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3. TECNIFICAÇÃO E INSTRUMENTALIZAÇÃO DA SAÚDE: O PMAQ-AB COMO

3.3 O gerencialismo esconde a desvinculação de recursos?

Dentro da análise dos resultados da pesquisa entendemos que, ao mesmo tempo que o Estado visa o monitoramento e o desempenho das ações na atenção básica à saúde através da ordem de um discurso de transparência e prestação de contas acerca dos recursos públicos utilizados, questionamos até que ponto esse discurso não procura tirar o foco de questões basilares e ainda não resolvidas dentro da saúde pública brasileira, principalmente aquelas associadas à garantia de recursos necessários para a plena efetivação do SUS e que tocam sobre a própria condução e administração dos recursos produzidos pelas trabalhadoras e trabalhadores do Brasil.

Para termos uma ideia clara dessa dimensão basta visualizarmos o comportamento dos gastos em saúde pública no Brasil durante o período de 2011 até 2018, de modo a observarmos em que medida esses gastos são necessários, e se de fato eles atendem às necessidades da população brasileira. Na tabela a seguir é possível constatarmos a realidade através dos dados emitidos pela Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil (ANFIP):

Tabela 1 - Evolução das despesas do ministério da saúde com ações e serviços de

saúde pública

Fonte: Elaboração própria a partir de Anfip (2019).

O que nos chama atenção na tabela acima é o fato de que, de 2014 para 2015 tivemos uma variação percentual negativa em relação aos valores pagos nas despesas com saúde, movimento que se repete entre 2017 e 2016. Segundo a Anfip (2019) essas contas sempre sofreram bastante controle por parte do governo federal. Desde 2000, através da Lei de responsabilidade fiscal há um esforço para a formação de superávits primários nas contas do governo. Apesar disso, com a instituição da Emenda Constitucional nº 95 no ano de 2016 pelo ex-presidente Michel Temer o controle sobre essa conta se torna maior. No entendimento do governo o Estado brasileiro deveria instituir um teto mínimo de gastos primários de modo a não alterar a capacidade estatal na geração de superávits primários.

No que diz respeito ao gasto per capita, o relatório da Anfip demonstra que houve um esforço pífio para a sua elevação. Em 2018, por exemplo, ao gastar 572 reais por pessoa o relatório chama atenção que é um valor baixo, levando em consideração que em 2014 a relação era 574 reais por pessoa, mostrando uma perda de recursos por habitante se compararmos esses dois momentos, além da própria consideração do aumento demográfico no decorrer desse espaço de tempo.

De modo concreto, a área da saúde demanda recursos sempre crescentes, seja pelo próprio crescimento demográfico ou pela mudança da pirâmide etária brasileira que se encontra em processo de aumento de indivíduos categorizados na terceira idade. Consequentemente, essas alterações exigem serviços e ações em saúde que demandam recursos pela própria natureza das patologias que acometem essa parcela da população brasileira. Conforme nos atenta o relatório da Anfip, antes da EC 95/2016 a tendência era que nos próximos anos houvesse uma ampliação dos recursos que pelo menos conseguisse garantir o mínimo para que o SUS não sofresse um processo de desfinanciamento da saúde.

Soma de valores pagos corrigidos

(R$ bilhões de dez/2018, IPCA). 101,7 108,8 109,9 116,6 112,3 114,9 112 119,4 Variação percentual - 6,98% 1,01% 6,10% -3,69% 2,32% -2,52% 6,61% Gasto per capita ano

(R$ de dez/2018, IPCA). 528,7 560,7 546,7 574,8 549,2 557,5 539,4 572,5 Variação percentual - 6,05% -2,50% 5,14% -4,45% 1,51% -3,25% 6,14%

Todavia, ao atentarmos apenas aos números, poderíamos cair em uma simplificação da realidade, de forma a desconsiderar fatores políticos, econômicos e sociais que de sobremaneira influenciam no processo do financiamento da saúde pública brasileira. Nessa perspectiva e com base nos apontamentos presentes nos relatórios emitidos pela Anfip podemos tomar como norte o fato de que, desde a constituição do SUS, vivenciamos o que autores como Mendes (2012) denominam de subfinanciamento crônico da saúde, ou seja, a ausência de recursos necessários para a plena efetivação da política pública de saúde.

Desde os governos de FHC, passando pelas administrações petistas, convivemos com a rapina de recursos da Seguridade Social - área que comporta a Saúde, Assistência e Seguridade Social -, realizada de forma institucionalizada. De forma breve podemos apontar que esse mecanismo de retirada de recursos produzidos por toda sociedade brasileira possui um histórico longo que se inicia em 1993, ano que em meio ao recém criado SUS, há o embate sobre o repasse de 30% dos recursos do orçamento da Seguridade Social, fato que nunca ocorreu.

Ainda em 1993, quando a Lei de Diretrizes Orçamentárias alocava um total de 15,5% do total de recursos arrecadados para a saúde, houve uma negativa por parte da administração estatal no sentido de “socorrer” a área da previdência social que necessitava de recursos para não encerrar o ano com déficit. No ano de 1994 há a criação do Fundo Social de Emergência (FSE), renomeado para Fundo de Estabilização Financeira (FEF) e a partir de 2000, intitulado de Desvinculação das Receitas da União (DRU). Esse mecanismo retira 20% das arrecadações das contribuições sociais para serem alocadas ao governo federal, passando a rapinar um total de 30% através da emenda Constitucional nº 93/2016. Dessa forma, a DRU, usa recursos da seguridade social para a formação de superávit primário (estes recursos são alocados para pagamento de juros da dívida pública brasileira).

Esses elementos por nós apontados ficam mais fáceis de serem observados quando nos aprofundamos nas contas da execução orçamentária do governo federal como podemos observar na tabela a seguir:

Tabela 2 - Recursos subtraídos do Orçamento da Seguridade Social

(em milhões de reais)

Ano Receitas menos despesas da Seguridade Social Desvinculação das receitas da União (DRU) Resultado

Após DRU Governo Soma da desvinculação 2000 26,7 -12,7 14 FHC 44,4 2001 31,5 -14,6 16,9 2002 33 -17,1 15,9 2003 31,7 -19,3 12,4 LULA 278,2 2004 42,5 -24,9 17,6 2005 56,9 -32,4 24,8 2006 47,9 -34 13,9 2007 72,7 -38,5 34,2 2008 64,7 -39,2 25,5 2009 32,6 -38,7 -6,1 2010 53,8 -45,8 8 2011 75,7 -52 23,7 DILMA 399,2 2012 82,7 -58 24,7 2013 76 -63,4 12,6 2014 53,9 -63,1 -9,2 2015 11 -63,7 -52,7 2016 -54,4 -99 -155 2017 -56,8 -113.349 -170,14 TEMER27 233,3 2018 -53,9 -119.974 -173, 879

Fonte: Elaboração própria com base nos relatórios emitidos pela Associação Nacional de Auditores públicos Federais (ANFIP, 2019)

Podemos considerar que de 2000 até 2008 mesmo com a retirada de recursos para o pagamento da dívida pública brasileira o orçamento da seguridade social ficava superavitário. Em 2009 passamos a ter após a retirada de recursos, déficit fiscal. Contudo, o período de aprofundamento desse processo toma um maior relevo de 2014 até 2018. Observamos também que, independentemente do governo que esteja na administração do aparelho estatal, a retirada de recursos é uma constante.

Se compararmos esses recursos que são retirados para o pagamento de juros e amortização da dívida pública em relação às despesas classificadas como de saúde pelo governo federal constatamos em nível empírico que, apenas com esses recursos desvinculados daria para aumentar de forma substancial os recursos a

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Salientamos que o governo Temer teve início 12 de maio de 2016, após o golpe institucional sofrido pela ex-presidente Dilma Roussef, até 1 de Janeiro de 2019, com a posse de Jair Bolsonaro.

serem alocados na área da saúde pública como podemos observar na tabela a seguir:

Tabela 3 - Comparação entre os recursos retirados pela DRU e as despesas com

saúde pública (Valores em milhões de reais)

Ano 2011 2012 2013 2014 2015 2016 2017 2018 Despesas com

saúde 71.113 78.897 84.175 92.943 100.837 107.117 116.366 119.695

DRU 52 58 63.4 63.1 63.7 99 113.349 119.974

Fonte: Elaboração própria com base nos relatórios emitidos pela Associação Nacional de Auditores públicos Federais (ANFIP, 2019)

Praticamente em todos os anos os valores destinados a DRU se aproximam em grande medida daqueles gastos com as despesas em saúde pública. Esse processo toma um maior contorno quando passamos a enxergar nos últimos anos, especialmente de 2016 até 2018 com o processo de crise política, que os recursos retirados pela DRU praticamente poderiam dobrar os gastos com saúde pública, demonstrado mais uma faceta de incompatibilidade dos governos nessa questão. Na esfera da atenção básica à saúde podemos observar de acordo com o gráfico a seguir que apesar de ocorrer variações percentuais positivas nos gastos dessa área, a tendência geral é de perda de recursos:

Figura 6 - Despesa do Ministério da Saúde com Atenção Básica à Saúde

Segundo a Anfip (2019) essa realidade se conforma a partir de mecanismos de contenção de gastos públicos, principalmente pela EC 95/2016. Para termos uma ideia mais concreta desse fato, basta atentarmos ao dado tendencial em 2018 que implica em decréscimo percentual nessa área em um período marcado por políticas de austeridade fiscal tutelada pelo ministro da economia de Bolsonaro, Paulo Guedes, desde o ano de 2019.

Uma vez que essas informações postas em tela foram trazidas por nós com base em informações concretas, passamos a questionar os sentidos e a vinculação material dos mecanismos gerencialistas na atenção básica à saúde representados em nossa pesquisa pelo PMAQ-AB. Em nossa interpretação, de um lado há uma ação governamental na promoção de índices, dados, correlações e métricas para o acompanhamento dos trabalhadores da atenção básica como uma forma de induzir a melhoria na gestão e na qualidade dos serviços prestados à comunidade. Por outro lado, esse discurso se apresenta de modo contraditório com base em evidências empíricas, uma vez que, nos gráficos e tabelas por nós analisados, há um evidente movimento de captura de recursos públicos pela influência do imperialismo.

Mesmo no caso da atenção básica, apesar de termos crescimentos percentuais no que diz respeito à alocação de recursos, os dados mais recentes demonstram uma tendência de redução e limitação de gastos o que também coloca em questão a visão do PMAQ-AB sobre sua implementação. Para nós, fica evidente que, diante de uma tentativa gerencial de promover eficiência e qualidade na atenção básica à saúde, o mote discursivo que se faz presente nessa prática governamental é representado pela expressão popular “fazer mais com menos”. Essa expressão que aparece como a busca de eficiência acaba por cumprir a função de naturalizar tecnicamente a busca por enfrentar a insuficiência de recursos, sem questionar a causas dessa insuficiência tomada como fato natural. Assim, os parcos recursos que restam após a rapina realizada pela DRU precisam passar pelo crivo de métricas que forçam a classe trabalhadora a se submeter a uma gestão milimétrica na busca por resultados e transferem a responsabilidade dos resultados das políticas para o desempenho dos trabalhadores.

Apesar de contraditória essa lógica é estratégica para a prática da governamentalidade e da racionalidade neoliberal. Ao retomarmos Foucault (2008) e a Dardot e Laval (2016) entendemos que a racionalidade neoliberal não visa corrigir

as falhas do mercado em função do bem-estar da população, mas, de criar situações concorrenciais diferentes daquelas tradicionais do capitalismo. Essa concorrência estaria atrelada à própria subjetividade dos indivíduos, marcando assim, estilos de vida e formas de comportamento em sociedade. Conseqüentemente, o investimento em serviços públicos se atrofia de modo a criar- se uma lógica argumentativa em torno da necessidade de manutenção de mecanismos e tecnologias governamentais, especialmente pelo uso da Estatística para induzir e governar a sociedade. Por esse motivo o gerencialismo aparece como esse conjunto de técnicas administrativas transvestida na ordem de um discurso governamental, funcionando como panaceia e reduzindo questões de ordem social, econômica e política a imperativos técnicos.

À vista disso, como bem salienta Dardot e Laval (2016), os administradores se tornam mestres do gerencialismo, sempre apresentando discursos voltados à criação de tecnologias de acompanhamento, verificação, normatização e avaliação das práticas dos corpos e da sociedade de uma forma geral. Através desse imperativo técnico as tecnologias gerenciais aparecem para a sociedade como instrumentos neutros, sem ideologia, e aqueles que passam a criticar ou investigar de forma crítica essa ordem discursiva são acusados de ideólogos.

Entretanto, as evidências apontadas por nós através dos resultados dessa pesquisa mostram justamente o contrário, canalizam-se as atenções para elementos de ordem técnica e os elementos políticos e sociais deixam de ser colocados em pauta. O que em nossa interpretação perpassa pela própria noção de saúde adotada pelo Estado, e pelo seu financiamento que conjugados à pressão sofrida pelos trabalhadores da saúde no uso do tempo para o atendimento de indicadores, fichas, métricas e avaliações, acaba burocratizando e desmobilizando a ação coletiva na saúde pública brasileira.