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emulação da natureza – bem como a impossibilidade de eleição do primado da natureza como seu princípio-maior –, pois apresenta-se filosoficamente definida segundo a

introdução da autorreflexão e da mediação subjetivas. Os novos princípios da

individualidade, do idiossincrático, do característico [das Charakteristik] e do interessante

a qual fornece toda a matéria aos instrumentos (mesmo aos da arte). Somente então e por isso poderemos chamar a um tal produto, enquanto ser organizado e organizando-se a si mesmo, um fim natural. […] Diz-se muito pouco da natureza e da sua faculdade nos produtos organizados, quando designamos esta como analogon da arte; pois aí se pensa o artífice (um ser racional) fora dela. Sobretudo ela organiza-se a si própria e em cada espécie dos seus produtos organizados, na verdade segundo um único modelo no todo, mas porém de igual modo como modificações bem urdidas que a autopreservação segundo as circunstâncias exige. Talvez adquiramos uma perspectiva mais correcta desta propriedade impenetrável se a designarmos como um analogon da vida. Mas então ou temos que dotar a matéria, enquanto simples matérias, com um propriedade (hilozoísmo) que contradiz a sua essência, ou a animamos com um princípio que com ela se encontra em comunidade e de diferente espécie (uma alma). Contudo para tanto, se é que um tal produto deve ser um produto natural, a matéria organizada como instrumento daquela alma, ou já tem que ser pressuposta e então não torna essa matéria mais compreensível, tendo assim que retirar o produto à natureza (ao corpóreo). Para falar com rigor, a organização da natureza não tem por isso nada de analógico com qualquer causalidade que conheçamos. A beleza da natureza pode com razão ser designada como um analogon da arte, já que ela é atribuída aos objectos somente em relação à reflexão sobre a intuição externa dos mesmos, por conseguinte somente por causa das formas superficiais. Mas a perfeição natural interna <innere Naturvollkommenheit>, tal como a possuem aquelas coisas que somente são possíveis enquanto fins naturais e por isso se chamam seres organizados, não pode ser pensada e explicada segundo nenhuma analogia com qualquer faculdade física, isto é natural, que nos seja conhecida e nem mesmo através de uma analogia perfeitamente adequada à arte humana, já que nós próprios pertencemos à natureza no mais amplo sentido.» Immanuel Kant. Crítica da Faculdade do Juízo. Introd. António Marques. Trad. e notas António Marques e Valério Rohden. Lisboa : Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1998, §65.

119* Relativamente ao conceito de natureza enquanto noção estética, importaria mencionar o texto de Arthur O. Lovejoy

intitulado «Nature as Aesthetic Norm» [Cf. Arthur O. Lovejoy. «Nature as Aesthetic Norm» in Arthur O. Lovejoy. Essays in the History of Ideas. New York : G. P. Putnam's Sons, 1960, pp.69-77]. Segundo Lovejoy, a aceção estética do conceito de natureza presente em Friedrich Schlegel consiste na referência a um «domínio antitético ao homem e às suas obras; a parte da realidade empírica que não fora transformada (ou corrompida) pela arte humana; portanto, o fora-de-portas, as paisagens e os sons “naturais”». Arthur O. Lovejoy. «Nature as Aesthetic Norm» in Arthur O. Lovejoy. Essays in the History of Ideas. Op. cit., p.71. Stuart Barnett, na “Introdução Crítica” da edição norte-americana de «Über das Studium der griechischen Poesie» de Friedrich Schlegel, elucida o significado e a inscrição do termo natureza [Natur] na sua referência à arte e poesia antigas segundo Schlegel: «A dificuldade inerente na relação entre a cultura clássica e pós-clássica não se caracteriza, segundo Schlegel, numa quebra ou rutura. Ao invés, tanto a antiguidade quanto a modernidade apresentam-se governadas por dois princípios de formação (ou Bildung) distintos e incomensuráveis. O que Schlegel apresenta é o conflito entre dois tipos diferentes de Bildung. A antiguidade é governada por uma Bildung natural. Tal é caracterizada por uma consistente fidelidade à natureza. […] No processo de tal formação, a Bildung natural assume-se orientada em torno do que é essencial na natureza. A cultura daí resultante é autêntica e verdadeira em relação à natureza – tanto quanto é possível que uma cultura o seja. De facto, tal permite fazer emergir aquilo que se encontra implícito na natureza.». Stuart Barnett. «Critical Introduction. The Age of Romanticism: Schlegel from Antiquity to Modernity» in Friedrich Schlegel. On the Study of Greek Poetry. Trad. e introd. Stuart Barnett. New York : State University of New York Press, 2001, p.7.

120 Importaria esclarecer que a designação «romântico» ou «poesia romântica», tal como utilizada por Friedrich Schlegel,

bem como por Hegel, traduz uma perspetivação filosófico-estética dedicada à literatura e à poesia da pós-antiguidade, a qual se afigura caracterizada pelo abandono do latim e pela adoção das novas línguas românicas. Trata-se, pois, de um amplo período literário – desde os romances de cavalaria à literatura medieval e proto-moderna. A propósito da configuração do termo ‘romântico’ e da sua vinculação às línguas e literaturas românicas, importaria ler a fascinante obra de Ernst Robert Curtius intitulada Europäische Literatur und Lateinisches Mittelalter, de 1948, particularmente o “Capítulo II: A Idade Média Latina”.

89

[das Interessante]

121

configuram-se como os elementos essencialmente definidores da

poesia moderna romântica. Detendo-se sobre Shakespeare

122

, F. Schlegel sustentará a

determinação formal artificial, fragmentária, anárquica e dissonante – por outras palavras:

não-orgânica, não-natural – como a lei artística imanente da poesia moderna romântica

123

.

A inaugural perspetivação de Friedrich Schegel relativa à artificialidade ou ao

distanciamento face à natureza como marcas definidoras da poesia romântica e, bem assim,

de Shakespeare, poderá ser avaliada como oposta à posição de Samuel Johnson acerca da

obra do poeta inglês – com efeito, sob o olhar de Johnson, mais fiel a Aristóteles do que

Schlegel, Shakespeare permanece o poeta da natureza

124

*: «[n]ada poderá melhor explicar e

121 A respeito da influência da conceção estética kantiana de interesseloses Wohlgefallen na elaboração do conceito

schlegeliano de Interessante, leia-se Rodolphe Gasché. «Forward: Ideality in Fragmentation» in Friedrich Schlegel. Philosophical Fragments. Intro. Rodolphe Gasché. Trad. Peter Firchow. Minneapolis : University of Minnesota Press, 1991, vii-xxxii.

122 A perspetivação da obra de Shakespeare como um corpus cultural-literário que merece a avaliação das suas eminentes

particularidades em diferenciação relativamente aos cânones gregos (Sófocles, entre os primeiros) constituíra objeto de estudo no âmbito do importante ensaio de Johann Gottfried Herder, intitulado «Shakespeare» de 1773 (Cf. Johann Gottfried Herder. «Shakespeare» in Sämmliche Werke. Ed. Bernhard Suphan. Vol. V. Berlin : Weidmann, pp.208-231). O jovem Friedrich Schlegel não partilha o tom enaltecedor relativamente a Shakespeare manifestado por Herder, mas convoca, desenvolvendo-a numa apologia neo-clássica à maneira de Winckelmann, a dicotomia Shakespeare vs. Gregos.

123 Interessantemente, assim escrevera Ludwig Wittgenstein sobre Shakespeare: «A razão pela qual não compreendo

Shakespeare é que pretendo descobrir simetria em toda a assimetria. As suas peças não me suscitam a impressão de pinturas, mas antes de enormes esboços; como se tivessem sido rabiscadas por alguém que, por assim dizer, se pode permitir a si próprio seja o que for. E compreendo como tal se pode admirar e chamar-lhe arte superior, mas não gosto dela. Assim, se alguém fica sem fala perante essas peças, consigo compreendê-lo; mas quem as admira como se admira, digamos, Beethoven, parece-me não compreender Shakespeare.». Ludwig Wittgenstein. Cultura e Valor. Trad. Jorge Mendes. Rev. Artur Morão. Lisboa : Edições 70, 2000, pp.125-126.

124* Leia-se Johnson no seu célebre “Preface” às The Plays of William Shakespeare (1765): «Nada agrada a tantos, e de

modo tão demorado, quanto as representações da natureza geral. […] Shakespeare é, acima de todos os escritores, pelo menos acima de todos os escritores modernos, o poeta da natureza; o poeta que apresenta aos seus leitores um espelho fiel dos costumes e da vida. As suas personagens não são modificadas segundo os costumes de locais particulares, não praticados no resto do mundo; não são modificados segundo as pecularidades de estudos ou profissões, as quais podem operar somente sobre pequenos números; nem segundo os acidentes de modas transitórias ou de opiniões temporárias; elas constituem a genuína linhagem da humanidade comum, tal como o mundo sempre a produzirá, e as observações sempre a encontrarão. As suas personagens agem e falam segundo a influência de tais paixões universais e de acordo com os princípios mediante os quais as almas são agitadas e o sistema total da vida continua em movimento. Nos escritos de outros poetas, uma personsagem é, por muitas vezes, um indivíduo; nos escritos de Shakespeare, ela é, comummente, uma espécie.». Samuel Johnson. Preface to Shakespeare with Proposals for Printing the Dramatik Works of William Shakespeare. London : Oxford University Press, 1967, pp. 11-12. Continuamente: «A sua adesão à natureza geral expô-lo à censura dos críticos, os quais formam os seus julgamentos sobre princípios mais restritos. Dennis e Rhyner consideram os seus romanos não suficientemente romanos; e Voltaire censurou os seus reis por não serem completamente reais. Dennis sentiu-se ofendido pelo facto de Menenius, um senador de Roma, tivesse de representar o bobo; e Voltaire pensa provavelmente que a decência fora violada quando o Usurpador Dinamarquês é representado como um ébrio. Mas Shakespeare faz sempre prevalecer a natureza sobre o acidente […]. A sua história necessita de romanos e de reis, mas ele pensa simplesmente em homens.». Samuel Johnson. Preface to Shakespeare with Proposals for Printing the Dramatik Works of William Shakespeare. Op. cit., pp. 14-15. No mesmo tom: ««A força das suas cenas cómicas não foi diminuída pelas mudanças ocorridas em século e meio, nas maneiras ou nas palavras. Tal como as suas personagens agem segundo princípios derivados de genuína paixão, muito pouco alterada por formas particulares, os seus prazeres e vexações são passíveis de serem comunicados a todos os tempos e a todos os lugares […].». Samuel Johnson. Preface to Shakespeare with Proposals for Printing the Dramatik Works of William Shakespeare. Op. cit., p. 19. Por fim: ««[...] ele preservou suficientemente bem a unidade da ação. […] o seu plano possui, geralmente, aquilo que Aristóteles exige, um começo, um meio e um fim; uma ação apresenta-se relacionada com outra, e a conclusão segue-se em fácil consequência. Há, possivelmente, alguns incidentes que poderiam ser poupados, tal como em outros poetas há demasiada conversa que serve meramente para preencher o tempo sobre o palco; mas o sistema geral realiza avanços graduais, e o fim da peça constitui o fim da expetativa.». Samuel Johnson. Preface to Shakespeare with Proposals for Printing the Dramatik Works of William Shakespeare. Op. cit., pp. 24-25. A definição de poesia à luz da noção de natureza, tão cara a Johnson, poderá ser lida também em Rasselas, de 1759, na célebre dissertação de Imlac sobre poesia, exposta no capítulo X (cf. Samuel Johnson. The History of Rasselas Prince of Abissinina. Oxford: Oxford World's Classics, 2009, pp. 27-29.

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confirmar a artificialidade da formação estética moderna do que a preponderância do