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Beato Romano e Maria Moura: ponto e contraponto

3 MEMÓRIA E MORTE

3.2 Beato Romano e Maria Moura: ponto e contraponto

A trama, construída por Rachel de Queiroz para o seu último romance, é iniciada pela voz do padre José Maria no primeiro capítulo, intitulado “O Padre”. Entretanto, sua história se inicia bem antes de sua chegada à Serra dos Padres, pois nos doze capítulos que trazem seu novo nome há a rememoração dele, iniciada quando ainda era pároco de Vargem da Cruz, onde recebe a confissão de Maria Moura sobre suas intenções de matar Liberato, seu padrasto.

Essa confissão estabelece entre eles um elo que o levará a procurá-la, valendo-se do segredo guardado: “Havia, contudo um vínculo entre nós dois – eu e ela. Havia um segredo, segredo que eu não poderia descobrir nunca, porque era segredo de confissão” (MMM, 1998, p. 319).

Gilberto Freyre (2004), em sua obra Sobrados e Mucambos, explica que o confessionário funcionava, no século XVIII, como uma espécie de local onde as mulheres faziam a sua higiene mental, relatavam seus anseios, as opressões a que se submetiam, resguardadas pelo sigilo da confissão: “[...] Na sombra do confessionário, [...] a gente se sentindo protegida. Tudo lá é no mistério, de um lado e do outro do ripado da janelinha” (MMM, 1998, p. 416).

Beato Romano, em sua narrativa reminiscente, atesta a tese freyriana, referindo-se ao confessionário como lugar comum, para a mulher daquela época, que procurava o padre para desaguar nele sua essência, mostrando sua verdadeira face, valendo-se dos limites da pequena janela, protegida por um véu. O padre, assentado no compartimento do confessionário, apenas ouvia a penitente sem poder, ao certo, vislumbrar o semblante de quem se colocava ali de joelhos: “Pelo confessionário passa tudo, os adultérios e os incestos. Já falei na penitente que cometeu o pecado da carne com o padrasto e por isso resolveu mandar matar ele... [...].” (MMM, 1998, p. 102). A penitente de que trata a narrativa é Maria Moura: “Bem, ela deve se lembrar da confissão. “Não é todo dia que se faz uma confissão daquelas” (MMM, 1998, p. 07).

Beato Romano é a voz discursiva masculina mais conflituosa do texto, pelo fato de ser ele quem desencadeará as reminiscências de Maria Moura. Ele busca nela o mesmo refúgio procurado por ela naquele dia da confissão:

Naquele dia, na igreja, eu mesma nunca entendi por que fui me confessar. Talvez só para tomar coragem. De certa forma, quem sabe, para botar Deus do meu lado. [...]

O pior é que eu não podia falar com ninguém, nem tinha ninguém com quem falar, se pudesse. E já ia ficando com medo de acabar louca. Por isso é que fui desabafar no confessionário (MMM, 1998, p. 13).

A rememoração do Beato segue paralelamente à de Maria Moura, sendo sua questão pessoal independente. A identificação entre eles se dá pelos crimes que cometeram e pelo travestimento. Entretanto, evidenciam-se outras conexões entre essas duas personagens, que as tornam bem próximas. Ela encontra na figura do padre o confessor de que necessitava. Ele, entregue às fraquezas humanas e castigado por isso, também encontra nela a proteção e a misericórdia pela confissão.

A lembrança pode ser a oportunidade de fazer com que o passado não se cale no presente. O ato de lembrar ou de esquecer pode estar intimamente relacionado aos interesses em jogo, fazendo com que os fatos rememorados sejam moldados de acordo com a conveniência de quem rememora ou daquele que tenta despertar as lembranças de alguém.4

Embora o núcleo principal do texto não se mude para a história do Beato, é ele quem traz o passado de Maria Moura de volta e serão essas lembranças, despertadas pela chegada dele, que darão a Maria Moura a lucidez necessária para não se esquecer de suas tradições e para se decidir por manter seu poder, sem se entregar ao amor.

A chegada do padre à “Casa Forte” é cercada de receios pelo aspecto do local, que ele descreve como sendo um quartel, e por deparar-se com os homens armados da guarda de Maria Moura, que o levam à presença dela. Ao perceber que Maria Moura o reconhece, seu instinto de sobrevivência sobrepõe-se aos seus propósitos sacramentais e vale-se deles para negociar seu exílio, lembrando-a da confissão. Ela, embora poderosa, tenta recuar e ganhar tempo: “Não sei por que, engraçado, tive medo. [...] – Não sei do que está falando. Nem me lembro de confissão nenhuma” (MMM, 1998, p. 11).

O padre faz um apelo ao bom senso dela e afirma-lhe que ela tem ciência de que o segredo não fora violado. E, inesperadamente, recebe dela a segunda confissão: “– O matador também morreu logo depois. Era mais seguro” (MMM, 1998, p. 12). Sobre o novo nome que o padre recebe ao se exilar na Serra dos Padres, Antônio Carlos Miranda Pacheco explica que a escolha feita pela sugestão do próprio padre não fora aleatória. Na verdade, constitui o modo que a personagem encontra para manter um vínculo com a própria Igreja, considerada por ele como seu porto seguro, sua proteção: “Beato Romano [é] um nome que por si só, representa uma dualidade entre o popular (Beato) e o oficial (Romano), duas vertentes com as quais o Padre/Beato tem contato e cujas contradições o afetam” (PACHECO, 2007, p. 42).

O padre José Maria vivia atormentado pelo respeito que devia às restrições impostas pela Igreja Católica. Saber, pelo confessionário, dos pecados femininos atiçava nele o desejo carnal e os apelos do corpo tornavam-se um martírio para ele.

A incessante busca das mulheres pelo confessionário faz com que o religioso, assim como Maria Moura, ceda aos apelos do corpo e se entregue a uma aventura amorosa com Dona Bela, mulher casada e mãe de um filho pequeno.

Com ele, assim como com Maria Moura, a transgressão ocorria na calada da noite: “Bem, a noite escura é traiçoeira. [...]”. (MMM, 1998, p. 20). No seu caso, era D. Bela quem vinha disfarçada no escuro da noite e invadia seu quarto: “[...] numa sexta-feira, já noite escura, tinha ido eu repousar um pouco [...] quando um leve ruído me fez abrir os olhos e vi que, junto à minha rede, se postava uma mulher toda enrolada num xale preto.” (MMM, 1998, p.155).

A transgressão entre o padre José Maria e Dona Bela encontra outro ponto em comum com aquele estabelecido entre Maria Moura e o padrasto Liberato: a dissimulação. Durante a noite, seus corpos se encontravam e se “falavam” pela linguagem própria dos corpos. Durante o dia, cada um encontrava seu disfarce e tocavam suas vidas como se nada ocorresse à noite. E nessa dualidade noite/dia mantiveram-se até que cada um teve o seu desenlace: “Durante o dia não transparecia nada [...] o que se passava durante a noite era uma espécie de mistério [...]” (MMM, 1998, p. 21). “Dividi-me a mim mesmo em duas pessoas – o homem da noite e o homem do dia.” (MMM, 1998, p. 157).

O desenlace de Maria Moura, em relação ao incesto, deu-se com a morte de Liberato. O final da aventura amorosa do padre também termina em morte, pois o marido de Dona Bela retorna a Vargem da Cruz, afoito por obter as notícias do envolvimento de sua esposa com o pároco da cidade, enviadas a ele por uma tia que percebe a gravidez de Dona Bela, refugiada na fazenda Atalaia, onde espera ter o filho, consequência daquele amor. Porém, fora surpreendida pela chegada repentina do esposo ausente há mais de um ano. Enfurecido, mata a esposa com um golpe na barriga e, juntamente com ela, mata o filho, prova cabal de seu romance extraconjugal.

O padre José Maria chega à fazenda Atalaia e encontra a cena de horror. Anacleto o ataca e ele, para não morrer, defende-se levando o esposo de Dona Bela à morte. Torna-se, dessa forma, um fora-da-lei, procurado pela morte direta de Anacleto e pela morte indireta de Dona Bela e do filho deles, que ela trazia em seu ventre. O padre é associado, então, a três mortes, o que o ligará, mais uma vez a Maria Moura, também responsável por três mortes.

Podendo contar com a fidelidade de Simão e Iria, o padre inicia o seu processo de fuga, que só terá fim ao chegar, ironicamente, à Serra dos Padres. Após instalar-se como Beato, inicia sua narração, paralelamente às histórias narradas pelos demais narradores.

Dos três narradores masculinos, a narrativa do Beato é a única que prossegue após o flashback, pois os outros que também ajudam a narrar o texto têm suas narrativas mortas após a recordação: a narrativa dos primos não prossegue.

Em seu processo de fuga, o padre começa sua peregrinação, sempre ocultando sua identidade, por diversos povoados e desempenhando muitas profissões. A fazenda dos Nogueira é seu primeiro refúgio: “Na casa dos Nogueira eu voltava a ser um homem” (MMM, 1998, p. 188). Nessa Fazenda, ele se instala e se torna mestre das crianças, iniciando-as nas primeiras letras e por lá permanece até ser reconhecido por um mascate: “– Padre Zé Maria! Então o senhor veio se refugiar aqui? – É ele! É ele! Pensar que veio se esconder aqui!” (MMM, 1998, p. 185).

Decide-se, então, por prosseguir com a fuga e com a nova vida que lhe fora imposta. Suas lembranças atormentam-no a ponto de levá-lo à luta pelo esquecimento, indo para “[...] onde ninguém se lembrasse do Padre José Maria e das três mortes [...]. Podia mesmo dizer as quatro mortes: ela, o meu filho nonato, o Anacleto – e o Padre José Maria. Porque o Padre também morreu, naquela noite maldita.” (MMM, 1998, p. 188).

Ele chega a Bom Jesus das Almas e, nesse povoado, permanece por um ano e meio, tendo como ofício a escrita e a leitura de cartas para aqueles que necessitavam de auxílio por não terem letramento. Hospeda-se na pensão de Siá Mena, a Casa da Preta Forra. Entretanto, logo é reconhecido pelo compadre Julião: “– Padre José Maria, vocemecê não está reconhecendo o seu amigo Julião? [...] – Aqui não tem nenhum Padre José Maria. O meu nome é José de Sousa Lima”. (MMM, 1998, p. 206).

Julião, antigo conhecido de Vargem da Cruz, além de reconhecê-lo, ainda lhe trouxe a informação das histórias folclóricas inventadas sobre sua pessoa, histórias que, também, o identificam com Maria Moura, mais uma vez. Colocou-o a par de que havia um prêmio destinado àquele que soubesse informar sobre o paradeiro do Padre: “– Prêmio? Dessa eu não sabia! - Pois saiu muita gente querendo ganhar

esse dinheiro. [...] e então deram de espalhar que vocemecê tinha pauta com o cão.” (MMM, 1998, p. 207).

Dessa forma, sentindo seu passado tão presente, formado por nuvens, espectros imprecisos e impressões esmaecidas que a qualquer momento viriam surpreendê-lo, o padre chega a um povoado chamado Bruxa. Por lá, fica cerca de dois anos e meio, trabalhando no ofício de ensinar as letras. Sentindo-se insatisfeito, decide fazer uma viagem,5 retornando a Vargem da Cruz. Traça um roteiro que o levará à Fazenda Atalaia, reencontrando Iria. Lá, toma conhecimento dos infortúnios pelos quais passou Maria Moura, o incêndio do Limoeiro e as histórias folclóricas contadas pelo povo a respeito da transformação efetuada na mocinha do Limoeiro, o que a levou a ser conhecida e temida por todo o sertão.

Surpreso com as notícias de Maria Moura, o padre vê na figura dela, na lembrança da confissão feita, a possível solução para seu problema de segurança: “E ela agora era dona de fazenda, senhora da tal Casa Forte onde, entre outras coisas, dava coito a gente corrida da justiça. Era o meu caso! – eu também era corrido da justiça.” (MMM, 1998, p. 312).

Decide, então, procurar aquela mocinha, que conhecera no dia da morte de sua mãe e que depois vira pelas frestas do confessionário, agora uma bandoleira, chefe de uma cabroeira, rica e conhecida pelo sertão. Sua narrativa encerra-se no mesmo momento em que se encerra a de Maria Moura. Assim como o desfecho dela, o seu também termina em suspenso.

Beato Romano é a personagem masculina da construção racheliana mais erudito, destoando dos demais que são, via de regra, personagens que se situam à margem e que confirmam a acusação, de Mário de Andrade, de que Rachel:

[...] se vinga do eterno masculino, lhe penetrando pouco ou mal a incapacidade de grandeza. [Seus personagens masculinos] são homens fortemente incapazes, figuras de... vingança, entre mulheres nítidas. Em compensação, estas vivem com riqueza esplêndida, todas descritas com uma segurança de análise, uma firmeza de tons, uma profundeza de observação verdadeiramente notáveis (ANDRADE, 1972, p.117).

Sobre essa fala de Mário de Andrade, Eduardo de Assis Duarte escreve que é “[...] impossível concordar de todo com a afirmativa quando nos deparamos com a

solidão de João Miguel, que nunca é resignada, ou com as proezas de Lampião, bandido e herói do sertanejo sem esperanças” (DUARTE, 2005, p.109).