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1. O ESTADO E O NEOLIBERALISMO: GERENCIALISMO E PRÁTICA

1.4 Bases da administração pública gerencial: a empresa capitalista como

Dentro do panorama maior de construção de uma subjetividade concorrencial nos sujeitos o neoliberalismo também atua de forma a influenciar os Estados na organização e administração de seus territórios, recursos naturais e políticas públicas conforme nos aponta Laval e Dardot (2016). Contudo, a presença do Estado ainda continua sendo elemento importante para a criação de um consenso em torno dessa lógica governamental.

Visualizamos esse aspecto, por exemplo, através da promoção de políticas públicas por um suposto Estado social que, em princípio, foi vivenciado em países centrais da Europa nos pós-segunda guerra mundial. Contudo, desde o surgimento de uma Administração pública na década de 1950 a função do Estado passou por

transformações assim como o próprio caráter das políticas estatais também sofreram transformações.

Da passagem de um Estado centralizador de políticas para um Estado mais descentralizado e influenciado pela lógica neoliberal, teríamos a ascensão de um tipo de administração gerencial, caracterizada pela inserção de parâmetros métricos, da flexibilização do funcionalismo público e pela instalação de um sistema de remuneração por desempenho, ou seja, diante do ajuste fiscal da década de 1990 – no Brasil - visualizamos o próprio Estado se flexibilizar para atender às demandas do capital, realizando assim, contrarreformas no que diz respeito às políticas sociais.

Segundo o professor Cláudio Gurgel (2003) a passagem de um modelo estatal burocrático com políticas keynesianas para um Estado neoliberal teve como contexto a ideia de flexibilidade das relações de trabalho, o que o autor denomina como administração flexível. O uso de novas tecnologias voltadas à promoção da qualidade, discurso de retorno a livre iniciativa, a valorização do “colaborador” como agente que fornece valor às organizações e o empreender em si mesmo, fazem parte desse conjunto de tecnologias associadas a essa Administração flexível que se reproduz através de um discurso voltado a competitividade no mercado de trabalho.

Esse “novo” desempenha uma função ideológica na manutenção do capitalismo, seja através da formação de novos quadros profissionais para a administração do capital no neoliberalismo, ou na formação de uma subjetividade neoliberal nos indivíduos e através do próprio Estado que não é parte desinteressada nesse processo. Como afirmam Dardot e Laval (2016), ao tomar o modelo da empresa como espécime perfeito dentro da ordem capitalismo, o Estado reproduz um discurso empresarial, ou em uma expressão utilizada pelos autores: o governo empresarial. Esse governo seria a solução “técnica” e efetiva para as demandas da sociedade, sejam aquelas associadas à esfera da economia ou da sociedade.

Nesse ponto adentramos em um tema que é crucial para entendermos o discurso no qual o Programa de Melhoria do Acesso e da Qualidade na Atenção Básica se molda. Mesmo que no Brasil não tenha de fato existido um padrão de administração estatal apropriado a um Estado social, ainda assim, é possível observarmos algumas iniciativas públicas como o próprio Sistema Único de Saúde – com seus acertos e deficiências – na promoção de serviços de saúde a população

brasileira. Podemos afirmar que esse sistema é gerido, como iremos observar na sessão dois dessa dissertação, por um amplo dispositivo jurídico constitucional próprio do campo da Administração Pública.

No Brasil, como em países que fazem parte da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), sempre houve uma forte inclinação desse organismo para que as administrações públicas fossem mais flexíveis. Podemos observar de forma concreta essa vinculação através do Banco Mundial (BM) que em 2017 lançou um documento intitulado Um ajuste justo: “Um Ajuste Justo – análise da eficiência e equidade do gasto público no Brasil”. O documento em questão foi construído a pedido do governo golpista de Michael Temer. A ideia central do governo era mediante a análise dos gastos públicos identificar quais poderiam ser reduzidos para um maior estrangulamento do regime fiscal.

Dessa forma, o Banco Mundial apontava como mecanismos de resolução da crise econômica brasileira ajustes estruturais nas contas públicas, com uma maior centralidade no quesito “eficiência”:

A análise é baseada nas melhores práticas internacionais e na revisão da eficiência dos gastos entre as diferentes entidades e programas governamentais. Com ela, queremos estimular que os debates considerem não apenas a alocação dos recursos públicos, mas também as premissas que devem nortear os gastos de forma a promover eficácia nos serviços prestados e igualdade social (WORLD BANK, 2017, p. 01).

Dentre as diversas áreas como: peso da folha de pagamento, compras públicas e previdência social, um dos focos era justamente o campo da saúde pública que de acordo com o organismo precisava se adequar e promover melhoria de parâmetros organizativos para que fosse possível fazer mais com os mesmos recursos. Não é nenhuma surpresa que historicamente o Banco Mundial é uma instituição que sempre trouxe “soluções” técnicas para os países de economia dependente como no caso brasileiro. Desde a década de 1990 a instituição vem lançando documentos e estudos que atestam a necessidade de ajustes estruturais para a promoção do desenvolvimento econômico, sem, contudo, tocar na seara dos gastos estatais com a dívida pública e com o capital financeiro através da emissão de títulos públicos sem nenhuma contrapartida para a classe trabalhadora brasileira.

Desse modo, ao retornamos Dardot e Laval (2016) bem como Gurgel (2003) podemos apontar que essas medidas estão inseridas na ideia de flexibilidade da administração estatal de modo que, após a rapina de recursos realizada através do sistema da dívida, a classe trabalhadora, em especial os servidores públicos sejam submetidos a parâmetros para o que em nossa interpretação poderia ser caracterizado como uma maior extração de mais-valia, tendo em consideração que o governo deixa de investir em áreas estratégicas em detrimento da alimentação da fração rentista e parasitária do capital financeiro (CARCANHOLO; NAKATANI, 1999).

Para esses autores, essa flexibilidade estaria conformada em uma instrumentalização de técnicas gerenciais com o objetivo de tornar, nesse caso em específico, o Estado mais eficaz, reduzindo assim, o custo dos serviços e despesas operacionais. Apesar de se apresentar como um aporte instrumental, Gurgel (2003) nos lembra de que essa flexibilidade na verdade busca apenas um disfarce para o avanço do capital sob a batuta empresarial da boa gestão. Essa separação entre política e gestão se molda sob a defesa da objetividade, racionalidade e alcance de objetivos, elementos que se fixam em uma chave positiva, por entender que os recursos devem ser administrados da melhor forma possível e sem interferência “ideológica”.

Mas, quais seriam os fundamentos dessa administração gerencial baseada no concorrencialismo e na busca pela eficiência? Segundo Ana Paula Paes de Paula (2005) a tônica dessa administração pública gerencial - conhecida também como Nova Administração Pública – seria a transferência de conceitos da administração empresarial para a área pública. Na formulação discursiva para a realização dessa reprodução é possível encontrar segundo a autora, elementos “democráticos” condizentes com certa necessidade de transparência, ou seja, princípios que em grande medida são amalgamados nas empresas privadas como uma forma de promover uma imagem de colaboração e transparência no âmbito intra e interorganizacional. Ainda segundo essa autora a administração pública gerencial teria surgido no Reino Unido tendo em vista que países como a Inglaterra foram um dos primeiros a implantar os processos e reforma estatal com o advento dos governos Thatcher na década de 1980.

Nessa mesma linha argumentativa, Dardort e Laval (2016) enfatizam que a administração pública gerencial busca importar regras e mecanismos das empresas

privadas, induzindo tais instituições a uma mercadorização dos serviços ofertados à população. Ganha destaque nesse processo o ideário da “livre” concorrência na oferta de bens e serviços públicos e por fim, na consideração da concorrência como instrumento eficiente e promotor da melhoria do desempenho da ação pública.

Dessa forma, essa junção entre mudanças produtivas, construção teórica do neoliberalismo e a conformação pelo Estado de um discurso empresarial aliado à formação de uma subjetividade neoliberal são elementos basilares para o entendimento do objeto investigado em nossa dissertação. Percebemos que, mesmo em uma fase monopolista os epígonos do neoliberalismo tendem a mascarar a realidade argumentando sobre uma inexistente “concorrência” de mercado. Nesse ponto a análise marxista nos mostra bem a incompletude e a mistificação desse argumento através da noção de capital financeiro e imperialismo. Outro elemento seria os próprios limites do Estado na promoção de políticas públicas em países dependentes como o caso brasileiro e como iremos mostrar posteriormente o caso da saúde pública que desde a construção do SUS na década de 1990 não consegue ter uma plena efetividade por barrar no regime fiscal brasileiro.

Contudo, a base teórica do neoliberalismo também procura forçar mediante a ideia de um capital humano e da noção de empresariamente da vida, que a concorrência seria o único terreno de desenvolvimento possível para a sociedade em âmbito geral, inclusive entre instituições estatais, nesse sentido a interpretação de Dardot e Laval (2016) nos ajuda a entender de que forma esses elementos estão inseridos numa relação de governamentalidade, o que permite ao Estado reproduzir o gerencialismo em seu aparelho estatal, uma vez que, ao retomar a concorrência como a melhor prática para a alocação de recursos, os neoliberais tentam pulverizar um falso dogma sobre a Idea de que os interesses individuais redundariam no bem- estar geral da sociedade.

Mediante essas reflexões na próxima sessão iremos observar como essa linhagem teórica se conforma no caso da saúde pública brasileira e de que forma o Estado foi incorporando o gerencialismo no seu aparelho estatal sob a argumentação de modernização e acompanhamento da tendência de globalização da economia. Passamos a levar em consideração nesse caso o processo de contrarreforma e aprofundamento do neoliberalismo a partir da década de 1990 e como esse processo influenciou na conformação da saúde pública brasileira.

2. A SAÚDE EM MEIO A CONTRARREFORMA ESTATAL: O GERENCIALISMO