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O texto queiroziano e sua relação com a memória

2 MEMÓRIA E VOZES DISCURSIVAS EM MEMORIAL DE MARIA MOURA

2.2 O texto queiroziano e sua relação com a memória

O trabalho com a memória individual ou coletiva é tema recorrente nos textos de Rachel de Queiroz, na ficção ou em sua vasta produção jornalística, via crônica. Seus romances problematizam a vida nordestina, a política e os costumes de sua época com recortes que servem de painel para o entendimento do panorama político e social brasileiro, construindo, em seus textos, um espaço de histórias e memórias.

Tais memórias constituem uma construção seletiva do passado, em que serão selecionados e registrados acontecimentos de importância coletiva ou individual, podendo-se recordar partes daquilo que aparentemente se perdeu ou, pelo menos, pensou-se estar perdido nos labirintos obscuros do passado. Em Rachel, essas memórias emergem de toadas antigas, cantaroladas, sem registro

escrito, passadas de geração a geração. Rachel lança mão de linguagem bem próxima da oralidade, mas sem carregar nos “caboclismos”, ressaltando a tradição nordestina em relação aos costumes impostos à mulher: “Deitada no mato, olhando as estrelas no céu, eu ia me lembrando das conversas com o Avô [...]. Depois, eu já mocinha, ouvia os mesmos casos, repetidos já agora por Pai [...]” (MMM, 1998, p. 87).

Os romances queirozianos trazem protagonistas que representam o continuísmo e a ruptura com o modelo patriarcal que, na época, dava ao homem autoridade legal sobre a mulher, os filhos e demais agregados da família.7 Sob o ponto de vista da sexualidade, o estereótipo da mulher, na ordem patriarcal, correspondia ao daquela que se casava virgem. O ideal de beleza estava relacionado à cor branca. Nos textos de Rachel de Queiroz, as mulheres quase sempre são morenas, rústicas, destituídas daquela beleza padronizada, dotadas de uma capacidade gerencial impensável para a mulher da época, contrariando a generalização que a sociedade do século XVIII tanto almejava. São mulheres que povoam o imaginário nordestino, por meio das pelas histórias populares, como Dª. Guidinha do Poço e Dª. Bárbara, de quem Rachel é descendente, e como tantas outras que participam da memória coletiva ou individual desse povo.

Dessa forma, em seus romances, o resgate da memória é feito utilizando-se de reminiscências regionais e pessoais para a construção das personagens e dos ambientes da narrativa. Em Memorial de Maria Moura, não se pode definir com exatidão o espaço da narrativa, mas há uma referência clara ao sertão nordestino brasileiro, ponto de chegada e de partida de Rachel em vários de seus textos. Há, também, uma referência à Serra dos Padres, lugar para onde Moura foge com seu bando. Essas terras foram adquiridas pelo avô de Maria Moura de uma fidalga viúva, chamada Brites.

Gilberto Freyre, em Sobrados e Mucambos (2004), cita uma matriarca chamada Brites que tem algumas características similares às de Brites, citada no texto do Memorial. Ângela Tamaru assinala que a sede da fazenda da quinta avó de Rachel, Dona Bárbara, era conhecida por “Casa Forte”, nome dado por Moura à sua

7 A historiadora June E. Hahner, em sua obra A mulher brasileira e suas lutas sociais e políticas:

1850-1937, alerta que até 1916, no Código Civil brasileiro vigente, havia um dispositivo legal, que dispunha as mulheres como “menores perpétuos sob a lei”,(HAHNER, 1981, p. 29). Ou seja, a mulher era subordinada à vontade do homem. Apenas a viuvez dava-lhe poderes sobre os filhos e propriedades, estando, ainda sob o império de dispositivos testamentários. Se contraísse novo matrimônio, perderia todos os direitos.

residência na Serra dos Padres8. Essas questões transformam o texto racheliano em espaço de representação da memória e, o nascimento da personagem, em fruto de “um trabalho criador, em que a memória, a observação e a imaginação se combinam em graus variáveis, sob a égide das concepções intelectuais e morais”. (CANDIDO, 1987, p. 74).

Rachel, enquanto cronista, não foge do apego à terra, da defesa da liberdade e de trazer a questão feminina para a discussão, usando, em todas as coletâneas, o viés da memória. Ela traz informações acerca das transformações ocorridas no Brasil e no mundo, no século XX, que vão de temas do cotidiano à política ou à história.

Silvia Helena Simões Borelli afirma que “[...] o ato de escrever uma crônica é, concomitantemente, um ato de lembrar [...]” (BORELLI, 1996, p. 58). Rachel usa este recurso frequentemente e um bom exemplo disso é a crônica “Os Revoltosos”, da coletânea O caçador de tatu (1964), em que a cronista relata um fato histórico ocorrido há quase quarenta anos.9

O mesmo ocorre em Um alpendre, uma rede, um açude: 100 crônicas escolhidas,10 em que Rachel escreve a crônica “Memórias”, cuja primeira linha constitui epígrafe desse capítulo. Nessa crônica, Rachel reflete sobre o ato criador, a inspiração e questiona se não haveria aí boa parcela de contribuição da recordação no chamado “talento”.

Esses recortes de crítica e de textos são apenas alguns exemplos que utilizo para ilustrar a tese de que o texto queiroziano vale-se da memória como suporte, trazendo o passado para o presente. A “memória exercitada”, para usar uma expressão de Ricoeur,11 é usada em todos os textos queirozianos, desde O Quinze (1930) até as últimas produções da autora,12 religando o presente ao passado, trabalhando a identidade do povo nordestino pelas tradições. Para Ricoeur, esse “[...] é o poder exercido no ato de fazer memória que é o objetivo de toda a tradição da ars memoriae” (RICOEUR, 2007, p. 77).

8 Cf. TAMARU, 2004.

9 MESQUITA, 2006, p.7-8.

10 QUEIROZ, 1989 p. 128 - 131.

11 RICOEUR, 2007, p. 75.

12 Inclui-se, aqui, o último texto produzido em livro, Não me deixes (2000), livro basicamente de

receitas comentadas, entremeadas de histórias da culinária nordestina, usado recentemente, na tese de Adriana Rodrigues Sacramento, A culinária de sentidos: corpo e memória na literatura contemporânea, Universidade de Brasília, 2009.

Os autores do chamado romance de 30 procuraram se aproximar do povo através da literatura, adotando temas e formas de expressão de origem popular, como forma de denúncia das condições sociais em que viviam. Rachel, participante ativa desse momento literário brasileiro, teve a preocupação de fundar certa tradição nordestina e não apenas divulgar uma que já existia. Para tanto, ao relatar fatos, memórias e lendas conhecidas da região, ela recria elementos incorporados à cultura local, colocando a mulher como expoente das ações narrativas.