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5. CONSTRUÇÃO DOS RESULTADOS

5.2 B RINCANDO E C ONSTRUINDO A I DENTIDADE É TNICO R ACIAL P OSITIVA

Neste estudo, identidade étnico-racial é entendida como sendo a consciência que cada pessoa tem de si mesma, da comunidade, classe social ao qual pertencem, além do grupo/raça que representa (ALGARVE, 2005). Identidade essa construída e aprimorada durante toda a vida nas relações estabelecidas com outras pessoas e o meio. Assim, esse processo de construção da identidade pode tanto receber influências positivas na maneira como nos percebemos e percebemos o outro, quanto negativas.

O processo de construção da identidade negra no nosso país é complexo, pois vivemos em uma sociedade marcada pelo racismo e pelas discriminações. Para discriminar as pessoas negras, utiliza-se tanto da desvalorização da cultura de matriz africana como das características físicas herdadas pelos descendentes de africanos. Ao longo da história, as pessoas negras são colocadas socialmente em uma posição de inferioridade, consideradas como menos inteligentes, menos capazes, menos bonitas. A cor negra é associada, por muitos, à escravidão, à servidão e à marginalidade.

Desenvolver práticas que rompam com as imagens negativas contra negros e negras, que combatam o racismo e as discriminações e que façam as crianças se reconhecerem e se valorizarem, tornam-se necessárias.

As atividades desenvolvidas durante a intervenção possibilitaram o aumento da autoestima positiva das crianças e a identificação e valorização da identidade étnico-racial das crianças. Um exemplo foi o ocorrido com a aluna Lili:

[...] Lili ficava de cabeça baixa e não conversava com ninguém, ela olhava para o livro e para mim, mas quando eu falava o seu nome ela se retraia e abaixava a cabeça. A professora me disse que a Lili é uma criança muito tímida e que não conversa com nenhuma professora, apenas com os (as) amigos(as) nos momentos de brincadeiras, e que desde o começo do ano ela não tinha dito uma palavra para ela (DC II-5d).

Esse silêncio e timidez observados e demostrados pela Lili foram as mesmas atitudes que eu demonstrei até o Ensino Fundamental, emoções de que eu não tinha consciência, naquela época, de ser um sentimento de inferioridade que me tinham interiorizado. Quando iniciei esta intervenção, a Lili demostrou, por meio de gestos e postura, sua timidez e silenciamento; ela não conversava com sua professora e comigo; e, quando desenvolvíamos as atividades, ficava distante de cabeça baixa.

por trás do silenciamento e da timidez em participar das atividades em grupo, encontra-se um complexo de inferioridade, construído nas relações que as pessoas negras estabelecem com sua estética, muitas vezes a cor da pele e o cabelo crespo, durante a sua trajetória social e escolar. Ao não perceber esse complexo de inferioridade, muitas vezes o(a) professor(a) acaba estimulando ainda mais o afastamento das crianças dos(as) amigos(as) e das atividades desenvolvidas.

Vários foram os momentos em que a Lili e outras crianças foram se reconhecendo e se sentindo valorizadas. Quando realizei as contações das histórias com personagens negros(as), enfatizando a beleza dos(as) personagens, a cor da pele, cor e textura dos cabelos e suas diferenças, as crianças foram se identificando e identificando os amigos com os personagens dos livros. Ao ler o livro Cadê a Clarisse? (SÔNIA, 2004), Lola identificou que a Clarisse se parecia comigo, mulher negra, e com a sua amiga Lili, menina negra (DC XIV- 2).

Na educação infantil, ocorre esse momento de se conhecer e conhecer o outro. As crianças de 0 a 3 anos diferem as características físicas que integram a sua pessoa e das demais crianças, processo fundamental para a construção de sua identidade (RCNEI, BRASIL, 1998c)

Bob Marley é uma criança de tez escura, que se identificou com os personagens negros dos livros. Quando perguntei para seus pais sobre a cor/raça dele, declararam-no como sendo branco.

Ser negro no Brasil não se limita às características físicas, trata-se de uma escolha política. Por isso o é quem assim se define (BRASIL, 2004c). No caso das crianças pequenas, quem as declara como sendo negras ou não são os pais e responsáveis.

Percebemos nesta categoria uma divergência com a construção da identidade étnico- racial positiva. Após realizar a leitura do livro Cadê a Clarisse? (SÔNIA, 2004), brincamos com um tecido, no qual eu escondia as crianças e perguntava para elas quem estava escondida. Elas respondiam o nome dos amigos. Ao realizar a atividade com o Bob Marley, perguntei quem estava escondido embaixo do tecido; todos responderam que era o Tico (DC XIV- 4d). ―Tico‖ foi um apelido dado ao Bob Marley pela professora no início do ano e todos na escola, inclusive as crianças, chamavam-no assim. Ao ser questionada sobre o porquê do apelido, a professora me respondeu ―[...] que outra criança tem o mesmo nome dele e como ele é pequenininho a gente o chama de ‗Tico‘‖ (DCII-12d).

Perguntei para Bob Marley, em um outro momento, se ele gostava de ser chamado de ―Tico‖; ele sorriu e voltou a brincar com os amigos (DC XIV- 5).

Mesmo que Bob Marley não tenha consciência do significado do apelido ―Tico‖, os apelidos podem ser prejudiciais neste momento em que as identidades estão sendo construídas. Essa prática pode ser vista como carinhosa para algumas pessoas, mas, ao longo da vida, pode trazer constrangimentos para a criança, já que esse apelido pode contribuir negativamente para a sua autoestima, pois o aluno pode se sentir minimizado perante os amigos.

Segundo Campos (2009), nossas crianças têm direito à atenção individual, direito de ser chamada pelo seu nome e ter suas singularidades respeitadas. O nome é o primeiro elemento de identificação e, ―inconscientemente ou não‖, a professora estava colocando um apelido na criança com base nas características físicas dele (por ele ser menor do que o outro que possui o mesmo nome). Práticas como estas devem ser evitadas.

Ao brincarmos de salão de cabelereiro, também verifiquei a valorização da identidade das crianças. Em vários momentos as crianças se diziam ser lindas e ficavam se olhando no espelho:

[...] A aluna Pretinha pediu para eu passar esmalte nela e depois ela começou a passar batom e perguntou para mim se ela estava bonita. Eu disse que sim, que ela era linda! Ela colocou o dedo na boca e saiu sorrindo, andando pela sala (DC V-6).

[...] Danone pediu para eu pentear os cabelos dele. Quando eu o penteei, foi se olhar no espelho, sorrindo (DC V-7).

[...] Campeão não se levantou para pegar os materiais, então o chamei para pentearmos seus cabelos, ele veio. Penteei seus cabelos para cima e passei gel, falei para ele se olhar no espelho, ele foi, olhou-se no espelho e começou a rir passando as mãos no cabelo (DC V-8).

Quando terminamos a atividade, fomos para o parque. Ao passarmos próximos de duas auxiliares de limpeza, as crianças começaram a mostrar seus cabelos, penteados com gel, com um enorme sorriso no rosto (DCVI-9).

Desenvolver atividades pedagógicas nas quais todas as crianças negras e não negras possam se sentir valorizadas, com seu cabelo e corpo, torna-se necessário, pois a escola é um importante espaço onde se desenvolve o tenso processo de construção da identidade negra, local onde os estereótipos e as representações negativas sobre o negro, sua pele e cabelo podem ser reforçados, negados ou valorizados. Assim, cabe ao (à) professor(a) mostrar às crianças que todos os tipos raciais têm valor (GOMES, 2003).

Essa valorização dos cabelos observado nos relatos das crianças foi intencional, planejada desde o início da intervenção. Ao construirmos um príncipe e uma princesa africanos, a aluna Lili também se identificou com os cabelos da nossa princesa, que eram

enrolados, com cachinhos. Danone e Tio Preto, ao usarem uma coroa, saíram pela escola falando para as funcionárias que eram príncipes.

No decorrer da intervenção, as crianças perceberam que as atividades estavam sendo desenvolvidas com elas e não com toda a escola, contribuindo assim para o aumento do sentimento de valorização (DCVII-2).

Em uma das conversas que tivemos, a professora-colaboradora relatou que:

[...] estava notando mudanças no comportamento da Lili, pois antes ela não conversava e era muito tímida e que, depois que começamos a desenvolver o projeto, ficou mais desinibida e começou a falar com ela (DC VII-11). Relatos como esse nos fazem refletir sobre a importância de trabalhar com a educação das relações étnico-raciais, de se realizar leituras de livros e atividades que possibilitem a identificação das crianças com os personagens dos livros desde a Educação Infantil.

Percebemos a valorização na construção da identidade das crianças também nas oficinas de cacuriá e capoeira, que contaram com a participação de professores(as) convidados(as). Foi uma grande oportunidade de convivência e interação com e entre as crianças:

[...] Leandrinho e Rogerinho interagiram bastante com o professor visitante, eles cantavam, batiam palmas e dançavam muito e sempre com um sorriso no rosto (DC IX-5).

[...] Tio Preto ficava dançando enquanto os amigos tocavam o tambor (DCXI-5).

[...] as crianças não pararam de dançar um minuto e sempre que podiam iam na frente do espelho na sala para se olhar (DCXI-13).

Sorrisos, gestos, olhares, movimentos dos corpos, as falas: foram algumas das linguagens usadas pelas crianças para demonstrar a satisfação que estavam tendo com elas mesmas e com os outros nas relações de respeito e horizontalidade que estabelecíamos. No decorrer da intervenção, pude notar um aumento nas falas e na participação e interação das crianças nas atividades desenvolvidas, além do aumento da autoestima positiva.

O envolvimento dos pais/mães nas atividades desenvolvidas também podem ser observados:

[...] O aluno Simeão chegou chorando bastante, quando ele chegou na sala, no colo de sua mãe, ela viu o boneco em cima da mesa e falou para o

Simeão: ―Olha o boneco Simeão lá (nome fictício dado ao boneco pela sua família), ele voltou para brincar com você‖. Simeão, chorando, olhou para o boneco, desceu do colo da mãe e foi ao encontro da sua professora. A professora-colaboradora o pegou no colo e ficou conversando com ele, até ele parar de chorar.(DC VIII-2)

[...] No horário do almoço, o aluno Simeão pegou a coroa da cabeça da Lili que estava sentada ao seu lado e a colocou na sua cabeça e falou para as merendeiras que ele era um príncipe, o ―O Príncipe Simeão‖ (DC VIII-14).

O comprometimento dos pais e mães só foram possíveis, pois eles(as) sabiam quais atividades estavam sendo desenvolvidas pelos filhos(as) na escola. Quando o aluno se identifica com sendo o ―príncipe Simeão‖, nome fictício dado ao boneco no inicio da intervenção, podemos notar que este nome não foi escolhido somente pelos pais e que teve a participação da criança na escolha.