas por interessados em prestar serviços portuários, de acordo com critérios previamente estabelecidos em edital (por exemplo, maior capacidade de movimentação de carga). No processo seletivo público, a União selecionará uma proposta em detrimento de outra(s), configurando-se situação de excludência.

Alguns poderiam estranhar a previsão de uma modalidade específica de licitação para a outorga de autorização portuária.231 Isso porque, de acordo com o art. 175, caput, da Constituição, a licitação é obrigatória para as delegações de serviço público realizadas mediante concessão e permissão. A falta de referência à autorização no referido dispositivo poderia levar a uma conclusão precipitada, de que a licitação seria incompatível com essa modalidade de outorga.

A premissa é equivocada. É possível extrair do art. 37, XXI, da Constituição um dever abrangente de adoção da licitação na contratação de obras, serviços e alienações realizadas pela Administração. Ao assegurar igualdades de condições a particulares interessados em travar disputa pela celebração de contratos com a Administração, o referido dispositivo não

230 Art. 18, I (BRASIL. Decreto-Lei nº 227/1967. Portal da Legislação do Governo Federal, Brasília, DF, 1967. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del0227.htm>. Acesso em 18 out. 2015). 231 Aplicável em situações excepcionais, quando não for possível compatibilizar as propostas dos interessados

estabelece distinção entre contratos tendo por objeto a prestação de serviços ou a outorga de serviços públicos. Note-se que a autorização portuária é formalizada mediante contrato de adesão, o que tornaria a licitação aplicável em tese.232 Ainda que o dever constitucional de licitação em relação às autorizações fosse afastado com base em interpretação restritiva do art. 37, XXI e do art. 175, caput, é inegável que o legislador ordinário possui discricionariedade para criar hipóteses licitatórias. Também é incontroverso que há previsão legal de modalidade de licitação destinada a solucionar o conflito entre pedidos de autorização, denominada processo seletivo público.233

Se não houvesse previsão para o referido processo seletivo público, como a Administração poderia encontrar uma solução legítima para os casos em que os particulares interessados em obter autorização portuária estivessem em posição conflitante? Se respondermos de forma genérica que a licitação será inaplicável à autorização, a outorga a um dos particulares em situação de impedimento locacional seria realizada segundo critérios arbitrários – justamente o que a Lei nº 12.815/2013 tenta evitar ao instituir o processo seletivo público. Tampouco há condições de respondermos que a licitação será aplicável sob qualquer hipótese, pois na ampla maioria dos casos os requerimentos serão compatíveis entre si (por tratarem de terrenos privados), o que inviabiliza a adoção de processo licitatório (ou processo seletivo público, modalidade prevista na Lei nº 12.815/2013).

Portanto, a resposta para o questionamento proposto neste tópico é de que a outorga de autorização portuária será realizada em regra mediante inexigibilidade de licitação, tendo em vista tratar-se de áreas privadas. Em situações excepcionais, quando as propostas forem incompatíveis entre si (inviabilidade locacional), será realizado processo seletivo público, que a rigor corresponde a modalidade licitatória.