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Mapa 1. Mapa do rio Tiquié (Cedido pelo antropólogo Aloisio Cabalzar) Em destaque, comunidades Hausirõ e Ñahur

3.3 Aventurando: as experiências nas andanças

As histórias de vidas de homens, mas também de mulheres, Hausirõ e Ñahuri porã são marcadas pelo engajamento em certos tipos de experiências de trabalho, que, apesar de diversas, convergem por terem algumas características em comum: envolvem viagens e residência temporária em localidades distantes das comunidades de origem; o estabelecimento de relações de trabalho com patrões, que, em Tukano, chamam Yu pehskasã (meu branco); e um acesso a certos aspectos e conhecimentos do mundo do branco, como língua, técnicas, dinheiro, mercadorias, comida, bebida.

Em suas narrativas de história de vida, referem-se a esses trabalhos como andanças, caminhadas, como parte de um tempo em que aventuraram, foram andarilhos (sihari mahsã). Como me explicou um interlocutor: “quando os mais velhos, meu avô, seus irmãos e cunhados sentavam para comer ipadu e conversar à noitinha, eles não falavam apenas de benzimentos e das histórias dos antigos, mas de suas experiências, suas andanças, com comerciantes, no trabalho de seringa...”. Essas experiências pessoais compõem histórias que, sendo repassadas através das gerações, são incluídas no rol de eventos dos antepassados.

Muitos justificam essa fase de andanças devido à falta de oportunidade de estudos ou de continuidade de estudos após a formação na primeira parte do ensino fundamental, que na época era a única modalidade de ensino que as escolas das missões de Taracua e Pari- Cachoeira ofereciam. Segundo dizem, “os padres só levavam para estudar na cidade [para continuar os estudos] aqueles que eram bons alunos e comportados. O jeito foi, então, aventurar...”. No relato de Ermínio Pedrosa, Ñahuri porã de Wahpu Nuhku:

Eu nasci e me criei nessa comunidade conhecida como Wahpʉ Nʉhkʉ (Cunuri Ponta). Depois meu pai tinha me levado a Taracua para estudar, onde estudei só um ano. Pertencíamos a Taracua. Depois os padres dessa região nos fizeram desmembrar, por isso passei a estudar em Pari- Cachoeira até a quinta série. Naquela época era aquele o grau máximo de escolaridade oferecido.

141 Ao término do meu estudo, já era jovem. Posteriormente passei a trabalhar com o velho finado Sabá, que morava em Fátima e Pirarara. Sabá era meu finado patrão (yu pehkasã mihĩ, lit. meu branco finado). Todo mundo sabe disso. Andei trabalhando com ele cinco anos. Trabalhando com ele, fui até a cabeceira, até a fronteira na área e no meio dos Bará. Passava lá e descia comprando galinhas, farinha. Posteriormente, fui auxiliar do prático do barco do meu patrão. Fui até o rio Negro, na área de Cucuí. Ao chegar a Cucuí, meu finado patrão pedia licença para ir à Venezuela. Passei em Venezuela fazendo viagem com meu patrão. Em São Carlos, tem Moroa no lado da Venezuela. Do nosso lado, é São Felipe. No lado da Colômbia, também há uma grande povoação. Ali se divide de um lado Colômbia e de outro Venezuela. Eu conheci e passei naqueles lugares. Por aqui a gente passava subindo depois de três semanas. Ele era meu finado patrão neste rio Tiquié. Ele comprava e trazia todas as necessidades nossas, como panelas, tigelas e muitas outras. Ele começava a vender fiado a partir dessa comunidade. Eu trabalhei com ele. Naquela época não existia estudo para dar continuidade ao ensino escolar. Os padres só enviavam para estudar a São Gabriel a pessoa “comportada”. Por falta de oportunidade de continuar o estudo, eu andei trabalhando com ele. Com essas andanças, eu encontrei a minha esposa, de nome Assunção Maria Cabral, neta do Tomasso. Fazendo viagens, conversávamos. Depois fiz casamento, pois naquela época o casamento era imediato. Por isso, depois do casamento eu a trouxepara minha comunidade. A partir disso, deixei de trabalhar com meu patrão. Nunca desvinculei totalmente. Ele sempre me fez uma ajuda oferecendo redes.

As andanças também eram o destino de muitos órfãos. O fato de ser órfão e o de não ter tido a oportunidade de estudar se combinam na história do finado Clemente Azevedo, do clã Hausirõ porã, morador de Sopori Bua:

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De acordo com o que alguns me contaram, eu tinha estudado um pouco sob os cuidados de Miguel [que o criou a partir do momento em que seu pai, de um segmento de clã superior ao dele, morreu]. Porém, minha finada mãe me levou para São Gabriel abaixo. Lá me criei. Quem tinha levado para lá foi o irmão maior da minha mãe. Por causa disso, estou sem escolaridade. Certamente, ele não me deu incentivo, apoio, para frequentar escola. Ele não tinha se preocupado comigo. Em consequência disso, não sei escrever no papel e ler as escritas no papel. Fui crescendo sem aprender, nas minhas andanças. Porém minha irmã Maria tinha se preocupado em me deixar no estudo. Naquela época navegava o barco de nome Dom João 23. Com este vinha a são Gabriel, estudar até 5ª série, pessoal de Santa Isabel e de Barcelos. Em São Gabriel que eles terminavam seu estudo. Foi naquele tempo que a minha irmã me levou para fazer matrícula na missão. Fui matriculado, mas depois não me levaram para estudar. O padre tinha pedido que eu fosse levado assim que o barco passasse na comunidade. Ele perguntou ao irmão da minha irmã se eu era filho dele. Respondeu-lhe que eu era filho do finado cunhado dele. “Ele é órfão de pai e mãe”, disse. O padre deu um parecer favorável, afirmando: “ele vai morar conosco e nem vai passar férias por aqui; nas férias ficará trabalhando”. Eu estava tendo uma oportunidade muito boa. Tenho certeza de que eu chegaria a ser padre. Porém, minha irmã não me levou para estudar. Daí eu acabei morando e convivendo com sua família. Fazia pesca e me sustentava. Em uma ocasião de festa, eu tinha brigado com meu primo, sob efeito de excesso de bebida (kease). Isso me fez ser andarilho (sihagu). Encontrei um amigo [merakhu], o qual era de Piracuara. Pedi para passear com ele e fui embora. Ele aceitou prontamente dizendo: “vamos”. Tinha informado ao pai dele o meu pedido: “ele quer ir conosco”. E este foi favorável, afirmando: “convida para acompanhar, ele está

143 querendo passear contigo, pois não tem pessoas que o amam”.

Essas andanças e experiências de trabalho envolvem a aquisição de certo domínio das línguas portuguesa e espanhola e de habilidades, técnicas específicas relacionadas a cada tipo de trabalho, através de processos de aprendizagem que dependem da prática cotidiana, mas também da orientação de seus patrões. A velha Catarina, que andou nos seringais do alto Uaupés na Colômbia junto com seu marido, descreve, explicando para sua filha e para mim, a aquisição do domínio da técnica de processamento de seringa:

Eu vi o sistema do trabalho de seringa. Fui à Colômbia junto com meu marido, isso quando ele estava vivo. Foi o colombiano que nos levou lá, nos levou ao lugar muito longe. Ao trabalhar por lá, ficamos longos tempos, dois anos e meio. Primeiro abria caminho, depois limpava ao redor dos dipʉ (seringueira). Depois de todas essas etapas, preparava petoriaka, depois riscava no tronco para tirar seiva da seringa. Isso faziam os seringueiros. Assim, a seiva caía na vasilha tabi, tabi, tabi nikã (gotejava...). Enquanto isso, eles iam até a outra seringa para fazer o mesmo processo até quantas estivessem no caminho. Tinha muitas, aqui uma, lá outra... Tinha muitas lá. Por isso que trabalham muito com isso. Depois de tanto trabalhar, uma hora da tarde vinham recolhendo no galão até as duas horas da tarde. Tinham sacos deste tamanho, nele colocava até ficar cheio. [A filha pergunta: não enchiam na lata?] [Não, filha...] colocam no saco. Era específico para encher seringa. Enchiam até ficar cheio. Eles retornavam cheios de seringa com o saco plástico. Para carregar, colocavam no paneiro feito de arumã e carregavam. [Filha: eu tinha sempre pensado que carregavam com latas]. Põe seringa nos sacos plásticos, os quais são específicos para esse fim. À barraca retornam às três horas da tarde. No retorno, começam a derramar numa peça e torce, torce, derrama e torce, derrama e torce, assim sai casca. É assim que faz, filha. [Filha: eu sempre pensava que os seringueiros enviavam aos pehkasã em líquido].

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[Mãe: não, não, não, filha.] Tem sua mistura chamada de ácido. Antes de derramar na máquina, mistura esse líquido, que ajuda a ficar meio endurecida, queima o líquido da seringa. Daí saem cascas. Destes eles colocam no jirau para secar mais e, no dia seguinte, dobram na medida certa para serem carregados. Na Colômbia trabalha a seringa dessa maneira, isso na Colômbia, filha, na fronteira do Caruru, onde havia paya e militares também. Na cabeceira do Uaupés, filha. Depois de muitos anos de trabalho, retornamos para esta região. Retornamos ao Rio Umari, ao lugar chamado Turi Pamo. Somos do Turi Pamo. Aqui termino minha fala sobre isso.

Certas narrativas revelam um deslumbramento em relação ao conhecimento de outros lugares, outros tipos de gente, brancos, paisanos, enfim, acerca de outro mundo, onde há watĩ uta (lit. fezes do diabo), nome que dão ao dinheiro, uma variedade de tipos de comida e de bebida de branco, além de roupas e outras mercadorias:

Fui com ele até em Piracuara. Depois de duas semanas de estada, tinha surgido trabalho em Teresita. Era para abrir pista de pouso da aeronave. Eu não tinha cédula [registro de nascimento], pois lá eles pedem isso. Mesmo assim, fui aceito para trabalhar. Trabalhei dois meses. Outros meus colegas desistiram. Fiquei sozinho, mas eu era já acostumado de andar sozinho. Fui receber o pagamento do meu último mês de trabalho em Mitú, com o presidente, que lá é conhecido como comissário. O meu chefe do trabalho me disse: “vamos, vou te levar para você receber seu dinheiro”. Fui até onde seu pai [Miguel Azevedo] passou também, pois somente aventurando a gente conhece outros lugares. O meu chefe me levou, subimos e chegamos ao local do trabalho do comissário. Sabe que essas pessoas assim não estão expostas em qualquer local. Tinha documento escrito pelo chefe do trabalho autorizando o pagamento. Recebi boa quantidade de dinheiro. Saindo do local, o chefe do trabalho convidou-me para fazer compra e apresentou as lojas que vendem menos caro, pois ele conhecia a cidade. No percurso da compra, pensei: “será que

145 ele não quer tomar alguma coisa?”. Daí perguntei: “você quer tomar alguma coisa?”. “O dinheiro está contigo, a decisão é tua”, respondeu-me. Encontramos um bar e entramos nele. Compramos, tomamos e ficamos conversando. Depois disso voltamos para nossa hospedagem. Nossa hospedagem estava em Mehka Yuhti, na frente de Mitu. Lá tinha seus conhecidos. A gente atravessou e dormimos lá. Ficamos dois dias. Depois desses dias, retornamos a Piracuara. Logo no meu retorno, já havia outro precisando de pessoas para trabalhar. Já era outro trabalho. O vaqueiro da comunidade estava cansado de trabalhar com gado. Daí o capitão da comunidade veio me consultar se eu queria trabalhar de vaqueiro. “Se vocês me oferecem esse trabalho, aceito prontamente”, essa foi a minha resposta. Assim, fui vaqueiro. Ele me ensinou como cuidá- los em uma semana. Apresentou os nomes deles e pediu que eu cuidasse bem. Os gados eram bravos com ele, pois ele fazia de qualquer jeito ao ordenhar a vaca. O serviço só era isso e lavar a casa dos gados. Trabalhei por dois meses. Deixando de ser vaqueiro, continuei morando na mesma comunidade. Como aí havia lojas, comprava minhas necessidades e usava, inclusive roupas (Clemente Azevedo, Hausirõ Porã, Sopori Bua).

De modo geral, essas experiências conformam períodos em que as pessoas se afastam dos elos de parentesco e comunitários. O fim das andanças está relacionado ao retorno a uma vida entre parentes ou em comunidade, devido ao apelo de parentes mais velhos ou à consumação de casamentos. As novas andanças tornam-se pouco a pouco esporádicas e direcionadas à obtenção de mercadorias, podendo ser entendidas como incursões rápidas em busca do acesso a objetos de desejo. Na continuidade da narrativa de Clemente:

Depois desse trabalho, fiquei doente e quase morri. Isso aconteceu depois que o Miguel tinha voltado para essa comunidade [Pirõ Sekaro, São José]. Antes ele tinha ido me buscar. Respondi a ele que voltaria espontaneamente, quando quisesse. “Estou aventurando ainda”, disse.

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Depois dele fiquei doente e parei no hospital. Quase morri. Talvez me encontrasse no inferno (to watikʉnhõ nigʉa) se eu não vivesse bem. Recuperei da saúde e voltei. Ao retornar, passei a trabalhar como vaqueiro, pois diziam: “você trabalhou e cuidou bem”. Aceitei e trabalhei. Depois mudamos para a comunidade abaixo, em Piracuara. Trabalhei aí como vaqueiro, depois de recuperar a saúde. Depois descemos junto com irmã dele, Maria. Na verdade ela me trouxe para abandonar por aqui, a esta área, neste lugar. Ela nos disse que iríamos visitar nossos parentes. O marido dela, finado José, tinha uma aeronave. Com esta viemos e pousamos em Pari-Cachoeira. Depois seguimos até Bela Vista. Finado Sabino [pai de Aprígio de Pirarara] estava vivo ainda. Aí emprestamos canoa com ele e viemos descendo até chegar aqui. Ela desconhecia, pois há tempo que tinha saído daqui. Eu já era jovem, com vinte anos de idade. Seu pai [Miguel Azevedo, pai de Antenor, que estava mediando a entrevista] já estava por aqui, e vocês eram crianças. Passei a morar aqui, participar da festa e tomar caxiri. Aí que comecei pela primeira vez a tomar caxiri hʉ, hʉ, hʉ [risos]. Passei a conhecer a minha esposa, estava à procura da companheira. O Miguel queria que eu casasse com Tuyuka. Acho que ela já podia ter me abandonado, pois elas sempre abandonam. Conheci minha esposa [Desana] e fiquei com ela. Quando passa a se ter vida conjugal (pahkoti), torna-se impossível procurar outra. Faltava receber alguns trocados; e, enquanto isso, chegou notícia do trabalho de coca. Diziam que os trabalhadores eram bem pagos. Fui com meus dois cunhados; éramos três. O chefe do trabalho era conhecido pelo apelido de Dera Mision. Chegamos à área dele. Decidimos ir até Boayapʉ. Não fomos aceitos, pois já tinham muitos trabalhadores. Retornamos e chegamos a Miõbua, onde trabalhamos na coleta das folhas de coca durante um mês. Das coisas que a gente queria, conseguimos cada uma: panelas e gravadores. Ao conseguir isso, retornamos a casa.

147 Algumas andanças foram realizadas com incentivo dos padres e freiras salesianos. Ao terminar sua formação ou mesmo tempos depois, ex-alunos realizavam trabalhos junto aos religiosos. Há exemplos de homens que foram barqueiros, cozinheiros dos padres, mulheres que foram cozinheiras das freiras, cuidadoras de criações, lavadeiras. Vejamos, por exemplo, a narrativa de Sílvia, que, trabalhando junto às freiras, chegou ao rio Içana:

Quando eu tinha 24 anos, eu fui pro Içana... Elas que mandaram, as irmãs. Elas pensavam que eu tinha acabado o estudo. Eu nem acabei, coitada! A freira veio e me levou lá para Içana, de repente. Eu trabalhei dois anos para ela. Quando eu tinha 15 anos, eu trabalhei na lavanderia. Com 22 anos, eu fui pra lá, trabalhei no galinheiro. Ela conhecia bem, ela me chamou. Eu não queria, mas ela obrigou: “mesmo assim tu vai ajudar o professor”, ela disse. Tinha umas assim pequeninha, né, pra eu ajudar, catar piolho, fazer limpeza, brincar com as crianças. Eu fui obrigada... Fui lá no rio Negro. Tu conhece Ilha das Flores, tem uma entrada. Lá em cima de Tunuí, comunidade Campo Alegre. Lá que eu fui com um professor – estranho, eu não sabia, não conhecia ele. Cheguei com um que tinha já filhos, era casado já... Eu era solteira ainda, ele também tinha uma filha moça já. Com ela que eu estava já. Eu ainda era solteira com 24 anos, porque não quis homem, não; eu já sabia que homem era ruim... Por isso que eu não casei, não. Irmã Auxiliadora sempre falava pra nós assim: “quando vocês vão casar, vocês vão casar com cachaceiro...”. Ela dizia pra nós. Ainda bem que ela acertou, né? [risos]. Fiquei um ano, metade, quis deixar pra cá, porque já era metade do ano quando chamaram, né... procuraram pra ir pra lá. Minha mãe me deixou casar lá. “Içaneiro come até cobra, e tu vai comer quando for lá”, ela me disse quando eu fui pra lá. Por isso que eu não quis, não, porque eu também não conhecia o pessoal de lá. Depois desci com freira de novo, freira de lá. De lá eu vim de avião. De São Gabriel até Pari. Eu ia fugir, a irmã freira que veio atrás de mim. Eu cheguei e não fui mais no colégio, não. Eu cheguei fora, com minha colega. Eu ia fugir

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pra Manaus... eu já tinha encontrada uma patroa já, como diz Kariwa. Eu ia trabalhar na casa. Tinha rapazes conhecidos, daí eles contaram para a freira: “ela tá aí morando...”. Daí ela veio até onde eu morava. Isso foi em São Gabriel da Cachoeira... ela veio, chamou, depois ela mandou voltar no outro dia de avião para Pari... É, eu voltei assim. Dois dias eu passei em Pari e depois, no outro dia, mandei recado pra vir buscar. Meu pai, ele foi apanhar pra mim de canoa.

Dentre essas andanças, aquelas realizadas no contexto do garimpo merecem um tópico à parte, pela importância atribuída a elas por meus interlocutores e pelo fato de o garimpo constituir um tempo social específico da vida dos moradores do rio Tiquié: o Garimpo Tempo.

3.4 Sob a “lei do ouro”: vida e trabalho no Garimpo Tempo