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A BAHIA NO INÍCIO DO SÉCULO XX: MEMÓRIA, IDENTIDADE RASURADAS.

3 MEMÓRIA E HISTORIA CULTURAL BAIANA NOS ROMANCES DE HERBERTO SALES

5. A CIDADE DA BAHIA NOS ROMANCES DE HERBERTO SALES: IDENTIDADE, GÊNERO E MEMÓRIA PELOS E SOBRADOS E CASTELOS.

5.1 A BAHIA NO INÍCIO DO SÉCULO XX: MEMÓRIA, IDENTIDADE RASURADAS.

Sou um habitante do meu passado, estrangeiro em terras do presente e do futuro. Herberto Sales ******************** Toda cidade é uma metáfora Julio Cortázar *******************

Desde Homero, em sua descrição épica de Tróia, muitos são os escritores que nos ligaram a memória ao relato sobre alguma cidade. Plasmada no imaginário, a cidade simboliza o habitat do sujeito – uma extensão de sua casa. Todas as cidades podem nos parecer equiparadas em discurso que articula vários signos. No livro de memórias

Subsidiário, Herberto Sales, ao comentar sobre como surgiu o desejo de escrever o romance Dados biográficos do finado Marcelino,terceiro romance publicado pelo autor, e o primeiro a

não ter como local da narrativa a Chapada Diamantina, e sim a capital baiana, indicia um aspecto extremamente revelador de seu processo de criação romanesca:

Um dia eu estava em Salvador, depois de quinze ou vinte anos de ausência. Saí de automóvel com um amigo, que queria me mostrar “o grande progresso da Bahia”. É lógico que por onde fui encontrando o progresso baiano, não via senão um ou outro escasso sinal da Bahia do meu tempo de estudante. Às vezes fico pensando o que seria de Roma se Roma fosse a capital da Bahia. (SALES,1988, p. 122)

Sales registra em suas memórias a inquietação em ver a desconstrução da memória na

Cidade da Bahia. Essa tônica que serve de plot para o terceiro romance, será uma inquietação

que irá acompanhar o autor por outros romances ambientados em Salvador. De modo que choca a crítica incisiva com que ele contrapõe ao dito ‘progresso’ a descaracterização da cidade, processo que caricaturiza uma pretensa modernidade estrutural para a velha cidade colonial a Salvador que ele conheceu ainda estudante, vindo de Andaraí, que tanto despertara as emoções do menino e que depois, já adulto, assombrava por já está em curso o processo de

mudança arquitetônica e principalmente com mudanças bruscas no Centro da cidade41, que tanto o encantara. Muito embora a imagem real da cidade hoje moderna e cosmopolita não se identifique mais com o cenário dos seus romances42, ( incluindo aqui a Cidade Baixa – local das narrativas, agora derrubada ou com seus casarões e sobrados transformados em restaurantes e boutiques, etc.) Paira ainda no registro impressionista qualquer coisa de mistério que nos transporta a uma época não muito distante, quando o Centro Antigo e a Cidade Baixa eram abrigos de boêmios e prostitutas, e também de um povo simples, que habitava os velhos sobrados, casarões desbotados de outros tempos de luxo e pompa de um Brasil colonialista e escravocrata.

A dualidade entre as duas partes da cidade separadas pela escarpa de falha não era apenas física, mas refletia também uma outra dualidade, marcada pela contrastante condição social. À “Cidade Baixa” cabia exercer as predominantes funções portuária e comercial. Na “Cidade Alta” se fixava, além da função residencial e de pequenos estabelecimentos comerciais e de prestação de serviços, o centro político administrativo. Dois mundos em uma

41Para ilustrar essa lógica progressista baiana do início do século, temos um caso singular para refletir e ilustrar: a demolição da Igreja da Sé (Sé: nome consagrado à principal igreja da cidade, na qual o arcebispo realiza suas missas) deu, ironicamente, o nome à praça que surgiu com o seu desaparecimento. O templo original tinha entrada pela Rua da Misericórdia, mudada tempos depois para o lado da montanha. A Igreja se ligava ao Palácio Arquiepiscopal por meio de um passadiço. A Sé era uma igreja de proporções bem amplas e sempre suas estruturas estavam a necessitar reparos pela proximidade com o abismo entre as cidades alta e baixa. Em 1765, ela deixou de ser Catedral, cedendo a função à antiga Igreja do Colégio dos Jesuítas, atual Catedral Basílica. Desde o início do século XX, vários prefeitos e governadores realizaram obras de alargamento das ruas centrais da Cidade para adequá-las ao trânsito de bondes, automóveis e ônibus. Na década de 10, foi construída a Avenida Sete de Setembro interligando antigas vias estreitas e sobre os escombros de várias igrejas, prédios públicos e casarões seculares. Finalmente, no dia 07 de agosto de 1933, foi demolida uma das mais belas construções religiosas do Brasil: a Igreja da Sé. Segundo historiadores, as razões alegadas pelos idealizadores do projeto da praça, como o precário estado de conservação da igreja, sua interferência no progresso da Cidade ou porque atrapalhava a circulação dos bondes, não passariam de desculpas. Na verdade, dados e registros da época informam que existiam interesses diferentes: O do arcebispo que, não querendo mais residir no Palácio do Arquiepiscopal, situado ao lado da Igreja, teria "entregue" a Sé em troca de um valorizado imóvel no Campo Grande, que passou a ser a sua residência oficial. O do prefeito da época que afirmava ser necessário conduzir Salvador para uma nova era de desenvolvimento, retirando-a dos grilhões do passado, razões suficientes para que já houvessem sido destruídos outros monumentos históricos, como as igrejas de Nossa Senhora da Ajuda, de São Pedro, de Nossa Senhora do Rosário e Nossa Senhora das Mercês. Por muito pouco a Igreja de São Sebastião (do Mosteiro de São Bento) também não foi arrasada em nome do progresso. Mesmo sob os protestos indignados de parte da comunidade, o processo de demolição da Igreja da Sé foi iniciado e rapidamente concluído. A inexistência de uma consciência e de órgãos preservacionistas na época, favoreceu a ação dos "progressistas". Mas a repercussão do ato foi tão grande que contribuiu para a criação, em 1937, do Serviço de Patrimônio Nacional. Em 1999, quando a cidade de Salvador completava 450 anos, como uma forma de resposta da população a essa demolição injustificada, um monumento foi criado pelo artista plástico, Mario Cravo Júnior que o denominou de “Cruz Caída”, marcando definitivamente esta fratura exposta na história da cidade.

42 Herberto Sales, ao escrever os romances Dados biográficos do finado Marcelino e A prostituta ambienta os dois romances no contexto de Salvador na década de 30 e, em especial, na região central da cidade se estendendo até a Cidade Baixa.

só cidade, a divisão de Salvador configurava dois objetos espaciais. Em outro trecho do mesmo Subsidiário, diz Sales, elegiacamente:

Meu amigo me levou até o Bonfim. Ao passar pelo bairro da Calçada, lembrei-me, de repente, que ali morara o meu tio. E tive um súbito desejo de rever a sua velha casa, onde eu o conhecera. Era, aparentemente, um impulso sentimental, como em tais circunstâncias qualquer pessoa teria. Como se estivesse à minha espera, lá estava a velha casa, que, no entanto já não era a mesma que um dia me abrigou quando menino. Janelas com vidros quebrados. O mato cobrindo o jardim. Desci do carro, sacudi o portão de ferro do jardim, na curiosa esperança de entrar. Quem sabe havia alguém. O portão de ferro estava fechado com um cadeado. Olhei e reolhei a casa, pensando em meu tio. E, conquanto morto ele já estivesse, e já estivesse tudo ali acabado senti que qualquer coisa havia ali que não se acabara de todo. (SALES, 1988, p.122)

Ainda em suas memórias, o encontro com o velho bairro de morada do seu tio – a Calçada – e que também o autor morou em breve período em sua adolescência,trouxe às lembranças adormecidas ao escritor e a epifania de que ali ainda havia “algo”, ou seja, que precisava ser narrado. A permear esses encontros, cronotópicos por excelência,persistem o cruzamento de experiências diferenciadas de ler cidades, a do escritor e a do leitor, na produção de uma nova urbe, aquela cuja existência habita a memória e a representação. E que provoca uma pergunta que se lança em garrafas náuticas sobre o mar: O que é mesmo cidade? O que constitui sua essência, sua identidade, sua alma? Uma cidade não se dá facilmente ao viajante apressado. Conhecê-la implica a disposição de decifrar não apenas as esfinges do seu cenário, mas os autores que, ao construí-lo e nele encenarem suas vidas, constroem-se como história. O passado que ali se faz presente de permanências. Eis as perguntas que a literatura tartamudeia em textos as possíveis respostas. E nesse ponto, Sales provoca o leitor a pensar a cidade por uma das lógicas mais humanas: a cidade da memória. E que a modernidade ia desconstruindo.

O dito “progresso baiano” transformava a cidade deixando na trilha vários casarões do início do século destruídos em louvor de uma modernidade estéril. A ironia de Herberto Sales (Se Roma fosse a capital da Bahia?) serve para demonstrar como o baiano lida com seu passado, com sua história. Todos esses elementos plasmaram o romance que surge como uma voz crítica ao dito progresso desordenado, num exercício penoso que lembra Calvino, que em suas Cidades Invisíveis, ressalva:

Mais do que pelas coisas que todos os dias são fabricadas, vendidas, compradas, a opulência de Leônia se mede pelas coisas que todos os dias são jogadas fora para dar lugar às novas. Tanto que se pergunta se a verdadeira paixão de Leônia é de fato, como dizem o prazer das coisas novas e

diferentes, e não o ato de expelir, de afastar de si, expurgar uma impureza recorrente [...] ou talvez apenas porque, uma vez que as coisas são jogadas fora, ninguém mais quer pensar neles. (CALVINO,1990, p.105-106)

A voz do autor não aceita calada a mudança estrutural no seio da cidade. Dá voz ao seu passado, que é também a de uma cidade que precisava dessa voz. Biográfico e ficcional se amalgamam mais uma vez, o narrador indiciando o livro baseado nas fotos tiradas por uma personagem especial, a seu pedido.

Esse trecho do diário contendo várias recorrências ao termo lugares se deve à importância que o espaço geográfico e, sobretudo, lírico assume no romance: o palacete do tio, o bairro da Calçada e suas casas imponentes, o Comércio, o Trianon, a rua Portugal... O que faz do texto ambiente de memória e da memória43 o que nem sempre firma no leitor a convicção de que, no romance, a voz que detém a narração seja a do autor. Mas a voz, a emissão da qual o universo emerge, é recorte, sim, de uma das mais plausíveis manifestações autorais. Como narração, ela emana de um ser criado pelo autor que, dentre a galeria de suas posturas – as personagens -, elegeu-a como narrador. Máscara criada pelo demiurgo, o narrador é um ser ficcional. Metamorfoseado nele, o autor assume a indumentária indispensável para proceder à instauração do universo que tem em vista.

Evidentemente, o romance é sempre “autobiográfico”, pois o “autor” retira da natureza e da sua própria experiência os elementos vivos e significativos para proceder à “biografia” de um ser imaginário. Para moldar-lhe as feições e inflar-lhes vida, ele terá de dotá-lo de uma dimensão psicológica e de uma duração temporal, dados relativos à singular existência humana. É na cidade, e através da escrita, que se registra a acumulação do conhecimento. Na cidade – escrita, o habitar ganha uma dimensão completamente nova, uma voz que se fixa na memória e da lá expede ressignificações e alteridades.

Esta “idéia” persegue o autor, em busca da escritura do romance. Em seus livros de memória – em especial o primeiro Subsidiário, desmonta a arquitetura da ficcional da paisagem no romance. Contudo, fica claro na leitura do livro a decepção do personagem narrador ao ver a cidade que tanto lhe encantara no passado agora remodelada, ou seja , revisitada sem a mesma elegância de antes por uma esquiva noção de progresso. Nas palavras do autor: “Naqueles anos todos, familiarizara-me tanto com o centro da cidade, já bem diferente de quando viera a Salvador pela primeira vez, que nada mais me despertava ali qualquer emoção” (SALES, 1965, p.25). Esse movimento do autor, conduzirá a refletir a

modernidade no Brasil pelo signo de destruição. Se lançando ainda mais nas leituras Freyreanas de pensar o modernismo em diálogo com uma tradição, uma linha da modernidade mais saudosista.

Aqui o narrador se identifica com a cidade do passado, ao que não há retorno. O imaginado ou o imaginário, na verdade, é constituído a partir de elementos da realidade, ressignificados pelo organismo memorial, uma vez que

[...] a memória, pessoal ou de grupo, confere assim o sentimento de identidade. Ao recuperar aspectos das experiências anteriores, o ato de lembrar ou recordar o faz na perspectiva de integrá-los às do presente. A recordação, no entanto, não é um procedimento meramente conscienteou desejado. Muitos fragmentos do passado são relembrados espontaneamente as recordações sensíveis, movidas por sinais como os odores, os sabores e os sons, trazem formas de lembranças recônditas na consciência. (SANTOS,2001, p.26).

Três décadas depois, a cidade decepciona o olhar do narrador - autor, não lhe inspirando mais qualquer alento, nenhuma emoção. A revisitação aos locais que outrora foram símbolos de uma Salvador febril hoje confere dolorosa sensação de estranhamento face a uma cidade que transmutou para não ficar obsoleta: Para Sales: “Trinta anos! Foi numa crispação de tristeza que eu revi a avenida onde morara meu tio.(...) não experimentei outro sentimento que não fosse o de uma funda desolação”.(SALES, 1965, p.27). Essa “desolação do narrador”, aliada à tristeza de ver o palacete e a própria Cidade Baixa em decadência, ruínas, transforma em escombros um passado que ainda existia em souvenirs uma estação feliz da infância. O narrador não se reconhece ao caminhar por esses lugares. Tanto ele, o narrador, quanto os locais da sua memória estão alterados drasticamente, o jogo híbrido das identidades são reconfiguradas e plasmadas em novas confluências. Segundo Tuan (1993), “muitos lugares, altamente significantes para certos indivíduos e grupos, têm pouca notoriedade visual. São conhecidos emocionalmente e não através do olho crítico ou da mente”. ( TUAN, 1983, p.180)

5.2 A REPRESENTAÇÃO CULTURAL D’A CIDADE DA BAHIA NOS ROMANCES DE