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Fragmentos da história de ocupação do rio Tiquié pelos Hausirõ e Ñahuri porã

Mapa 1. Mapa do rio Tiquié (Cedido pelo antropólogo Aloisio Cabalzar) Em destaque, comunidades Hausirõ e Ñahur

2.3 Fragmentos da história de ocupação do rio Tiquié pelos Hausirõ e Ñahuri porã

Neste tópico abordarei alguns fragmentos de trajetórias dos Hausirõ porã (da linha de descendência de Ahkuto, irmão menor de Hausirõ) e Ñahuri porã42 (das linhas de descendência de Ñahuri e de Uremiri)43 sobre a migração do Papuri e a ocupação do rio Tiquié. Ao

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Para além da versão Hausirõ porã registrada no volume 5 dos Narradores Indígenas, registrei em campo fragmentos de narrativas contadas por homens de diferentes segmentos do clã Ñahuri porã.

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Conforme me explicaram Rafael Azevedo, Ñahuri morador de Wariã Tuhkurõ, e o antropólogo Aloisio Cabalzar (informações pessoais), pode-se identificar entre os Ñahuri porã, residentes do médio de Tiquié, quatro linhas de

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apresentar essas narrativas, pretendo demonstrar como diferentes trajetórias, ou diferentes modos de narrar trajetórias, constituem tipos específicos de conversa (ukũse), que, por sua vez, são elementos centrais na constituição de clãs e de segmentos de clãs. Essas trajetórias revelam que a abertura de novos povoamentos e mudanças recorrentes de uma localidade para outra consistiram em processos de (re)conhecimento de uma extensa área, conduzidos através de um método próprio de experimentação (yãakeose) voltado para a busca da identificação de lugares bons para se viver. Esses lugares, que foram outrora habitados pelos ancestrais, atualmente são referidos nas narrativas sobre as trajetórias de clãs ou segmentos de clãs como casas/lugares abandonados (wisetori) que compõem seus amplos territórios. Conforme me explicou o antropólogo Ñahuri porã Dagoberto Azevedo:

Ao narrar trajetórias, os velhos se reportam a muitos lugares onde viveram seus ancestrais, no rio Papuri e na rota de migração para o rio Tiquié. Ao ocuparem lugares, constroem malocas, delimitam áreas de subsistência e realizam rituais. Ao mudar de lugar para lugar, identificam os lugares que são bons para viver, demarcando o território próprio. Nas suas narrativas, os velhos se referem a estes lugares como wisetori, que são os sítios e aldeias abandonados, ocupados antigamente pelos ancestrais de seu clã. De certa forma, as pessoas sentem que são donas desse lugar, em alguns casos retornando depois de longo tempo. Outras pessoas que querem abrir e viver num wito de outros têm que pedir licença deste lugar, senão pode haver conflitos e acusações.

descendência, assim ordenados hierarquicamente: os Borato paramerã (netos de Borato), Beyu paramerã (netos de Beyu), Ñahuri paramerã (Netos de Ñahuri) e Uremiri paramerã (netos de Uremiri). Descendentes de Borato: Ernesto Pedrosa e filhos [Oanu, Serra de Mucura]. Descendentes de Beyu: Nelson Pedrosa e filhos [Oanu, Serra de Mucura] e filho de Guilherme Pedrosa [Wahpu Nuhku, Cunuri]. Descendentes de Ñahuri: filhos de Adão Azevedo [Bote Purĩ Bua, S. José II], e filhos de Aprígio e Alcídio; filhos de Luciano [Mahãwai Tuhkurõ, Pirarara]; filhos de Rodolfo [Wariã Tuhkurõ, Acará Poço]. Descendentes de Uremiri: filhos de Alcides e Daniel Pedrosa; filhos de Domingos Sávio [Wahpu Nuhku, Cunuri].

89 Na versão Hausirõ (ÑAHURI e KUMARÕ, 2003), o principal motivo pelo qual os antigos realizaram o movimento de dispersão do Papuri para o Tiquié foi a escassez de peixe em Piracuara. A mudança foi incentivada por uma irmã deles, casada com um homem Tariana e moradora do Tiquié, que levou notícias (kihti) sobre o lugar. Ao vararem do Papuri ao Tiquié, moraram provisoriamente em uma casa do tipo usowi44, em Wau Pamo, sítio no igarapé Macucu (Bopeya). As mulheres reclamam que queriam morar em um sítio maior, mas eles só mudam definitivamente para o Tiquié quando Hausirõ vai até a foz do Tiquié e, ao chegar ao outro lado de Pirõ Sekarõ (atual comunidade São José I, habitada até uma década atrás pelos Hausirõ), sai para pescar com o cunhado e vê que o rio tem muitos peixes e que eles são bons. A mudança de localidade e a transição da vida no igarapé para um rio maior traz consigo uma modificação nos hábitos alimentares: os Tukano, que só comiam peixes de igarapé, passam a comer peixes grandes, de rio, realizando benzimentos para isso. Hausirõ passa a ter o domínio do território ocupado anteriormente pelo Tariana, que se retiram devido a uma briga com os Sararoporã (Yuhupda), os quais se tornam ajudantes de Hausirõ, indicando o caranazal mais próximo.

Os primeiros a morar em Pirõperi foram Hausirõ, Ahkuto e Bupokasa, e finalmente o irmão maior próprio deles, Seribhi Isia45. Hausirõ e Ahkuto são nomes de homens três gerações acima dos atuais homens mais velhos moradores de Sopori Bua (São José meio): Hausirõ

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Em seu estudo sobre os Tuyuka do alto Tiquié, Cabalzar (2009, p. 332-333) apresenta a distinção entre diversos tipos de casa. Basariwi é “definido por construções maiores, por malocas de porte, cujo espaço interno comporta rituais para um grande número de pessoas, que afluem de vários grupos locais da região”; e o autor o relaciona a clãs de alta hierarquia, que coordenariam a realização de grandes rituais. Usowi (casa de jacaré) consiste de um tipo mais comum: “construção menos dispendiosa que a primeira, dispõe de espaço suficiente para a realização de rituais menores, e é apropriada para um único grupo doméstico ou para, no máximo, três fogos”. E, finalmente, wi wai kaniari wi (tapiri de pescador) são “casas provisórias, comparáveis pelos Tuyuka às dos Maku, em geral usadas para permanência em roças mais distantes ou em expedições de caça ou pesca”.

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Enquanto esse narrador do clã Hausirõ porã se refere a seu ancestral pioneiro pelo nome de Hausirõ, Vicente Azevedo, do clã Ñahuri porã, corresidente dos Hausirõ, afirma que a dupla de homens dos clãs Hausirõ e Ñahuri porã que vieram do rio Tiquié era denominada Kumarõ Isia e Ñahuri Sarapo (ÑAHURI e KUMARÕ, 2003, p. 13).

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seria ancestral de Clemente Azevedo, e Ahkuto de Miguel Azevedo. Instalado no Tiquié, Hausirõ recebe por intermédio dos peonã (hupde) cartas-patente46, que haviam sido prometidas a ele e a Ñahuri anos antes, quando estiveram por Barcelos, seguindo Yupuri na direção de Manaus. O pioneirismo na ocupação do rio e a posse desses objetos exógenos, que são mencionados até hoje como uma espécie de item de propriedade desses clãs, conferem certo prestígio à sua trajetória.

A continuidade da relação de companheirismo entre Hausirõ e Ñahuri, que havia ficado no Papuri, é garantida pela insistência de Hausirõ e seus irmãos. Depois de Hausirõ ter mandado recado três vezes para que Ñahuri viesse juntar-se a eles, Ahkuto vai pelo rio até Tabutiya. Hausirõ já havia rezado cigarro para que ele viesse. Então Ñahuri sobe para o médio Tiquié, guiado por Doetiro Kumapataro, caçula de todos. Hausirõ entrega a Ñahuri sua carta-patente. “Novamente estavam todos juntos”.

Nessa narrativa, os Hausirõ porã clamam para si o feito de terem sido os primeiros, entre os antepassados dos atuais moradores, a ocupar a região, reforçando a ideia de que, na época da chegada de Hausirõ, o Tiquié era vazio, inabitado até as cabeceiras. Hausirõ é descrito como um grande negociador, que, antes da chegada de Manduca, comerciante que dominaria o Uaupés, ia para São Gabriel e Manaus, onde fazia negociações. Tinha um bongo grande e remeiros; levava trabalhadores e produtos da região, como bancos de madeira, remos, arcos, balaios, cumatás, cerâmicas e farinha. Hausirõ negociava com um tenente47que tinha um preceptor em São Gabriel. Ñahuri atuava junto com ele, como inspetor. Traziam sal, sabão, munição, roupas, redes, anzóis, cortes de pano, panelas. Um dos motivos de atração de outros clãs Tukano e grupos exogâmicos para esse rio teria sido, para além da fartura de peixes e qualidade das terras, a notícia dos negócios de Hausirõ e o interesse por mercadorias. Portanto, a relação de companheirismo entre Hausirõ e Ñahuri é atualizada; e, com a posse das cartas-patente e o domínio dos negócios no Tiquié, ambos passam a ter prestígio em relação a seus irmãos maiores.

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Ver, no capítulo anterior, a explicação sobre a distribuição de cartas-patentes.

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Provavelmente se trata do tenente Jesuíno Cordeiro, que foi nomeado Diretor dos índios dos rios Uaupés e Içana em 1852, ou dos alguns variados militares que ocuparam o cargo de diretores dos índios entre 1850 e 1870 na região (ANDRELLO, 2010b).

91 Por ser o primeiro a chegar, Hausirõ Maximium teria precedência sobre a indicação de quais trechos de rio deveriam ocupar os membros de outros clãs Tukano e Desana, vindo dos Uaupés e recém-chegados ao médio rio Tiquié, delimitando territórios e fronteiras para moradia e subsistência, como a pesca (ÑAHURI; KUMARO, 2003). O trecho abaixo apresenta, na versão Hausirõ de ocupação do Tiquié, a parte que ressalta o pioneirismo e o papel de Hausirõ na distribuição dos lugares. Alguns clãs, no entanto, já haviam ocupado concomitantemente outras áreas:

Só depois apareceram os Tuyuka. Com o passar do tempo chegaram os Dipeporã em Bayapé, mais tarde alguns Desana em Bayapé e Warusererakó. Quando Hausirõ entrou no igarapé Umari, encontrou seus irmãos Buú e Pamo. Eles conversaram, perguntaram onde estavam morando e Hausirõ indicou para eles morarem em Imisa Poea (Pari-Cachoeira). Mas antes de eles irem para lá, esse local já havia sido ocupado pelos Batitorora (Parῖsia). Os Buúporã ficaram ajudando Hausirõ. Naquele tempo, os Buberaporã também já tinham ocupado a região onde estão atualmente, na foz do Cabari. A maloca de Hausirõ era animada, mas faltava um mestre para tocar a flauta jurupari chamada Deéyũ. Por isso mandaram recado para Doe no Turi, que sabia tocar, para vir para cá. Eles vieram, porque estavam isolados lá. Quando chegaram ficaram em Pirõperi e esse povoado ficou maior ainda. [...] Nessa época chegou outro irmão maior de Hausirõ, Uremiri. [...] [que havia se envolvido na morte do inspetor Tariana e de seus companheiros, no Uaupés, como aliados dos Desana]. Depois os Uremiri porã fugiram, vindo atrás de seu irmão Hausirõ. [...] chegaram notícias de que os Tariana viriam perseguir para se vingar [...] [então Hausirõ mandou] que eles saíssem e fossem morar no igarapé Castanha (Bukuya), em Trovão (Bupora). Aí moraram uns seis anos. Fizeram roças, plantaram, mas se desentenderam. Depois Hausirõ mandou recado para os Tariana dizendo que ele tinha mandado eles embora para o rio Pirá e Traíra. Eles acabaram se espalhando

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com outras brigas, uma parte voltou para junto de Hausirõ e outra parte foi para abaixo da foz do Castanha, em Dasura. Os que ficaram com ele, depois pediram um terreno e ele cedeu a roça com barraca que tinha na foz do Botariya (igarapé esteio). [...] Hausirõ foi distribuindo pouco a pouco trechos do rio para os grupos que chegavam. Primeiro, ele fazia pescaria até nas proximidades da atual Warusererako (S. João). Com a chegada dos Dipé porã, cedeu-lhes o Miõra (lago de Cabari) até acima de S. Francisco (igarapé anta). De Miõra até Pari-Cachoeira ficaram os Buuporã e Pamõporã. Quando os Uremiri Porã voltaram de Trovão Hausirõ cedeu- lhes o trecho entre a foz do igarapé Anta (que fica a montante do atual povoado de S. Luzia) e Merewaratiripamõ. [...] Daí até onde está hoje Boca de Estrada ficou Hausirõ, indo às vezes a jusante até Pirarara. Até hoje ainda usam toda essa área. O pessoal que hoje está em Cunuri e Pirarara foi morar nesses locais para vigiar a área. Pirõ Sekaro era uma grande vila. O igarapé Castanha também fazia parte, até a foz do Peneira (ÑAHURI; KUMARO, 2003, p. 229-232). Membros de outros clãs, de maior hierarquia, confirmam essa versão da história, conferindo certo prestígio e poder político a esse clã de relativamente baixa hierarquia. Um exemplo é a história de ocupação de uma localidade no trecho médio no Tiquié conforme registrada por Orlando Moura (2012), do clã Ñahi Diipe, no qual relata o encontro de seu antepassado, chamado Doe, com Maximium (Hausirõ). Doe, recém- saído de Pari-Cachoeira, onde havia sido “rejeitado” pelos Tukano do clã Paresĩ, estava descendo para ir morar no rio Negro e encontra com Maximium (nome brasileiro de Hausirõ), que o persuade a ocupar um trecho do médio rio Tiquié. Aqui reproduzo apenas algumas passagens:

Doe tinha viajado de Pari com sua família, mas demorou a descer e planejou passar a noite no sítio do Maximion. De tardinha bem próximo à atual Mohsã Bua (Barranco de urucum) tentou parar. Como o Maximion era homem guerreiro (Uhpi Mahsu) tinha seus guardas ao redor de sua maloca que acabaram descobrindo Doe com o barulho causado por ele mesmo. Como Maximion

93 sabia que em Pari morava o seu considerado irmão maior logo o chamou consideravelmente. O Maximion foi o primeiro a ocupar esse território de São José como gente guerreiro (Uhpi Mahsu) e acabou morando no Urucum. Ocupou o território do igarapé Castanha até Trovão e no rio Tiquié até Caruru e abaixo até abaixo da atual Boca da Estrada (Doera). Após o banho o Maximion convidou o Doe para uma conversa prolongada e fez um trato dividindo o território de ocupação. Como ele ocupou primeiro tinha que ser respeitado. Ele tinha fama de guerreiro. Maximium falou que tinha o seu território enorme, assim como o igarapé Castanha, apresentando muito lagos e os peixes e acabou indicando o território para o Doe. Pediu que a partir daquele momento cada qual ou cada grupo teria seu determinado território, assim como o lugar de pesca, caça, lagos. A única coisa que faltava era o caraná. Isso cada pessoa que precisasse iria buscar. Próximo à foz do Castanha tinha carnaúba e no Castanha onde tinha caraná. Por enquanto isso ficava para domínio destes dois sibs, Turo porã e Di´ipe Porã. No trato seu irmão falou que se eles vieram para ocupar esse rio era para ficar permanecendo até o fim. Assim, após essa longa conversa o Maximion indicou demarcando seu território. Ele subiu falando, começando no Ahko Tuhturi ñoa, ou seja, no ponto de correnteza. Aí pouco abaixo na margem esquerda ficaria um cacuri. Isso seria a marca do limite e nenhuma pessoa ultrapassaria aquele limite e sim somente o grupo considerado. Então o limite com os Parĩsi ficou na boca do Paraná Tumbira. Ali ele pediu a mesma coisa para o Doe. Como o sinal da divisão do território pediu que colocasse um cacuri na margem esquerda em frente à boca do Paraná. Daí cada grupo tinha seu território definido e o Maximion pediu que informasse a mesma coisa ao chefe dos Parĩsi, indicando o tamanho do território que foi dividido. Esse trato não foi contado para ninguém, somente a esse grupo Di´ipe. Também indicou

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lagos, igarapés e pediu que escolhesse o lugar de preferência para morar (MOURA, 2012).

Conforme nos revela essa narrativa, não foi apenas o fato de ter sido pioneiro na ocupação do rio Tiquié, mas seu caráter de uhpi mahsu, guerreiro, dono de uma maloca cheia de guardas48, que inspirou esse respeito ou consideração de grupos de hierarquia mais alta em relação a um irmão menor. Nota-se que o narrador se refere a Maximium como membro do clã Turõ Porã. Turõ porã, que significa literalmente filhos de um tipo de sapo venenoso, é um termo utilizado por homens Tukano do Tiquié como apelido de dois clãs considerados guerreiros e dominadores de poderes xamanísticos maléficos – os Hausirõ porã e os Uremiri porã.

Há dois tópicos sobre guerras que compõem o volume 5 da coleção “Narradores Indígenas”. No primeiro, Miguel Azevedo, narrador Hausirõ porã, refere-se a um tempo em que todos os grupos que habitavam a região do Papuri, Uaupés e Tiquié eram guerreiros. Havia o costume de realizar expedições para se apropriar de ornamentos e de outros bens existentes nas malocas. “Os velhos faziam reza para a criança crescer mais rápido, e quando jovem ficarem corajosos e bravos. Desde criança já vinham sendo instruídos como usar arco e flecha, como se defender e fugir, etc.”. Ao narrar a história de hostilidade entre os Desana – moradores do Urucu – e os Eduria – do igarapé Castanha –, que teria ocorrido antes da chegada de Hausirõ ao rio Tiquié, Miguel menciona que os Desana se uniam com seus cunhados Tukano, porém não especifica o clã (ÑAHURI; KUMARÕ, 2003, p. 235). A única referência mais clara ao caráter guerreiro de Hausirõ é feita na história que relata a sua participação em uma incursão guerreira a convite do chefe Makuna Bopeidupu, com quem tinha uma relação de troca de mercadorias por objetos locais, contra seus cunhados Yohoarã. Apesar de Hausirõ ser citado como um dos principais guerreiros, certos artifícios são utilizados para “moralizar” seu comportamento e minimizar sua fama; e, por fim, o narrador afirma que, apesar de Bopeidupu dizer que os Tukano eram os mais bravos, na verdade eles não tinham participado da incursão e que, apesar de alguns dizerem que quem fazia guerra contra os Yohoarã eram os Tukano, eles na verdade só os tinham acompanhado. O narrador finaliza dizendo que até hoje

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Esse termo é utilizado pelos Tukano em variados contextos, como veremos ao longo da tese: ora como guarda, ora como vigia, ora com segurança. Corresponde à categoria Tukano de iña kotegu.

95 eles têm raiva dos Tukano e que, com o tempo, surgiu o boato de que eles viriam vingar-se. Em virtude disso, Hausirõ se preparou para a guerra; sempre estiveram atentos, mas até hoje eles não vieram (ÑAHURI; KUMARÕ, 2003, p. 239-243).

A fama guerreira dos Hausirõ porã é reconhecida ao longo do rio Tiquié. Um homem Tuyuka (informações pessoais) menciona uma relação prévia de hostilidade entre Hausirõ e Bope, que antecede a incursão feita junto com os Makuna e remete à época de residência no Papuri, sendo o motivo para o movimento da ida do Papuri para o Tiquié:

Finado papai contava que uma vez os Hausirõ ouviram que Bope ia incursionar no Inambu [afluente do Papuri]. Esse Bope roubava caixas de ornamentos. Os Hausirõ, ouvindo isso, se prepararam e, quando eles passaram, atiraram com arco e flecha. Então o pessoal do Bope emborcou a canoa e ficou embaixo. Com medo de um revide, os Hausirõ vieram embora. Isso ocorreu há uns 250 anos. Ocuparam o Castanha. Lá que começaram as relações com os Makuna. Na incursão que eles fizeram com os Makuna para acabar com os Yohoarã, depois da guerra, os pajés Makuna se reuniram para tirar deles aquele pensamento de ódio, de guerra, e os tranquilizar. Mas então, sabendo que tinha sobrado alguns Yohoarã e que eles podiam se multiplicar, então eles benzeram um saco com pimenta, carajuru e cinzas que eles podiam utilizar caso houvesse uma tentativa de revide. Desde o pós-guerra que eles viviam em igarapé. Em Wahpaya, lá que tinham maloca, não na beira do rio. Uma vez [aqui a história já é narrada em tom de piada], na época que os padres vieram com seu reitor, quando chegaram perto de São José soltaram um foguete. O velho que já era bisneto de Maximiun ouviu e achou que eram os inimigos Yohoarã. Eles sempre viviam alerta. Arrumaram tudo e partiram. No meio da viagem à noite, bateram num toco, a canoa virou, perderam tudo, molharam até o saco de uhpi. A mulher o ralhou, falou que ele, que era o mais valente, estava passando por essa situação... Meu irmão conta que, na época que

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viajava com o comerciante Sabá, o pai de Clemente, dizem as mulheres, carregava esse saco, mas ele nunca viu.

Nas conversas corriqueiras do dia-a-dia, no entanto, homens Hausirõ costumam comentar que os Tukano nunca foram um povo guerreiro, em contraposição a outros grupos, como Yohoarã ou os antigos Yanomami, que eles assim consideram, ou os Maku, a quem julgam guerreiros por fazerem guerras interclânicas com o uso de arco e flecha e curare. O potencial guerreiro dos Tukano seria, segundo dizem, realizado através de ataques xamânicos: sopros ou estragos, ou seja, benzimentos feitos para causar doenças em alguém com quem se desentenderam ou com inimigos propriamente ditos, ou até mesmo para ocasionar destruição de comunidades inteiras por doenças ou por brigas. Os Tukano seriam, portanto, especialistas do sopro. Segundo me contou um velho Hausirõ porã, referindo-se ao passado, “quando o kumu soprava, já sabia o nome da pessoa, como ela era; e, em qualquer lugar em que estivesse, a pessoa morria, seu coração parava. Cada comunidade tinha seu especialista”. De qualquer forma, é importante ressaltar que, em todas as histórias Tukano sobre incursões guerreiras, os narradores destacam de diversas maneiras a importância de uma espécie de xamanismo guerreiro: na formação de guerreiros desde crianças através de reza (ÑAHURI; KUMARÕ, 2003, p. 235); na menção ao guia pajé, que lhes dizia como seria a guerra e que benzia o cigarro de proteção (idem, p. 240); no uso do uhpi koo (lit. líquido de