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a avaliação relativa à obra de arte como entidade na qual se realiza um conteúdo de verdade assume-se desenvolvida em contraste com conceções sobre arte denominadas ontológicas 158 ,

157* G.W.F. Hegel. Vorlesungen über die Ästhetik. Vol.I. Frankfurt am Main : Suhrkamp Verlag, 1970, p.13.

158 A propósito das filosofias da arte de orientação ontológica, importaria assinalar o pensamento de Maurice Merleau-

Ponty, cuja fase tardia – apresentada, em grande parte, no âmbito de obras postumamente publicadas, tais como L’œil et l’esprit (1961) – integra uma continuidade entre a fenomenologia, a ontologia e a estética. Curiosamente, em Signes (1960), Merleau-Ponty, delineando como que uma ontologia do sensível ancorada numa reformulação fenomenológica do ato da perceção, insurge-se contra a sustentação avançada por André Malraux (nos ensaios sobre arte, publicados sob o título Les Voix du silence (1951), entre os quais «Le Musée Imaginaire») relativamente ao vínculo entre pintura moderna/modernista e subjetividade. Leia-se Merleau-Ponty em Signes (recorrendo à tradução portuguesa de Fernando Gil): «Malraux observa que pintura e linguagem apenas se tornam comparáveis depois de haverem sido cindidas daquilo que “representam”, para serem reunidas na categoria da expressão criadora. É então que reciprocamente se reconhecem como duas figuras da mesma tentativa. Pintores e escritores trabalharam durante séculos sem se darem conta do seu parentesco. Mas é um facto que conheceram a mesma aventura. A arte e a poesia são inicialmente votadas à cidade, aos deuses, ao sagrado, não vêem nascer o seu próprio milagre se não através do espelho de uma força exterior. Uma e outra conhecem mais tarde uma idade clássica que é a secularização da idade do sagrado: a arte é então a representação de uma natureza a qual, no máximo, pode

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apenas adornar, mas segundo receitas que esta lhe ensina; como queria La Bruyère, a palavra possui somente o papel de reencontrar a expressão justa previamente conferida a cada pensamento por uma linguagem das próprias coisas, e este duplo recurso a uma arte anterior à arte, a uma palavra anterior à palavra, prescreve à obra um certo ponto de perfeição, de acabamento ou de plenitude, que a imporá ao assentimento de todos como coisas que se patenteiam aos nossos sentidos. Malraux analisou bem este pré-juízo “objectivista” que a arte e a literatura moderna põem em questão – mas talvez não tenha medido a profundidade a que ele se enraíza, talvez lhe tenha concedido depressa demais o domínio do mundo visível, talvez seja isso o que pelo contrário o leva a definir a pintura moderna como regresso ao sujeito – ao “monstro incomparável” –, e a escondê-la numa vida secreta fora do mundo... É preciso retomar a sua análise. […] Simplesmente, os pintores clássicos eram pintores e nenhuma pintura válida jamais consistiu em representar simplesmente. Malraux indica que a concepção moderna da pintura – como expressão criadora – foi novidade muito mais para o público do que para os próprios pintores, que sempre a praticaram ainda que não a teorizassem. É isso que faz com que as obras dos clássicos possuam sentido diferente e porventura maior sentido do que os seus autores julgavam, que eles frequentemente antecipem uma pintura liberta dos seus cânones e continuem sendo os intercessores designados para qualquer iniciação à pintura. No próprio momento em que, olhos fixados no mundo, julgavam pedir-lhe o segredo de uma representação suficiente, operavam mau grado seu essa metamorfose de que a pintura se tornou mais tarde consciente. Mas, nesse caso, deixa de ser possível definir-se a pintura clássica pela representação da natureza ou pela referência aos “nossos sentidos”, e, da mesma maneira, a pintura moderna pela referência ao subjectivo. Já a percepção dos clássicos participava da sua cultura, a nossa cultura pode ainda informar a nossa percepção do visível, não deve abandonar-se o mundo visível às receitas clássicas nem encerrar-se a pintura moderna no reduto do indivíduo, não há que escolher entre o mundo e a arte, entre os “nossos sentidos” e pintura absoluta: encontram-se entrelaçados.» Maurice Merleau-Ponty. Sinais. Trad. de Fernando Gil. Lisboa : Editorial Minotauro, 1962, pp.68-70. No mesmo tom: «Quando, pois, Malraux escreve ser o estilo o “modo de recriar o mundo segundo os valores do homem que os descobre”, ou ser “a expressão de uma significação emprestada ao mundo, apelo, e não consequência de uma visão”, ou, enfim, “a redução a uma frágil perspectiva humana do mundo eterno que nos transporta para uma deriva de astros segundo um ritmo misterioso” – não está a instalar-se na própria operação do estilo; como o público, olha-a de fora; indica ao mesmo tempo algumas suas consequências, na verdade sensacionais – a vitória do homem sobre o mundo –, mas que o pintor não tem em vista. O pintor trabalhando nada sabe da antítese entre o homem e o mundo, entre a significação e o absurdo, entre o estilho e a “representação”: está demasiado ocupado em exprimir o seu comércio com o mundo para poder orgulhar-se de um estilo que nasce como independentemente da sua vontade.» Maurice Merleau-Ponty. Sinais. Op. cit., pp.77-78.

A propósito das relações entre arte e ontologia, importaria, por fim, considerar o pensamento de Heidegger, o qual constitui, com efeito, influência determinante no âmbito dos trabalhos de Merleau-Ponty. O ensaio intitulado «Der Ursprung des Kunstwerkes», escrito entre 1935 e 1936, correspondente a três conferências pronunciadas em Zurich e Frankfurt, e posteriormente publicado em 1950 em Holzwege, anuncia as principais posições heideggerianas relativas ao projeto de perspetivação ontológica da arte – as quais serão aprofundadas no final do pensamento do filósofo, particularmente no que respeita a avaliação ontológica da linguagem, empreendida a partir da consideração filosófica da poesia de Hölderlin. Cite- se Heidegger em «Der Ursprung des Kunstwerkes» (recorrendo à tradução portuguesa de Irene Borges-Duarte e Filipa Pedroso): «O que é que acontece aqui? O que é que, na obra, está em obra? A pintura de van Gogh é a patenteação originária [Eröffnung] daquilo que o utensílio, o par de sapatos de camponês, é em verdade. Este ente sai [heraustritt] para o não- estar-encoberto do seu ser. Os gregos chamavam ao não-estar-encoberto do ente ἀλήθεια. Nós dizemos 'verdade' mas pensamos muito pouco ao ouvir esta palavra. Na obra – caso nela aconteça uma patenteação originária do ente naquilo que ele é e como é –, está em obra um acontecer da verdade. Na obra de arte, a verdade do ente pôs-se em obra. "Pôr" [setzen] quer aqui dizer: deter [zum Stehen bringen]. Um ente, um par de sapatos de camponês, vem, na obra, a deter-se na claridade [Lichte] do seu ser. O ser do ente vem ao carácter permanente do seu (a)parecer [Scheinen]. Desta forma, a essência da obra de arte seria esta: o pôr-se-em-obra da verdade do ente. Contudo, até agora, a arte tinha sempre que ver com o belo e com a beleza, e não com a verdade do ente.» Martin Heidegger. A Origem da Obra de Arte in Caminhos de Floresta. Trad. Irene Borges-Duarte e Filipa Pedroso. Lisboa : Fundação Calouste Gulbenkian, 2002, pp.31-32. Continuamente: «A verdade está em obra na obra – portanto, não [está aí em obra] apenas algo de verdadeiro. O quadro que mostra os sapatos de camponês, o poema que diz a fonte romana, não dão apenas a conhecer o que é este ente singular enquanto tal (se é que dão alguma vez algo a conhecer...), antes deixam acontecer o não-estar-encoberto enquanto tal, relativamente ao ente no seu todo. Quanto mais simplesmente e de modo mais essencial surgir no seu estar-a-ser apenas o calçado, quanto menos ornamentada e mais pura surgir no seu estar-a-ser apenas a fonte, tanto mais imediatamente e de forma mais envolvente todo o ente se torna com eles mais ente. O ser que se encobre é, desta maneira, clareado. A luz assim configurada proporciona o seu brilhar [(a)parecer – Scheinen] na obra. O brilhar proporcionado na obra é o belo. A beleza é o modo como a verdade enquanto não-estar-encoberto está a ser.» Martin Heidegger. A Origem da Obra de Arte in Caminhos de Floresta. Op. cit, pp.56-57. No mesmo tom: «Portanto, a arte é o resguardar criador da verdade na obra. Logo, a arte é um devir e um acontecer histórico da verdade. Então a verdade surge a partir do nada? De facto – se com o nada se está a fazer referência ao mero nada do ente, e se, nesse caso, o ente é representado como o que está habitualmente perante que, em seguida, por meio do estar-aí da obra, vem à luz como o que apenas pretensamente é o verdadeiro ente e que [, assim,] é abalado. A verdade nunca é colhida do que está perante e do que é habitual. Antes se passa que a patenteação originária do aberto e a clareira do ente só acontecem na medida em que é projectada [entworfen wird] a abertura que chega ao estar- lançado [Geworfenheit]. A verdade, como clareira e encobrimento do ente, acontece na medida em que é poetada. Enquanto deixar-acontecer da chegada da verdade do ente, toda a arte é, enquanto tal, na sua essência, poesia. A essência da arte, na qual se baseiam, acima de tudo, a obra de arte e o artista, é o pôr-se-em-obra da verdade. A partir da essência poética da arte acontece que, no meio do ente, ela franqueia um lugar aberto em cuja abertura nada é como habitualmente.» Martin Heidegger. A Origem da Obra de Arte in Caminhos de Floresta. Op. cit, p.76. Por fim: «O efeito da obra não consiste num

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as quais aspiram à proclamação da supressão das determinações subjetivas da arte e à