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6 UMA LEITURA-ESCRITURA DE NOVAS FORMAS CLÍNICAS (II)

6.9 Avant-propos

Jean-Pierre Lebrun, colaborador de Melman, assina a apresentação de La nouvelle

économie psychique. A escolha de trabalhar com essa introdução no final da leitura-escritura

de Melman (2003; 2009) é justificada pelo fato de que este conteúdo auxilia a pensar a questão hermenêutica da carreira de Melman, a própria tese da nova economia psíquica e o desenrolar de questões posteriores, sobretudo a tese do matriarcado.

Segundo Lebrun (2009), o que unifica os diferentes textos reunidos neste livro é uma mesma interrogação: saber se a psicanálise dá conta dos desafios impostos pela mutação cultural em curso na atualidade. Longe de se aplicar apenas a este livro, esta interrogação é uma constante na obra de Melman, cujo ensino tem acompanhado a mutação. As primeiras menções a esta tese são situadas por Lebrun em março de 2001 e seguem durante as entrevistas que compõem O homem sem gravidade. O efeito esperado desta publicação era que debates fossem levantados tanto sobre a psicanálise em relação ao social quanto sobre o social em relação à psicanálise. Lebrun concorda com Marcel Gauchet ao dizer que, no vetor social-psicanálise, houve uma demora para que os psicanalistas chegassem ao campo social. Enquanto isso, no vetor psicanálise-social, há uma resistência por parte dos psicanalistas em superar um pensamento tido como dominante. Neste último sentido, provavelmente Lebrun se refere àqueles que se opõem à visão culturalista, compartilhada com Melman.

Lebrun (2009) fala sobre a oposição ao culturalismo quando reitera que, no campo da psicanálise, não há uma unanimidade:

Alguns, de fato, estimam que a estrutura do sujeito do inconsciente é sempre a mesma e que a referência lacaniana à linguagem – então esse sujeito é apenas o efeito – largamente suficiente a levar em conta. Para eles, a psicanálise não deveria estar porosa às modificações sociais e não haveria para a psicanálise nenhum interesse, menos ainda necessidade, de se preocupar com a mutação da sociedade na qual somos levados (LEBRUN, 2009, p. 7).

Em suma, os psicanalistas que discordam da nova economia psíquica partem das seguintes premissas: 1) a estrutura do sujeito é imutável; 2) o sujeito é um efeito da linguagem e isso é o suficiente; e 3) a psicanálise não deve se interessar pelo social (LEBRUN, 2009).

Boa parte desta apresentação é dedicada a comentar as últimas questões trazidas em Melman (2009) concernentes ao matriarcado e presentes em textos escritos em 2007, 2008 e 2009. Segundo um editorial de 200718 escrito por Melman e mencionado por Lebrun, quiçá os lacanianos sejam os únicos a propor uma estrutura na qual uma doação imaginária da mãe faz a transmissão fálica. Seria preciso questionar o patriarcado enquanto esquema supostamente obsoleto, a ser substituído por um matriarcado.

Lebrun julga que esta é uma leitura possível para explicar o presente e o futuro da mutação cultural em curso. O próprio autor ressalta o perigo que uma leitura deste tipo suscita: cair em uma nostalgia do pai, cuja tentativa de revalorização não passa de um andar em círculos. A suposta primazia do pai é negada pelo próprio Lacan, em seu seminário D’un discours qui

ne serait pas du semblante (LACAN, 1971): teoricamente, é o Édipo que instaura a primazia

do pai, enquanto reflexo patriarcal. Lacan (1971) discorda desta suposição e utiliza uma forma lógica de falar sobre a castração, a partir do pai como um numeral: nas dinastias, o que diferencia os membros de mesmo nome são seus números: George I, II, III, IV... Com o tempo, o que acaba por diferenciá-los (ou confundi-los) é justamente esse numeral. A mãe, ao contrário, é inumerável, já que não resta dúvidas sobre quem ela é, ou sobre quem é a mãe dessa mãe.

A nova economia psíquica não se resume a uma evolução do matriarcado, mas a um declínio da economia centrada em um pai. Seu resultado não é o sujeito matriarcalmente centrado, mas um sujeito sem centro, sem gravidade. Com o auxílio de John Jakob Bachofen e de Ésquilo, Lebrun (2009) inverte a questão do nascimento: não é a mãe quem dá à luz, mas o pai. A mãe é apenas aquela que cuida de uma semente e assim salvaguarda a descendência do homem. Evidencia-se que o que está em jogo é menos o pai ou o patriarcado, e mais a dimensão

simbólica que esta figura exerce, isto é, uma nomeação. Para Lebrun (2009), um filho é aquele que é chamado de filho, ou seja, aquele a quem um pai cede seu nome. A paternidade pode ser então reconhecida por uma nomeação e a nomeação faz automaticamente desse um homem um pai.

Desta constatação decorrem duas ideias, distorcidas e opostas. A primeira é a de que um pai excessivamente consistente dificultaria a nomeação. A segunda ideia errônea é a de que o pai não seria mais necessário, por ser um mero “funcionário da linguagem”, posição que igualmente dificulta a nomeação. Sobre esta questão, Porge (2009) afirma que a tese da nova economia psíquica toma parte de um corpo teórico que nega as consequências do ato de nomear, retornando a uma posição teórica pré-saussuriana na qual a linguagem se resume a uma nomenclatura. A própria nomeação da teoria é problemática, já que nasce de “uma confusão entre psicanálise, sociologia e psicologia” (PORGE, 2009, p. 26). O problema não é questionar as mudanças culturais, mas compreender que elas não são objeto da psicanálise, porém da sociologia e da psicologia.

Por fim, o futuro é marcado por esse declínio da economia psíquica patriarcal e habitado por homens sem gravidade (LEBRUN, 2009). Em breve estes sujeitos poderão vivenciar o fim do interdito do incesto, edificação que ruirá por conta de um laço social em que tudo o que é desejado é entregue às massas, sem demora e sem proibições. Lebrun (2009) compreende que todo o trabalho de Melman até então culmina nestas duas teses: uma nova economia psíquica e uma sociedade matriarcal.

Apesar do destaque dado a esta segunda teoria nas publicações posteriores, a palavra “matriarcado” só aparece uma vez em Novas formas clínicas, dita por um espectador do seminário. Todavia parece natural que uma guiasse até a outra, observada a forma como Melman (2003; 2009) desenvolve as hipóteses da heterotopia entre S1 e S2, da extinção da diferença sexual e da unificação do objeto do gozo. Se o discurso de S2 (ou discurso feminino) só pode ser autorizado por si mesmo, a forclusão do Outro põe em risco a existência de S1. O homem pós-moderno caminha para um retorno do matriarcado porque, na ausência do Outro, ele está passando por uma feminização e se tornando um sujeito autorreferenciado.

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