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Avançando no reconhecimento dos protocolos autônomos de consulta

3. A LEGITIMIDADE DO USO DA TERRA INDÍGENA A PARTIR DA

3.1 O protagonismo dos povos indígenas

3.1.1 Os protocolos autônomos de consulta

3.1.1.1 Avançando no reconhecimento dos protocolos autônomos de consulta

O desafio agora consiste em obter o reconhecimento público desses protocolos de consulta de modo a coloca-los em prática, guiando o relacionamento entre estado/índios/empresas, exercitando a autonomia e a autodeterminação das populações indígenas. No âmbito internacional a Organização das Nações Unidas já vem firmando o seu entendimento no sentido de apoiar a elaboração desse tipo de ação protagonista dos povos indígenas, onde eles tomam a iniciativa de medidas direcionadas à satisfação de seus direitos negligenciados pelos estados de origem.

Assim, contamos com o posicionamento do Mecanismo de experts da ONU que recentemente, em seu 11º período de seções realizada em julho de 2018, expressamente recomendou aos estados que observem e implementem os referidos protocolos de consultas elaborados pelos povos indígenas existentes em seus territórios287. Em verdade,

já em 2010, em informe apresentado ao Conselho de Direitos Humanos da ONU, o Mecanismo já havia se manifestado favorável às então experiências de protocolos indígenas, recomendando aos estados que forneçam condições para que os povos indígenas continuem elaborando-os288. No mesmo sentido é o posicionamento da

Relatoria especial sobre povos indígenas do Conselho de Direitos Humanos da ONU. Com efeito o relatório produzido em 2016 pela relatora especial, Victoria Tauli- Corpuz, fruto de visita ao Brasil no mesmo ano, se manifestou expressamente acerca da “autodemarcação” bem como dos protocolos autônomos de consulta elaborados na época

287 REDE DE COOPERAÇÃO AMAZÔNICA. Protocolos de Consulta Prévia em pauta na ONU.

Notícia de 09 de julho de 2018. Disponível em: https://rca.org.br/2018/07/protocolos-de-consulta-previa- em-pauta-na-onu/. Acesso em: 10 fev. 2019.

288 ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Assembleia Geral da ONU. Conselho de Direitos

Humanos. Informe del Mecanismo de expertos sobre los derechos de los pueblos indígenas. Informe sobre la marcha del estudio sobre los pueblos indígenas y el derecho a participar em la adopción de decisiones. 2010. Disponível em: https://undocs.org/es/A/HRC/15/35. Acesso em: 18 nov. 2018. Pàg. 23.

(Wajãpi e munduruku), recomendando ao estado brasileiro que os observe e que os responda quando apresentados pelos povos indígenas289. indicando tratar-se de

importante manifestação de autonomia e fortalecimento da ação dos povos indígenas no caminho para a realização de seus direitos.

No Brasil o reconhecimento dos protocolos autônomos indígenas ainda se constrói e amadurece, tendo como aliado três importantes fatores: O reconhecimento expresso do Ministério Público Federal (Recomendação 03/2019); uma decisão paradigmática do Tribunal Regional Federal (TRF) da 1ª Região reconhecendo o protocolo do povo Juruna da Terra indígena Paquiçamba; e a lei 13.123 de 20 de maio de 2015 que reconhece os protocolos comunitários como normas procedimentais emanadas das populações indígenas e comunidades tradicionais que estabelecem, segundo seus usos, costumes e tradições, os mecanismos para acesso ao conhecimento tradicional associado e repartições dos benefícios deles oriundos (Art.2, VII).

Com efeito, a citada Lei 13.123/2015 ainda designa que os protocolos comunitários indicarão os meios através dos quais se comprova a obtenção do consentimento da comunidade impactada (Art.9, §1º), funcionando, assim, como importante instrumento de reconhecimento público dos protocolos indígenas, já que se trata de uma lei emanada do Congresso Nacional. O Decreto 8.772/2016, que disciplina a referida Lei, em seu art. 15, afirma que a obtenção do consentimento prévio informado deverá “respeitar as formas tradicionais de organização e representação de populações

indígenas, comunidade tradicional ou agricultor tradicional e o respectivo protocolo comunitário, quando houver” (grifamos).

O Ministério Público Federal tem reconhecido expressamente a legitimidade dos protocolos de consulta, se posicionando em defesa de sua observância e aplicação nos mais diversos casos, tendo apoiado a elaboração da maioria deles, divulgando-os em seu site oficial e pleiteando seu cumprimento em demandas judiciais. Além disso, também

289 ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Relatoria da ONU sobre os Direitos dos Povos Indígenas.

Informe de la misión a Brasil de laRelatora Especial sobre los derechos de los pueblos indígenas. Assembleia Geral da ONU, 08 agosto 2016. Disponível em:http://www.mpf.mp.br/atuacao- tematica/ccr6/documentos-e-publicacoes/docs/relatorio-onu-povos-indigenas/relatorio-onu-2016-

tem defendido a obtenção do consentimento prévio como objetivo da consulta. O posicionamento do Parquet se alinha às ações de outros órgãos semelhantes existentes nos diversos países latinos, que vêm conjugando esforços na troca de experiências e apoio mútuo sobre a intermediação de processos de consulta e na defesa dos interesses dos povos indígenas290.

Com efeito, em 06 de dezembro de 2017, o TRF da 1ª Região, no julgamento da Ação Civil Pública (ACP) nº 0002505-70.2013.4.01.3903, de relatoria do Des. Jirair Aram Meguerian, deixou claro que a emissão da licença de instalação depende da realização do Estudo do Componente Indígena (ECI)291 a partir de dados primários e da

realização da consulta prévia, livre e informada na conformidade dos protocolos de consulta estabelecidos pelas próprias comunidades indígenas. O Tribunal ainda fixou o entendimento de que a elaboração dos protocolos de consulta pelos povos indígenas afasta a necessidade de regulamentação292.

A referida ação constituiu iniciativa do MPF na defesa dos interesses dos povos indígenas das terras indígenas Paquiçamba, Arara da Volta Grande do Xingu e Ituna/Itatá que serão diretamente impactadas pelo projeto Volta Grande de mineração, empreendido pela mineradora Canadense Belo Sun que implantará em suas proximidades a maior mina

290 DEFENSORIA DEL PUEBLO. Buenas prácticas de las defensorías del Pueblo de Bolívia,

Colômbia, Equador e Perú em processos de consulta previa. Incluye experiências de instituciones de Argentina, Brasil y Guatemala. Disponível em: <http://www.mpf.mp.br/atuacao- tematica/ccr6/documentos-e-publicacoes/protocolo-de-consulta-dos-povos-indigenas/docs/ppt-buenas- practicas-7-de-setiembre-18-de-agosto.pdf>. Acesso em: 09 fev. 2019.

291 O Estudo do Componente Indígena (ECI) é destinado a avaliar os impactos e consequências advindos

sobre povos indígenas habitantes de áreas de influência de empreendimentos sujeitos ao licenciamento ambiental. Integra o Estudo de Impacto Ambiental (EIA) e Relatório de Impacto Ambiental (RIMA), nos termos da Portaria Interministerial nº 60 de 24/03/2015, sendo elaborado conforme termo de referência predeterminado pela FUNAI, que fixará os elementos necessários ao referido estudo e os avaliará ao final. Com efeito, o objeto da referida Ação Civil Pública (ACP) gravitou em torno da realização insatisfatória deste ECI pela mineradora Belo Sun, e que teria respaldado a concessão da licença prévia ao empreendimento pelo órgão ambiental do estado do Pará, então licenciador da obra. Em seu voto, o relator fixou a necessidade de complementação do ECI segundo diretivas da FUNAI, e que o mesmo seria condicionante à concessão da licença de instalação. Esclareceu, ainda, que a realização do ECI não satisfaz a exigência de realizar consulta prévia, segundo o art. 231, 3º da Constituição e Convenção 169 da OIT, pois se tratam de instrumentos diversos, e que a consulta deverá ser realizada segundo o estabelecido nos protocolos de consulta das comunidades impactadas.

292 MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL. TRF1 Ordena consulta prévia a indígenas afetados pela

mineradora Belo Sun e mantém suspensão do licenciamento. Notícia de 06/12/2017. Disponível em: http://www.mpf.mp.br/regiao1/sala-de-imprensa/noticias-r1/trf1-ordena-consulta-previa-a-indigenas- afetados-pela-mineradora-belo-sun-e-mantem-suspensao-do-licenciamento. Acesso em: 18 março de 2019.

de ouro a céu aberto do País293. Vale destacar que os referidos povos indígenas já sofrem

os impactos da Exploração hidrelétrica de Belo Monte habitando a região mais afetada pela modificação do curso do Rio Xingu, cuja vazão foi reduzida em 80%, comprometendo demasiadamente as atividades rotineiras e habituais das comunidades. Saliente-se, outrossim, que o empreendimento minerário de Belo Sun pretende se instalar há apenas 10 km de distância da hidrelétrica de Belo Monte294.

Outra decisão de relevo foi proferida pela Justiça Federal em favor do povo Waimiri-Atroari em janeiro de 2018 que, dentre outras coisas, reconheceu a existência do protocolo de consulta já elaborado pelos indígenas como a forma com que estes devem ser consultados pelo governo, bem como deferiu parcialmente a tutela de urgência requerida pelo MPF para que a União e a FUNAI “se abstenham de realizar

empreendimentos que sejam capazes de causar impacto de grande escala (tais como atividade de mineração e instalação de hidrelétricas) no interior do território indígena sem haver consentimento prévio e vinculante do povo Waimiri-Atroari” (grifos no

original), mencionando, inclusive, a jurisprudência da Corte Interamericana de Justiça e da Corte Constitucional da Colômbia nesse sentido295.

O reconhecimento público dos protocolos autônomos de consulta significa importante passo a ser dado na luta por autonomia e autodeterminação dos povos indígenas, representando a emancipação do paradigma da assimilação e da incapacidade do indígena, significando que os mesmos possuem a aptidão para serem protagonistas de suas vidas, controlando os usos de suas terras e recursos, particionado dos processos com aptidão para afeta-los de modo que possam influenciar o resultado final e as decisões do governo.

293 A mineradora se estabelecerá à distância de 11,6 Km da TI Paquiçamba e à 16,2 Km da TI Arara da

Volta Grande do Xingu.

294 MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL. TRF1 Ordena consulta prévia a indígenas afetados pela

mineradora Belo Sun e mantém suspensão do licenciamento. Notícia de 06/12/2017. Disponível em: http://www.mpf.mp.br/regiao1/sala-de-imprensa/noticias-r1/trf1-ordena-consulta-previa-a-indigenas- afetados-pela-mineradora-belo-sun-e-mantem-suspensao-do-licenciamento. Acesso em: 18 março de 2019.

295 Processo nº 1001605-06.2017.401.3200, Juíza substituta Raffaela Cássia de Sousa, subseção da 3ª

3.2 Os requisitos para um legítimo procedimento de consulta na perspectiva do