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PARTE II – O DIVISOR DE ÁGUAS

CAPÍTULO 5 BELLE ÉPOQUE PAULISTANA

A virada ao século XX foi um momento excepcionalmente favorável para a cidade de São Paulo do ponto de vista do capital, pois ali convergiam os efeitos positivos decorrentes da instauração da República, juntamente com a materialização econômica e urbana da cidade, motivada pela consolidação dos mercados de trabalho e de consumo.

Em viagem pelo Brasil, visitando o Rio de Janeiro e São Paulo, na primeira década do século XX, o viajante francês François Crastre observou que a cidade de São Paulo naquele momento era a mais bela de todas que havia conhecido, a melhor construída e a mais moderna, com largas avenidas, melhores jardins e até mais vigorosa que o próprio Rio de Janeiro, a capital brasileira. Dentre as observações registradas, publicadas em 1908, o viajante observou e relacionou o ritmo muito rápido de crescimento ali registrado e a congregação na cidade das maiores fortunas do Brasil, também acumuladas em curto espaço de tempo, em função do comércio do café, e como importante fator para o desenvolvimento da cidade, com o aparecimento das primeiras indústrias, mesmo que ainda rudimentares.211 Era a Belle Époque a direcionar os eventos e as intervenções sobre o tempo e a cidade.

As perspectivas financeiras do município, em 1889, era de quatrocentos e cinqüenta contos de réis, ao passo que quatro anos depois, em 1893, o orçamento chegou a quase dois mil contos.212 Em termos de arrecadação, efetivamente, em 1909 os cofres municipais arrecadaram 5.313:713$879, enquanto no ano seguinte (1910), a arrecadação chegou a 6.362:240$950, um aumento de 19,7% em relação ao ano anterior.213 Nestes termos, o município direcionou um montante superior a 1 mil duzentos e trinta contos de réis, em 1909, para obras de melhoramentos da cidade, ao passo que em 1910, os gastos destinados

211

BNF – François Castre. “Deux métropoles du Brésil: Rio de Janeiro et São Paulo.” In: Nouvelle Serie. Le

tour du monde (Paris, 1860). 14e année, nº 31, Tomo XIV, Août, 1908, pp. 374-375. 212

AHMSP – João B. C. Aguirra. “A vida orçamentária de São Paulo durante um século”. In: Revista do

Arquivo Municipal de São Paulo. São Paulo: Publicação da Directoria do Protocolo e Arquivo da Prefeitura.

Ano I, Vol. II, 1934, pp. 33-34.

213

Alesp – Relatorios de 1912-1913 apresentado a Camara Municipal de São Paulo, pelo Prefeito Raymundo Duprat. São Paulo: Casa Vanorden, 1914, pg. 4.

a estas obras superaram 1 mil quatrocentos e vinte contos de réis, cerca de 15,5% maior que os gastos do ano anterior.214

Estes gastos correspondem aos anos finais do Conselheiro Antonio da Silva Prado à frente do executivo da cidade de São Paulo, que a administrou de 1899 a 1910. Nesse período, Antonio Prado legislou pensando em uma cidade que abrigasse a “civilidade” e a “modernidade”, em oposição ao atraso, ao rural, ao arcaico. Transpondo ao plano físico estas concepções, Antonio Prado priorizou o Plano de Melhoramentos da Capital, sob o comando do engenheiro e professor da Escola Politécnica, Victor da Silva Freire, especialmente nomeado para chefiar a Seção de Obras do Município, em 1899, quando foi instalado o executivo municipal. Em 1900, a Seção de Obras deu lugar à Diretoria de Obras do Município de São Paulo, cuja direção continuou com Victor da Silva Freire até 1926. Entre suas propostas para a cidade defendia uma urbanização que proporcionasse o seu crescimento por meio do rendimento e da otimização econômica.

As obras e demais intervenções sobre a cidade eram pensadas, planejadas e executadas visando abarcar os problemas que seu crescimento apresentava, mas junto com elas os melhoramentos vinham a reboque, como parte integrante do projeto de instauração da modernização e civilização da urbe. E as formas de introdução dessas concepções se deram de diferentes maneiras sobre a cidade.

A legislação foi um desses caminhos adotados. Em 19 de outubro de 1904, por exemplo, a prefeitura publicou uma lei proibindo a circulação no perímetro central de carros de tração animal com eixo móvel, isto é, carroças, sob o argumento de preservar o revestimento utilizado na rua, o macadame. Por outro lado, também se pretendia preservar o piso para veículos de transporte mais sofisticados, como os tílburis de rodas de borracha e automóveis. Era uma extensão da proibição imposta em meados da década de 1890, essencialmente à região da avenida Paulista, por meio da Lei nº 100, de 1894, que proibiu o trânsito de gado nas suas vias.215 De outro ponto de vista, estas proibições de circulação de animais nas vias centrais também eram uma tentativa de impor uma visão baseada no futuro, evitando, assim, a retomada do passado, do atraso que os animais e seus usos

214

Alesp – Relatorio de 1910 apresentado á Camara Municipal de São Paulo pelo Prefeito Raymundo Duprat. São Paulo: Casa Vanorden, 1911, pg. 30.

215

Raquel Rolnik. A cidade e a lei: legislação, política urbana e territórios na cidade de São Paulo. 3.ed., São Paulo: Studio Nobel/ Fapesp, 2003, pp. 106 e segs.

poderiam conferir, ou ainda, à sujeira que poderiam provocar, contrariando o ar civilizado e nobre da região.

Foram leis que buscavam marcar a imagem que se desejava para o centro e para as demais vias consideradas nobres, por isso alvo de intervenções e precauções visando sua salubridade e a manutenção de seu status. Em 1906, através da Lei nº 960, a prefeitura proibiu a instalação de fábricas e edifícios com objetivos industriais em seu entorno, como forma de manter os aspectos e funções residências destinadas exclusivamente às elites ali estabelecidas.

As memórias de Zélia Gattai, que residiu durante a década de 1910 na alameda Santos (paralela à avenida Paulista), ilustram exemplarmente estes aspectos quando relata que a “Alameda Santos, vizinha pobre da Paulista, herdava tudo aquilo que pudesse comprometer o conforto e o status dos habitantes da outra, da vizinha famosa.” Os enterros eram desviados para a alameda Santos, exceto se o morto fosse pessoa muito importante; carroças de pão, de leite também eram desviados para a alameda Santos. O objetivo era preservar o calçamento da Paulista e evitar que os animais carregassem de estrumes àquelas vias, provocando sujeira e odores desagradáveis. “Nossa rua era, pois, uma das mais movimentadas e estrumadas do bairro, com seu permanente desfile de animais. Em dias de enterros importantes, o adubo aumentava. Imensos cavalos negros, enfeitados de penachos também negros – quanto mais rico o defunto, maior número de cavalos –, puxando o coche funerário, não faziam a menor cerimônia: no seu passo lento levantavam a cauda e iam fertilizando fartamente os paralelepípedos da rua.”216

Quanto ao Plano de Melhoramentos, ele visava dotar a capital de obras urbanas que a colocasse sob os auspícios de uma cidade considerada moderna, civilizada, ligada aos valores da belle époque.217 Na verdade Antonio Prado nada mais fez do que dar

216

Zélia Gattai. Anarquistas graças a Deus. 6.ed., Rio de Janeiro: Record, 1984, pp. 43 e 47. A autora também discorre sobre a ação dos homens das carrocinhas, encarregados de capturar os cães e demais animais soltos pelas ruas, os quais prenderam várias vezes seu cachorro, Flox, quando este estava fora de casa, ou quando o cachorro seguia alguém da família pela cidade.

217

Sobre as obras e a atuação de Antonio Prado à frente da administração municipal consultar as obras de Benedito Lima de Toledo. Prestes Maia e as origens do urbanismo moderno em São Paulo. São Paulo: Empresa das Artes, 1996, pp. 68 e segs.; Paulo César Garcez Marins. “Habitação e vizinhança: limites da privacidade no surgimento das metrópoles brasileiras.” In: Nicolau Sevcenko (org.). História da vida privada

no Brasil. República: da Belle Époque à era do rádio. São Paulo: Cia. das Letras, 1998, vol. 3, pp. 179 e

segs.; Candido Malta Campos. Os rumos da cidade. Urbanismo e modernização em São Paulo. São Paulo: Senac, 2002, pp. 82 e segs.

continuidade, porém com mais ênfase e sob novos marcos políticos e econômicos, às obras que embasavam os melhoramentos desejados desde o início do último quartel do século XIX, expulsando do centro populações indesejadas: negros, prostitutas, vagabundos, desocupados etc., na tentativa de conferir à região uma nova face, condizente com os acontecimentos e mudanças em curso nos níveis econômico e político.

Como medida saneadora com vistas à modernização da cidade, sua administração promoveu demolições de cortiços, alargamento de ruas, expulsão das prostitutas das ruas, principalmente da rua Líbero Badaró, dos negros do Largo do Rosário, além de outras intervenções de modo a minimizar os resquícios de um mundo considerado atrasado, oposto à imagem desejada que idealizavam para a cidade. Foi a partir de 1911, inclusive, que o corso carnavalesco foi transferido do Triângulo, no centro da cidade, para a avenida Paulista, que recebia melhoramentos urbanos e seria asfaltada em 1915, atingindo então o ápice da suntuosidade carnavalesca.218

Durante os corsos carnavalescos no Triângulo, as famílias disputavam espaço nas ruas para assisti-los, “os combates de serpentina transformavam o alto das ruas inter- sacadas num verdadeiro docel multicolor, enquanto os confetes choviam incessantemente, impossibilitando o trânsito, acumulando-se em montões que no outro dia pela manhã, enchiam literalmente os veículos da limpeza pública. Bisnagas, lança-perfumes, máscaras e fantasias, tudo abundava”, descreve Nuto Sant’Anna. Anos após a transferência para a avenida Paulista, aos poucos, o carnaval foi se tornando intra-muros, e “o melhor derivativo das aperturas coletivas, a alegria mais espontânea de tôdas as ruas” foi se acabando.219 Uma das instituições mais representativas do centro da cidade e símbolo de cultura e refinamento foi a edificação do Teatro Municipal, iniciado em 1903 e concluído em 1911. Desde o início das obras esteve presente um dos profissionais mais representativos da construção do ideal da modernização, Ramos de Azevedo, que o projetou quando encomendado ao Escritório Técnico de Ramos de Azevedo, que contou com a participação de Domiziano Rossi e Cláudio Rossi. 220

218

Marcia Camargos. Villa Kyrial. Crônica da Belle Époque paulistana. 2.ed., São Paulo: Senac, 2001, pg. 205.

219

Nuto Sant’Anna. Metrópole. São Paulo: Departamento de Cultura de São Paulo, 1952, vol. 3, pp. 255-256.

220

Sobre as obras e o legado arquitetônico de Ramos de Azevedo consultar Maria Cristina Wolff de Carvalho. “A arquitetura de Paula Ramos de Azevedo”. In: Cidade. São Paulo: Revista do Departamento do Patrimônio Histórico/ Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo: nº 5, ano 5, Janeiro de 1998, pp. 9-10. Ainda

O projeto do teatro foi inspirado na Ópera de Paris conferindo-lhe um estilo neo- renascentista. Vale lembrar que a execução das obras coincidiu com as reformas urbanas em curso na capital, Rio de Janeiro, a cargo de Pereira Passos, que também buscava inserir a cidade nos linhas da modernização. Também em 1911, Ramos de Azevedo foi contratado para projetar o belvedere da avenida Paulista, o Trianon, inaugurado em 1916; também construiu o Palácio das Indústrias, cujo projeto era de Domiziano Rossi, concluído em 1922; além do atual Mercado Municipal, entre 1925 e 1938.

Com a conclusão do Teatro outro melhoramento entrou nas pautas de discussões da municipalidade, a clássica reforma urbana do Anhangabaú, das quais emergiu o conflito envolvendo os respectivos departamentos de obras públicas, da municipalidade e do estado. O resultado deste embate remete diretamente aos interesses deste estudo, pois liga o diretor de Obras Públicas da prefeitura, Victor da Silva Freire, ao centro de uma disputa que resultou na contratação de Bouvard para a escolha do projeto de melhoramento da capital, em 1911.

Inicialmente, a proposta era promover um tratamento paisagístico à região, integrando-a à esplanada do Teatro de um lado e, de outro, à rua Líbero Badaró. Aos poucos, porém, a proposta passou a incorporar outras preocupações que refletiam o crescimento e a transformação urbanística da região. Foram a ela incorporadas necessidades de melhorias estéticas e sanitárias, questões viárias, o que seria resolvido com o prolongamento da avenida Anhangabaú, refletindo também na circulação do Triângulo central; além do tratamento sanitário da várzea localizada do outro lado da colina, a Várzea do Carmo, transformando-a num parque.221

segundo a autora, pelo Escritório de Ramos de Azevedo passaram renomados profissionais, entre eles Victor Dubugras, Ricardo Severo, Arnaldo Dumont Villares. Severo foi sócio do escritório de 1895 a 1928 e Villares de 1911 a 1928, quando morreu Ramos de Azevedo. O escritório chegou a congregar e executar todas as etapas da construção civil. Também realizavam financiamentos para importação de materiais e construção de prédios, a cargo da Companhia Iniciadora Predial. Órgãos públicos, inclusive, chegavam a dispensar concorrências públicas em função de a empresa concentrar toda a cadeia produtiva de construção e produção em suas mãos, afirma Roberto Pompeu de Toledo. A capital da solidão. Uma história de São Paulo das

origens a 1900. Rio de Janeiro: Objetiva, 2003, pp. 450 e segs. 221

José Geraldo Simões Júnior. O setor de obras públicas e as origens do urbanismo na cidade de São Paulo. São Paulo: Dissertação de Mestrado, EAESP, FGV, 1990, especialmente o tópico “O período de 1906-1911- os projetos de melhoramentos para o centro da cidade e o papel de Victor da Silva Freire, diretor de obras municipal e introdutor do urbanismo em São Paulo”; Candido Malta Campos. Op. cit., pp. 107 e segs e 143 e segs.

O início do debate começou em 1906, quando o vereador Augusto Carlos da Silva Telles apresentou a primeira proposta de remodelação da área com objetivo de proporcionar à região condições de estar à “altura” do que o Teatro Municipal representaria à cidade, em termos de modernidade e civilidade. Sua proposta fundamentava-se na circulação, na estética e na integração da área à paisagem urbana, mas acabou caindo no esquecimento até 1908, quando o mesmo vereador a retomou.

Somente em 1910 que o prefeito Antonio Prado, em final de mandato, encaminha à Câmara um ofício com o estudo da proposta do vereador endossada por Victor da Silva Freire (diretor de obras do município) e Eugênio Guilhem (vice-diretor de obras do município). Nele, o prefeito destacava a importância das obras, mas também a inexistência de fundos, senão em longo prazo, devido ao alto custo das desapropriações necessárias. Remetido à apreciação de três comissões (obras, justiça e finanças), somente a de obras lhe deu parecer favorável – já que Silva Telles a ela pertencia – mesmo assim com algumas ressalvas. Quanto às comissões de justiça e finanças o argumento maior recaía sobre a falta de recursos. Diante das alterações propostas na tentativa de reduzir o custo das desapropriações, o projeto foi aprovado em maio de 1910 e promulgado na forma de Lei, sob nº 1.331, de 6 de junho de 1910.

Com sua aprovação a municipalidade entrou em negociações com o governo do Estado com o intuito de conseguir recursos para sua execução. O estado previu em lei orçamentária de 1911 recursos na ordem 10 mil contos, porém, condicionando a obra em alguns pontos, pois depois de confirmado os recursos do estado, a Diretoria de Obras do Município alterou o projeto aprovado, ampliando a proposta de Silva Telles com outras obras previstas pela prefeitura.

O projeto municipal ficou conhecido como Freire-Guilhem e não contrariou apenas o estado, mas também o Conde de Prates. Quanto aos interesses do primeiro, previa que os 10 mil contos seriam empregados em estudos, projetos e orçamentos realizados por si mesmos; quanto aos interesses do segundo, ele era proprietário dos imóveis localizados na rua Líbero Badaró. Como resultado, em poucos dias a Secretaria de Agricultura e Obras Públicas do Estado de São Paulo elaborou outro projeto para a mesma região, visando sanar o problema. Estava, pois, posto o impasse entre estado e município.

O projeto do estado foi elaborado pelo arquiteto Samuel Augusto das Neves e pouco se diferenciou das propostas apresentadas no projeto da prefeitura, o que soava diferente estava inserido na proposta urbanística, fundamentada no estilo haussmanniano, o que contrariava a concepção de Victor da Silva Freire e Silva Telles, baseada na integração visual do vale à cidade de acordo com a estética paisagística ao estilo inglês.222

Em meio ao debate sobre qual projeto adotar, o engenheiro Victor da Silva Freire problematizou a questão durante uma palestra, em termos teóricos, buscando na literatura internacional os argumentos necessários para fundamentar os problemas urbanos. “E propõe assim o primeiro ‘plano de conjunto’ para a cidade, introduzindo com sua argumentação, as bases do urbanismo entre os profissionais ligados ao setor de obras públicas paulista.”223

Mesmo diante da defesa do projeto municipal e de duras críticas endereçadas ao projeto do estado, Victor da Silva Freire reconheceu a necessidade de melhoramentos em ambos e sugeriu, a partir da reformulação urbana empreendida em Buenos Aires, executada pelo arquiteto francês Joseph Antoine Bouvard, entre 1907 e 1910, contratá-lo para executar um parecer sobre os melhoramentos propostos nos dois projetos. Para Victor da Silva Freire, o projeto definitivo deveria contemplar três pontos fundamentais: técnico, de modo a garantir circulação; higiênico, assegurando natalidade e a redução de mortalidade; e estético, aliando os dois princípios anteriores às construções de utilidade pública, monumentos e obras decorativas em geral.

A Câmara autorizou a contratação do arquiteto francês através da Resolução nº 8, de 23 de março de 1911, com o objetivo de organizar um projeto de melhoramentos para a capital paulista. Em dois meses, Bouvard apresentou sua proposta baseada na valorização das características topográficas e dos marcos históricos, ao contrário da concepção

haussmanniana fundada em rasgos cirúrgicos na cidade, e aproximando-se das propostas de

Camillo Sitte.

222

José Geraldo Simões Júnior. Op. cit., pp. 102 e segs.

223

Ibidem, pg. 105. Diferentemente, para Luiz Augusto Maia Costa. O ideário urbano paulista na virada do

século – o engenheiro Theodoro Sampaio e as questões territoriais e urbanas modernas (1886-1903). São

Carlos/ São Paulo: Rima/ Fapesp, 2003, pp. 83 e segs., o urbanismo no Brasil encontra seus primeiros fundamentos antes de Victor da Silva Freire, Prestes Maia e Anhaia Mello. Segundo o autor, por volta do final do século XIX já havia no Brasil influências de concepções arquitetônicas oriundas da Europa e dos Estados Unidos, como Sitte, Stübben, Howard e Olmsted. Para mais detalhes ver Simões Júnior, que aborda a questão do urbanismo nascente em São Paulo no tópico “O período 1911-1930 – a consolidação do urbanismo paulistano”, pp. 131 e segs.

A contratação de Bouvard encontrou respaldo na influência que este teve durante a remodelação urbana de Buenos Aires, e revela um movimento ambíguo que caracterizou as obras urbanas na cidade de São Paulo. Se de um lado, naquele momento, os parâmetros e os valores haussmannianos ainda prevaleciam nos debates sobre as reformas urbanas em São Paulo, por outro lado a capital da Argentina cada vez mais se destacava como alternativa a estes padrões e se tornava um exemplo a ser seguido. Por esta razão, a capital portenha refletia soluções, como um espelho cuja imagem era advinda da Europa; e ao mesmo tempo baseava seus fundamentos urbanísticos de forma alternativa a haussamannização, e conseguia solucionar impasses que pareciam estar próximos da realidade da capital paulista, do ponto de vista de Victor da Silva Freire.

O elemento fundamental desta ligação urbanística da Argentina com a Europa estava nas discussões originárias das propostas do Musée Social de Paris que congregava representantes de uma corrente pós-haussmanniana do urbanismo científico, que acabou resultando na criação, em 1911, do Museo Social argentino, com vistas a pensar o urbano em conjunto com a proposta de modernização de base agrária. Enquanto isso, como Victor da Silva Freire era um opositor das propostas interventoras haussmannianas que não consideravam o conjunto do projeto ao ambiente natural e histórico, as obras da capital portenha ganhavam cada vez destaque; como as soluções dadas à Recoleta e à Plaza San Martín, por exemplo, que valorizaram os espaços segundo suas condições naturais.224

Em linhas gerais, Bouvard manteve as propostas de Freyre e Neves, readaptando-as e transformando-as numa terceira. No tocante ao impasse da área localizada no lado ímpar da rua Líbero Badaró, por exemplo, poderia ser construído um terraço contínuo sobre o Anhangabaú, ou então, ao invés de um boulevard, dois edifícios simétricos poderiam ser construídos, os quais seriam acessados pela Líbero Badaró, compondo a paisagem. Estes blocos serviriam de intermediários entre o espaço livre do vale e as edificações da colina histórica, compondo o conjunto. O projeto também contemplou os espaços livres em relação à ventilação e à qualidade estética, preocupações de Freyre, enquanto se impunha a valorização dos edifícios. 225

224

Candido Malta Campos. Op. cit., pg. 143.

225

Por tratar das diferentes propostas discutidas e os rumos tomados na urbanização da cidade de São Paulo, Candido Malta Campos afirma que a arbitragem de Bouvard entre os dois projetos nada teve de imparcial. Sua indicação, feita por Victor da Silva Freyre, foi estratégica para opor às propostas de Samuel Neves, pois

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