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Primeiro comentário sobre o Édipo: universalidade antropológica

5 UMA LEITURA-ESCRITURA DE NOVAS FORMAS CLÍNICAS (I)

5.4 Primeiro comentário sobre o Édipo: universalidade antropológica

Antes de um intervalo no seminário, Melman (2003; 2009) faz um comentário sobre o Édipo, direcionado aos jovens psicanalistas e aspirantes. Segundo o autor, o problema fundamental da psicanálise desde o início sempre foi saber se o Édipo é ou não um fenômeno universal, ou seja, se todos os sujeitos estão sob os imperativos de um mesmo sintoma (MELMAN, 2003; 2009). A solução para este problema é obtida a partir da antropologia: segundo Bronislaw Malinowski, o Édipo não é universal. Apesar disso, Lacan pensava uma clínica que se referisse a todos. Em compensação, isto permite que as pessoas cheguem à análise por motivos diversos.

A universalidade do Édipo é questionada por Melman possivelmente com base em Sexo

e repressão na sociedade selvagem, livro escrito por Malinowski em 1927. Lacan

provavelmente evoca este mesmo texto quando menciona o antropólogo em Os complexos

Em comunidades patriarcais, o pai desempenha uma função de repressão e de sublimação. As sociedades matriarcais possuem um esquema diferente: as tarefas do pai têm caráter mais familiar, enquanto o tio materno é incumbido de salvaguardar os tabus familiares e iniciar a criança nos ritos tribais. A função paterna está dividida entre dois sujeitos, mostrando que é possível estabelecer formas diversas de equilíbrio psíquico. A imago paterna possui uma atribuição determinada socialmente (LACAN, 1938/2008).

Markos Zafiropoulos (2002; 2006; 2009) considera Os complexos familiares como fonte de todo um paradigma pós-moderno que versa sobre o esvaziamento da função simbólica e o fim do neurótico. Esta fase do ensino de Lacan é marcada pela sociologia de Émile Durkheim, cuja lei de contração familiar é convertida na tese do declínio social da imago paterna. Quanto mais primitiva é uma família, maior o agregado de casais biológicos e menor o parentesco conforme laços naturais e consanguinidade. As relações de sangue são apenas afirmadas através de ficções – totemismos, adoções ou constituições artificiais de grupos (LACAN, 1938/2008). Por outro lado, existe uma relação entre o tamanho e composição do grupo familiar e o valor social que é dado a seu líder. O encolhimento da família primitiva faz com que a família conjugal seja compreendida como um mero resto. A diminuição da autoridade do pai é determinante do declínio de sua fecundidade subjetiva no complexo de Édipo. Este teria sido o cenário propício para a invenção da própria psicanálise, descoberta por Freud através do Édipo em uma forma degradada (ZAFIROPOULOS, 2002).

O problema reside no fato de que a tese principal do texto de 1938 não procede. Ainda nos anos 1970, um grupo de pesquisadores da Escola de Cambridge chegou ao resultado de que a família conjugal foi amplamente dominante na Inglaterra entre os séculos XVI e XIX. Posteriormente, o mesmo padrão foi encontrado em pesquisas sobre a população das Europas do Norte e do Sul. O consenso é de que a família conjugal não só não foi inventada no século XX como é a formação familiar mais frequente em toda parte (ZAFIROPOULOS, 2009). Talvez tenha sido diante desta falha que Lacan haja abandonado sua base teórica da sociologia durkheimiana. A partir dos anos 1950, a lei da contração familiar foi substituída pela noção de Nome-do-Pai, influenciada pela antropologia estrutural de Claude Lévi-Strauss.

Melman não faz menções a Lévi-Strauss. Não há citações nem de A eficácia simbólica, nem de Estruturas elementares do parentesco, textos de 1949 e referências capitais do “retorno a Freud” (ZAFIROPOULOS, 2006; 2009; 2010). Este “retorno” foi mais do que uma retificação subjetiva dos textos de Freud, deixados em segundo plano pelo “jovem Lacan”15 em sua fase

15 Zafiropoulos (2002) propõe a denominação de “jovem Lacan” para o período do ensino lacaniano determinado

durkheimiana. Esta ruptura representou uma grande virada na psicanálise, sobretudo no que diz respeito aos seus aspectos epistemológicos. Lacan enfim se apropriou do subsídio teórico necessário para causar uma metamorfose na psicanálise, organizar os três registros (Real, Simbólico e Imaginário) e teorizar o Édipo a partir da função simbólica.

Malinowski e Melman estão corretos. Entretanto, este tipo de refutação de ambos é tomado por um viés culturalista. De fato, Malinowski sustenta que o Édipo depende de circunstâncias sociais que estão presentes nas sociedades patriarcais ocidentais. Neste sentido, a versão freudiana do Édipo – burguesa, vienense, neurótica e moderna – está sendo essencialmente questionada. Uma crítica atual à universalidade edipiana não deve ser baseada puramente neste ponto de vista, mas necessita de outros meios de significação (ZAFIROPOULOS, 2002). A ausência de Lévi-Strauss no texto do psicanalista subdimensiona a função paterna e o Nome-do-Pai enquanto mito individual da tribo dos neuróticos católicos (ZAFIROPOULOS, 2006).

5.5 Heterotopia entre S1 e S2

Melman (2003; 2009) retoma a proposição das relações entre S1 e S2 e propõe que, se ambos os termos estão situados no mesmo plano e em espaços diferentes, entre eles se constitui uma relação heterotópica. O primeiro termo (S1, masculino) está no Simbólico, e o segundo (S2, feminino), no Real. Se no discurso S1 ocupa o lugar de agente, é porque há uma tendência em tentar dominar o Real, isto é, em dar um nome para as coisas. Os homens se pressupõem “mestres do Real”, pois é neste ato de nomeação que encontram sua autoridade. Para dominar esse Real, são criados termos, conceitos e mitologias.

As mulheres se divertem às custas destas tentativas de dominação fadadas ao fracasso, já que estão cientes do Real como aquilo que escapa à nomeação. O S2 ocupa o lugar do gozo, o que explicaria o que Melman afirmara há pouco: a mulher está do lado que suporta o Real. Este é o lado que suporta um gozo logicamente impossível de ser dominado pelo Simbólico: o gozo Outro, um gozo que não é parcial, “mas do corpo tomado em sua totalidade, em uma relação com o Real” (MELMAN, 2003, p. 45; 2009, p. 47).

A mãe é a mensageira do Outro para seu filho: é ela quem primeiro fornece a ele uma mensagem. Esta relação por vezes aparenta ser tão perfeita na memória do filho que ele a recorda com nostalgia. O sujeito cria uma ilusão de que houve esta época em que a demanda do Outro parece perfeitamente realizada, pois havia um sentimento de certeza em relação a ela. Uma vez submetido às leis da linguagem, o sujeito consegue pensar para além desta nostalgia e da ideia de que é um sujeito inferior, decaído de um lugar ideal. Outros semblantes passam a

ocupar o lugar do Outro e assim é possível funcionar, em vez de aguardar a vida inteira pela “verdadeira vida”.

Melman (2003; 2009) insiste diversas vezes sobre esta sujeição às “leis da linguagem”, mas não determina muito bem quais são elas. O que são as leis da linguagem? São as leis que regem o sistema de significantes que a linguagem constitui (MELMAN, 2002/2008): 1) a descontinuidade da cadeia formada pelos significantes, sem nunca obter êxito em ser fechada nem sentido completo; 2) a substituição e o deslocamento de significantes, mais bem resumidos pelos termos metáfora e metonímia; e 3) a castração como perda irredutível a que o sujeito se submete ao entrar no Simbólico.

Antes de dar lugar a mais uma pausa, Melman (2003; 2009) conta a seus espectadores o que considera uma história engraçada, que diz respeito ao que na opinião dele é uma constatação formidável. Eis a constatação: tanto Freud quanto Lacan estavam debruçados sobre a renúncia paterna quando morreram. Da parte de Freud, Moisés e o monoteísmo é escrito numa época de nacionalismos. A mensagem deste livro é a de que a filiação divina é um mito, uma vez que o líder que guia os israelitas rumo à “terra prometida”, Moisés, é um estrangeiro egípcio (MELMAN, 2003; 2009).

Quanto a Lacan, seu último tema foi a supressão do quarto aro que compõe o nó borromeano, correspondente à referência paterna, o que para Melman (2007, p. 102-103) constitui uma questão primordial: “(...) o círculo a três é um progresso, ou bem devemos nos ater a esse nó a quatro, que implica o Nome-do-Pai, e portanto a perenização do sintoma? Ele mesmo [Lacan] não concluiu, e é, direi, a herança que nos deixou”. O objeto trabalhado por Freud e por Lacan é o mesmo, mas em diferentes níveis: em Freud, a nível coletivo, e em Lacan, individual. A mensagem que Melman (2003; 2009) passa com a exposição desta história é a de que os psicanalistas jovens devem avançar diretamente para esta problemática.

5.6 Forclusão do Outro

Melman (2003; 2009) revisa o sentido que o Outro adquire na obra de Lacan para instituir o que seria o primeiro traço da mutação cultural. “Nossa cultura é sempre organizada em torno de grandes textos” (MELMAN, 2003, p. 52; 2009, p. 52). Tais textos representam um saber e uma transferência entre os sujeitos e aquele que supostamente o escreveu, encarnam as diversas faces do Outro ao longo da história e determinam quais as normas sociais e credos dentro daquele laço social a partir do que o Outro deseja. Esta é uma primeira referência a textos da antropologia e sociologia pós-moderna e a autores como Jean Baudrillard e Jean-François Lyotard, que dissertam sobre o fim da era das grandes narrativas e dos grandes textos.

Além de pensar o conceito de Outro, Melman (2003; 2009) também convida à reflexão do porquê da própria designação “Outro”. “Se os senhores prestarem um pouco de atenção, verão que o diálogo que mantemos primeiramente é o diálogo que mantemos com um outro, isto é, com um semelhante, mas que uma grande parte de nosso diálogo interior se dirige a um outro interior, com quem falamos” (MELMAN, 2003; p. 52-53; 2009, p. 53). O Outro é sobretudo um lugar linguageiro, e por isso estes grandes textos também têm função de defender a existência desse lugar. O Outro é outro pois não é possível que o sujeito se identifique com ele ou faça dele um semelhante. A única forma de identificação possível com este Outro é supô- lo como um pai.

Nesta relação entre o sujeito e o Outro existe uma particularidade referente ao fanatismo, pois este é produzido “cada vez que creio que minha palavra está de acordo com a mensagem vinda do Outro” (MELMAN, 2003; p. 54; 2009, p. 54). Esta passagem do seminário é interessante no que toca ao que anteriormente foi dito sobre a relação perfeita entre mãe e filho. O fanatismo, devido a esta mesma convicção na captação da mensagem do Outro, pode ser compreendido como uma nostalgia levada às últimas consequências.

A descrição feita da relação entre o sujeito e o Outro até então segue a norma moderna, a que Melman (2003; 2009) se refere como obsoleta. Diante da mutação cultural em curso, há uma mudança nesta norma. Na contemporaneidade, as relações são horizontais, pois acontecem entre os semelhantes. O lugar de saber do Outro está vago.

A queda das ideologias está correlacionada à queda dos grandes textos. Os escritos de Karl Marx e a ideologia comunista são identificados por Melman (2003; 2009) como os últimos que desempenharam o papel de Outro. O neoliberalismo aparece como forte candidato substituto do Outro, exercendo uma influência na própria economia psíquica atual.

Para Sandroni (1999), a economia é uma ciência cujo objeto de estudo é a atividade produtiva, com ênfase nos aspectos mensuráveis destas atividades. Um exemplo disso é que as informações obtidas através de estudos econômicos de uma cidade ou empresa fornecem subsídio para que sejam elaboradas estratégias para aumentar a eficiência na distribuição de recursos. Já Abbagnano (2007, p. 298) entende a economia como algo da “ordem ou regularidade de uma totalidade qualquer”, ou seja, relacionada ao funcionamento ou à organização desta totalidade.

Na psicanálise, o ponto de vista econômico aparece na tríade metapsicológica freudiana ao lado do tópico e do dinâmico. Segundo Roussillon (2005), este ponto de vista aborda a intensidade das “forças” que percorrem o aparelho psíquico. A economia freudiana é uma

economia libidinal, na qual as palavras são utilizadas para manipular e reestabelecer equilíbrio pulsional.

Lacan empreendeu uma “desconstrução da pulsão” (EIDELZSTEIN, 2016). Esta desconstrução consistiu em: 1) uma subversão do conceito freudiano de Trieb; 2) um rompimento com o caráter biológico e energético da pulsão; 3) uma rejeição das pulsões de vida e de morte; e 4) uma mudança de galáxia epistemológica da psicanálise para a linguística. A pulsão é situada na psicanálise lacaniana como um “tesouro de significantes” (LACAN, 1960/1998. p. 831) e substituída pela fórmula do fantasma ($ ◊ a) no grafo do desejo.

O erro freudiano de entender as pulsões como uma força ou energia é possivelmente justificado por Lacan a partir da fala “as pulsões são, no corpo, o eco do fato de que há um dizer” (LACAN, 1975, p. 6). Em Freud, havia um engano entre a cadeia significante e os artifícios gramaticais que são seus rastros. A fala, verdadeiro fenômeno, acaba confundida com o corpo tridimensional, como se fosse este que em verdade falasse (EIDELSZTEIN, 2016).

Melman (2003; 2009) propõe que a mutação cultural é depositária de uma nova

economia psíquica, que difere bruscamente daquela preconizada por Freud. O mal-estar atual

seria um segundo mal-estar. O gozo é celebrado e incentivado em vez de ser evitado. A economia neoliberal de mercado e a nova economia psíquica convidam os membros de uma comunidade a extrapolarem as mensagens que o Outro possa enviar-lhes, aceitando o excesso de formas de gozo.

O antepenúltimo fundamento para a forclusão do Outro evocado por Melman (2003; 2009) é a mudança decorrente dos avanços tecnológicos, sobretudo no campo da linguagem. Uma vez que a internet derruba as barreiras de distância e cultura, há uma horizontalização dos sujeitos que só poderia acontecer em relações entre semelhantes. As palavras na rede estão sendo substituídas por imagens e criando linguagens cada vez mais destituídas da dimensão simbólica. Este é um aspecto também comentado por Dunker (2015), que considera a condensação da linguagem como geradora de transtornos baseados em um déficit narrativo. Se as pessoas já não dispõem de signos linguísticos, há um empobrecimento da queixa e da demanda por tratamento. Isto repercute na clínica, uma vez que a queda na qualidade da fala no paciente acarreta uma maior dificuldade diagnóstica.

O Terceiro como entidade que assegura o cumprimento da lei está perdendo o seu lugar à medida que os contratos e acordos estão sendo tratados diretamente entre os indivíduos e que se dá uma autorização da suspensão da dívida com o Outro no consenso social. Os relacionamentos se tornam duais, pois não há quem garanta a justiça das relações de troca. Apesar de ainda existirem candidatos a Outro – o presidente dos Estados Unidos, por exemplo

–, um olhar mais cuidadoso revela que até os governantes das potências mundiais estão submetidos a esta ideologia neoliberal. Todos os reis estão nus.

Para finalizar, nunca antes na história a humanidade havia tido tanto controle sobre os corpos como hoje. Melman (2003; 2009) fala da tecnologia aliada à medicina e dos mecanismos de regulação da reprodução e fecundação atualmente disponíveis. Uma inversão da lógica do binômio sexo-reprodução foi empreendida nos últimos cinquenta anos. A década de 1960 foi marcada por incursões no campo da contracepção que deram suporte à revolução sexual e viabilizaram o sexo fora da reprodução. Já as tecnologias reprodutivas descobertas nos anos 1980 proporcionaram o ingresso na nova lógica da reprodução fora do sexo (TORT, 2001; PERELSON, 2006). Perelson (2006, p. 709-710) lista alguns destes métodos: “(...) inseminação artificial homóloga (com sêmen do próprio cônjuge ou companheiro) e heteróloga (com doação de sêmen), FIV [fertilização in vitro] (podendo esta ser com doação de sêmen, óvulo ou embrião), prática de útero de substituição e clonagem humana”.

Os avanços científicos permitem que hoje mulheres em diversas condições consigam ser mães – virgens, na menopausa ou mesmo mulheres que nunca nasceram, através de uma técnica de maturação de óvulos de embriões. O mesmo acontece com os homens, que podem se tornar pais mesmo depois de mortos, por meio da fecundação com o sêmen congelado. A tecnologia da reprodução implica a divisão entre pais e mães categorizados entre biológicos e sociais (PERELSON, 2006). O resultado é que pela primeira vez desde a Antiguidade não é preciso se preocupar em honrar os deuses em troca de fertilidade. Por todos esses motivos, o Outro já não é necessário (MELMAN, 2003; 2009).

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