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Bases teórico-metodológicas e ético-políticas de construção do Projeto Ético-

Antes de apresentarmos os elementos que deram base à construção do chamado projeto ético-político do Serviço Social, são pertinentes algumas considerações acerca da conjuntura em que o referido projeto foi gestado. O ponto de partida do debate ora proposto tem a crise do sistema capitalista como um fenômeno catalisador de diversas transformações societárias. Tal crise, iniciada na década de 1970 resultou da progressiva queda das taxas de lucro; do fenômeno do estagflação que corresponde à estagnação econômica com altas taxas de inflação; da crise de superprodução e da crise internacional do petróleo, como um dos elementos detonadores da estagnação econômica (ANDERSON, 1995).

Nesse sentido, esta crise provocou uma miríade de impactos em todas as esferas da sociedade. Segundo as reflexões de Abramides (2019 p. 118) há um conjunto de crises circunscritas à ambiência sócio-histórica da crise dos de 1970, quais sejam:

a) O quadro de crise estrutural do capital e as respostas à sua própria crise; acumulação flexível, neoliberalismo e pós-modernidade;

b) A crise da social-democracia no interior do próprio capitalismo reformista, portanto, do Estado de Bem-Estar (EBES), com suas políticas de regulação;

c) A crise do Leste europeu, com a queda emblemática do Muro de Berlim, e o fim do ―socialismo real existente‖ nas sociedades pós-

capitalistas se transformam em munição para os apologistas decretarem ―o fim da história‖ e o triunfo do capitalismo como saída única e inexorável;

d) Fruto dessas crises espraia-se a crise da esquerda, em que importantes setores abandonaram o ideário socialista e migram para a social- democracia, na melhor das hipóteses, e parcelas expressivas implementam, quando se tornam governos, as políticas neoliberais.

Nesse sentido, a autora sintetiza um conjunto de transformações operadas no capitalismo, a partir de suas crises, cujas mesmas são constitutivas de seu modo de produção. É importante ressaltar que os efeitos gerados pela crise não rebatem apenas no sentido econômico, mas, pelo contrário atingem a todas as esferas da sociedade. Netto (1996) assinala que o marco dos anos setenta não é um acidente cronológico; ao contrário: a visibilidade de novos processos se torna progressivo à medida que o capital monopolista se vê compelido a encontrar alternativas para a crise em que é engolfado naquela quadra.

Diante deste cenário de profundas mudanças sociais, políticas e econômicas, o projeto ético-político do Serviço Social, convencionalmente denominado a partir do final dos anos de 1990, representa o estatuto teórico-político do Serviço Social. Suas primeiras formulações ocorreram nos anos de 1970, momento em que a profissão acompanhara mudanças substantivas em seu interior. Um dos fatores determinantes para a construção de um Serviço Social crítico, foi o questionamento da perspectiva conservadora, ou seja, quando a profissão ainda não estava sintonizada com os interesses da classe trabalhadora.

Abramides (2019) analisa que as condições políticas de constituição do PEPSS devem ser avaliadas considerando-se os seguintes elementos: a luta contra a ditadura, a colagem aos movimentos sociais dos anos 1980, a mudança do público profissional, que ingressa nos cursos de Serviço Social, compostas por camadas médias e empobrecidas, e de como as vanguardas profissionais e acadêmicas são vanguardas de militância política e social. Estas foram, portanto, as bases que deram concretude a este projeto profissional.

Nesse sentido, tal projeto possui uma ineliminável dimensão política, ou seja, vincula- se a um projeto profissional, o qual, nas análises de Netto (1999, p. 02), ―os projetos societários são sempre coletivos; mas seu traço reside no fato de se constituírem como projetos macroscópicos, como propostas para o conjunto da sociedade‖. Dessa forma, os projetos societários tipificam propostas para o conjunto da sociedade, por se tratar de uma dimensão macrossocial. Para o referido autor, tais projetos são sempre permeados por uma dimensão política, ou seja, não no sentido da política enquanto partidária, mas que expressam correlações de forças e interesses divergentes.

Nessa perspectiva, Cardoso (2013, p. 80) endossa tal afirmação, a partir do momento que considera a dimensão política relacionando-a as estratégias formuladas pelo sujeito coletivo- a categoria profissional- para a objetivação desses valores e princípios, a fim de atingir sua intencionalidade enquanto projeção profissional na relação com determinado projeto societário.

Os projetos societários, para Braz e Barata (2009), podem ser transformadores ou conservadores. Entre os conservadores, há várias posições que têm a ver com as formas (as estratégias) de transformação social. Assim, temos um pressuposto fundante do projeto ético- político: a sua relação ineliminável com os projetos de transformação ou de conservação da ordem social. Projetos dessa natureza possuem a dimensão de transformação da realidade ou de manutenção do status quo. No tocante aos projetos profissionais, o qual o Serviço Social particulariza- se, Netto (1999, p. 4) sublinha que:

Os projetos profissionais apresentam a auto-imagem de uma profissão, elegem os valores que a legitimam socialmente, delimitam e priorizam seus objetivos e funções, formulam os requisitos (teóricos, práticos e institucionais) para o seu exercício, prescrevem normas para o comportamento dos profissionais e estabelecem as bases das suas relações com os usuários de seus serviços, com as outras profissões e com as organizações e instituições sociais privadas e públicas (inclusive o Estado, a que cabe o reconhecimento jurídico dos estatutos profissionais).

Destarte, na perspectiva supracitada, os projetos profissionais concretizam os valores que cada profissão elege para nortear a sua prática e a natureza de cada categoria profissional. No caso do Serviço Social, a profissão possui um inegável compromisso com a defesa intransigente dos interesses da classe trabalhadora e da liberdade como valor ético central, trazendo em seu mote, a direção por uma nova ordem societária, sem dominação/exploração de classe, etnia e gênero. Nesse sentido, Vasconcelos (2015) afirma que o projeto que se constitui com influência da tradição marxista, quando tomado como referência pelos profissionais na sua radicalidade, é o único projeto, no âmbito da categoria, que se propõe a enfrentar substancialmente práticas conservadoras, iluminar um exercício profissional anticapitalista e, assim, trazer contribuições efetivas a processos de ruptura e emancipatórios.

O referido projeto foi construído historicamente, mediante as transformações ocorridas no interior da categoria profissional, as quais acompanharam diversas mudanças societárias, e condensa, fundamentalmente, três elementos: o Código de Ética Profissional (1993), a Lei de Regulamentação da Profissão (nº 8.662/1993) e as Diretrizes Curriculares aprovadas nos anos

de 1996. É fruto do processo da Renovação profissional26, o qual possibilitou à profissão maturidade teórica e ideopolítica. A Renovação, a partir de sua última vertente, a Intenção de Ruptura, ensejando a interlocução do Serviço Social com a tradição marxista. Nas análises de Amaral e Mota (2014, p. 30):

Embora o projeto ético político do Serviço Social não se restrinja aos instrumentos formais e legais, como a lei de regulamentação da profissão, as diretrizes curriculares, o código de ética profissional, possui uma força material que, para além de favorecer as condições da prática e da formação profissional, contribui decisivamente para consolidar uma cultura profissional marcada por princípios, valões e referenciais teórico- metodológicos que abraçam a teoria marxiana, a superação da ordem capitalista, o humanismo, o internacionalismo das lutas sociais e a radicalidade democrática, os quais fundamentam, articulam e medeiam- sob condições históricas precisas- a relação entre a realidade e a profissão.

Em face do exposto, as autoras apresentam o significado teórico-político deste projeto, o qual gestou-se sob determinadas condições. Nesse conjunto de transformações societárias, destaca-se a realização do III Congresso Brasileiro de Assistentes Sociais, ou congresso da ―Virada‖, ocorrido em São Paulo, em 1979. Este evento notabilizou-se entre a categoria profissional, pois destituiu a mesa de abertura, composta por representantes da ditadura militar pela presença dos trabalhadores e do movimento sindical. A partir de então, o Serviço Social despontou como uma profissão crítica e comprometida com os interesses da classe trabalhadora, pautada pela defesa intransigente dos direitos humanos. Noutros termos, Silva e Silva (2011, p. 61) ressalta:

O ―ano da virada‖, como ficou conhecido 1979, é marcado por um movimento e oposição à direção conservadora do Conselho Regional de Assistentes Sociais de São Paulo, dando-se também a rearticulação da Associação Profissional de Assistentes Sociais, também de São Paulo, com vitória da chapa de oposição, na busca do fortalecimento do movimento sindical no interior da categoria. Essa iniciativa repercute em nível nacional, registrando-se esforço de articulação do movimento sindical dos assistentes sociais, com reativação de alguns sindicatos, algumas associações e criação de novas associações profissionais, que, posteriormente, se transformam em sindicatos estaduais, permitindo, em 1983 a criação da Associação Nacional de Assistentes Sociais (ANAS).

Considerando o legado do Congresso da Virada para a categorial profissional, quando o mesmo expressou uma disputa com o conservadorismo, o PEPSS, expressa, portanto, a maturidade teórico-política da profissão, apresentando-se como um projeto que possui uma explícita dimensão de classe, com valores que legitimam e balizam a atuação profissional. Ademais, condensa opções de natureza teórico-metodológica e ético-política. Este projeto afigura-se como um projeto hegemônico na categoria dos/as assistentes sociais. A hegemonia, a despeito de não significar maioria, indica a prevalência e/ou direcionamento de determinados posicionamentos e/ou escolhas. De acordo com Netto (2016, p. 63), ―deste projeto, é possível dizer que nele se condensa a direção social que se propôs para a formação e a prática profissional dos assistentes sociais‖.

A década de 1980 foi emblemática para o Serviço Social, haja vista que o PEPSS avançou no interior da categoria, acompanhando uma gama de mudanças societárias, num contexto de redemocratização da sociedade brasileira. Esta periodicidade é fundamental para entendermos a consolidação do PEPSS, vez que, neste lastro histórico, o Serviço Social foi reconhecido internacionalmente, com a sua notável qualidade no âmbito da pós-graduação, fator este que conferiu à profissão status de área reconhecida pela produção de conhecimento. Os anos de 1980, para Silva e Silva (2011) foi uma conjuntura marcada pela manifestação de sinais de falência do padrão do Estado intervencionista e lançamento das bases de minimização do Estado, assumido como novo padrão nos anos 1990. A manifestação mais evidente dessa crise estrutural se expressou pela profunda e prolongada crise econômico- político-social, sendo, nesse contexto, cada vez mais evidentes as contradições da proposta modernizadora do Serviço Social.

Ainda sobre esta fase, Netto (1996) pontua que a década de oitenta consolidou, no plano ídeopolítico, a ruptura com o histórico conservadorismo do Serviço Social, ainda que o mesmo não tenha sido totalmente extirpado. Para este autor, é correto afirmar-se que, ao final dos anos oitenta, a categoria profissional refletia o largo espectro das tendências ídeopolíticas que tensionavam a vida social brasileira.

Nessa esteira histórica, o PEPSS consolidou-se na década de 1990, tornando-se hegemônico pela categoria profissional, pelo seu compromisso e defesa intransigente dos interesses da classe trabalhadora. Concomitante a esta consolidação, acompanhou-se no Brasil a entrada do projeto neoliberal27, o qual se caracterizou pelo enxugamento do Estado em suas

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Segundo Anderson (1995), o neoliberalismo nasceu logo depois da II Guerra Mundial, na região da Europa e da América do Norte onde imperava o capitalismo. Foi uma reação teórica e política veemente contra o Estado intervencionista e de bem-estar. Seu texto de origem é O Caminho da Servidão, de Friedrich Hayek, escrito já

funções, acarretando, assim, uma série de desmonte dos direitos sociais, o que alguns estudiosos denominaram de contrarreforma do Estado brasileiro. A contrarreforma, portanto, trouxe sucessivos ataques aos direitos da classe trabalhadora e, por conseguinte, agudizou-se às expressões da chamada ―questão social‖.

Todo este cenário apresentado constituiu enormes desafios à efetivação do PEPSS, o qual passou a ser alvo de inúmeros debates sobre a sua materialização, em decorrência dos aspectos conjunturais. Os elementos que dão materialidade ao PEPSS, nas análises de Braz e Barata (2009) são: a produção de conhecimento-considerando a apropriação da tradição marxista pela profissão; a dimensão jurídico-política-que envolve os aspectos normativos, como a Lei de Regulamentação da Profissão, o Código de Ética e demais arcabouços legais e, por fim, o protagonismo das instâncias político-organizativas-como o conjunto CFESS/CRESS, ABEPSS e ENESSO. Segundo Pereira de Paula (2016), todos estes elementos demarcam que o Serviço Social consolidou, ao longo dos anos de 1990, um projeto de profissão com contornos claramente marxistas. Entretanto, o cenário já gestado nessa mesma década acirrou-se ainda mais na entrada do século XXI, apresentando-se para nossa categoria profissional desafios cada vez maiores.

No contexto dos anos de 1990, momento em que o PEPSS adquire robustez teórico- política, os principais desafios, segundo Silva e Silva (2011, p. 95) residiram no fato de:

No nível da sociedade brasileira, verifica-se a crise das universidades, em cujo contexto se situa a produção de conhecimento mais relevante do Serviço Social, o sucateamento do serviço público, que ainda representa o maior espaço da prática dos assistentes sociais, a redução dos programas sociais, com estreitamento do mercado de trabalho e a conjuntura de forte recessão e arrocho salarial que também tem limitado a ação organizada e reivindicativa dos trabalhadores, com quem os assistentes sociais vêm procurando estabelecer alianças.

Mediante a tais desafios, os anos de 1990 configurou-se como um período de sucessivos avanços no que concerne à consolidação de um novo estatuto profissional do Serviço Social e, ao mesmo tempo, prenhe de desafios frente à conjuntura em recente processo de redemocratização. Decerto, a manutenção dos valores preconizados pelo PEPSS vem demandando respostas profissionais cada vez mais imediatas e em sintonia com as transformações societárias em curso.

em 1944. Trata-se de um ataque apaixonado contra qualquer limitação dos mecanismos de mercado por parte do Estado, denunciada como uma ameaça letal à liberdade, não somente econômica, mas também política.

2.2 A direção social do Projeto Ético-Político do Serviço Social em disputa: tendências e