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HIC JACET VENERABILIS P ALEXANDER DE GUSMÃO HUJUS SEMINARII INSTITUTOR OBIIT 15 MARTII ANNI 1724.

M. BERNARDES, Discurso sobre a Educação, 1908, p 30-31.

175 O pecado, segundo o inaciano, causava danos a alma, privação da graça, afastamento do Espírito Santo, desterrando o homem do direito ao Céu, condenando o pecador a tormentos eternos nesta e na outra vida. No

deveria fazer como exame de consciência, rememorando as faltas cometidas. Sobre o quarto mandamento (“Honra teu pai e tua mãe”) o consciencioso fiel indagar-se se:

tendo filhos faltou no cuidado de lhe ensinar a doutrina christam, se lhe tirou as occasioens de peccar, se os deixou de reprehender quando era necessário ou se encaminhou ao mal, gastou faze[n]da de seus filhos, ou de ua molher em couzas illicitas? Se engeitou os filhos sem cauza? Se os amaldiçoou se os desherdou; injustamente; se os obrigou a tomar estado contra sua vontade, ou lhe impedio que elles virtuozamente escolhião? 176

O segundo “espelho”, de autoria do bispo José de Santa Maria do Cabo Verde, apóstolo missionário do Seminário de Varatojo, tinha por intuito advertir pecadores contumazes seguindo o gênero das “artes de bem morrer”. A partir da estampa de um moribundo em seu leito de morte que abria seu livro (vide Imagem 2), o bispo pretendeu despertar o leitor da sua cegueira. No canto direito da ilustração (gravada com o número 5) há um ser chifrudo com duas crianças, uma carregada por ele e outra apegada em suas pernas de cavalo. O Diabo, locutor deste diálogo com o leitor/ pecador, declarou que aquelas crianças eram os filhos do desenganado moribundo sendo levadas para o inferno em razão da negligência em sua criação.

“Envergonha-te”, dizia o Diabo, “de teres tido mais cuydado de tirar as manhas aos teus cavallos, do que tirallas a teus filhos.”. Muitos para não verem seus filhos chorosos, narrou o prelado, não os castigavam, ainda que estes fossem “deshonestos, brigadores, descortezes, vadios, e mal procedidos, de cujas podres chagas se lhes segue a morte”. O bispo atribui a maior parcela de culpa às mães, por estorvarem seus maridos, por serem mais carinhosas e em tudo desculparem aos seus filhos. “Envergonhem-se as mãys Catholicas de serem peyores para com seus filhos, do que as mãys gentias”, redargüiu o padre. “Cousa ridícula” eram estes pais tão insensatos, que pretendendo ver seus filhos “ricos, fartos, luzidos, estimados e regalados”, acabassem por “ir padecer eternamente pobreza summa, fome canina, trevas horrendas, despresos infames, e excessivos tormentos”. 177

plano terreno, explicou o padre João da Fonseca, “não há peste, fomes, sedes, minas, & outros muytos dannos que tem succedido, & acontecem no mundo, de que não fosse, & seja cauza o peccado, sojeytandose o peccador a tantos males, & privandosse de tantos bens por não se vencer em hum apetite & privar de hum gosto que passa em hum momento arriscandosse a penar eternamente”. Joam da FONSECA, Espelho de penitente, Trata de como ha de fazer huma confissão bem feyta, o que trata de reformar sua vida. Con alguns meyos, de nem cometer os leves. E hum apendice sobre a confissão geral com exemplos acomodados ás materias de que trata, Évora: Officina da Universidade, 1687, Ao Leytor, p. 7, 31.

176 J. da FONSECA, Espelho de penitente, 1687, p. 77.

177 J. SANTA MARIA, Espelho de Dezengano para peccadores confiados. Dedicado à Soberana Mãy de Deos, Rainha dos Anjos, Lisboa: Officina de Manoel Fernandes da Costa, 1731, p. 246-248, 254-256, 259, 263.

Imagem 2

“Quem soubesse quanto horrenda he a morte, que appetece, nunca guardara para esse transe, da vida a emenda”. Com base nesta gravura o bispo José de Santa Maria discorreu em seu “espelho”, de modo que a partir de cada elemento numerado nesta representação admoestava os pecadores ao arrependimento. 178

Atentando para estas obras religiosas, podemos identificar dois importantes pontos para este nosso estudo. O primeiro, e disto trataremos mais detalhadamente na segunda parte deste capítulo, o peso que a doutrina e o ensino das coisas da fé deveriam ter na boa criação dos meninos. A segunda questão que podemos identificar é a diferença de atribuições

de pais e mães na educação dos filhos, e mais detidamente no seio familiar. Notemos acima a dura repreensão lançada pelo bispo José de Santa Maria às mães, piores que as mães gentias, que por suas condescendências não cuidavam em educar honestamente aos seus filhos.

No décimo capítulo, “Quaes estejam mais obrigados à creação dos mininos, os pays, ou as mays”, padre Alexandre de Gusmão afirmou que seria obrigação das mães o direcionamento moral dos filhos, por saber ensinar com mais suavidade e doçura. 179 Era responsabilidade (e culpa) materna o saírem bem ou mal criados os meninos. Em tempos de construção do ideal do amor materno, argumentou como se fosse isso atributo natural. Os filhos sairiam naturalmente mais inclinados às mães, e pela natureza também foram destinadas a cuidarem na criação dos rebentos. Por tal razão, “se sairem os filhos bem morigerados, se presume, que foi por negligencia das mays, que podendo se descuidáram na boa direcçam dos filhos”. 180

Neste sentido, D. Francisco Manuel de Melo advertiu aos maridos em sua obra intitulada de Carta de Guia aos Casados (1650). Dedicando-se em aconselhar práticas e condutas aceitáveis e harmoniosas para o lar, recomendava o literato a este respeito que os pais tivessem comedidas graças em relação aos filhos. Os pais não deveriam cuidar em carregá-los e com eles folgar, pois não era coisa de homem ser ama e nem “berço” dos filhos. Mimar, “falarlhe naquella sua linguagem”, era segundo o intelectual indecente, bastando ao pai que procurasse todo o regalo e boa criação dos rebentos. Estas outras coisas competiam somente às mulheres. 181

Há marcadamente no discurso do padre Alexandre de Gusmão e em seus coetâneos, funções e espaços diferenciados no seio da família: as mães deveriam educar com doçura, permanecendo no espaço doméstico e privado; e os pais, repreender com severidade e

179 A. de GUSMÃO, Arte de crear bem os filhos na idade da Puericia, 1685, p. 77.

180 A. de GUSMÃO, Arte de crear bem os filhos na idade da Puericia, 1685, p. 80. Sobre o “amor materno”, cf. E. SHORTER, A Formação da Família Moderna, 1975, p. 183-184; Renato Pinto VENÂNCIO, Maternidade negada, In: M. del PRIORE, e Carla BASSANEZI (Orgs.), História das Mulheres no Brasil, São Paulo: Contexto, 1997, p. 189-222.

181

Francisco Manuel de MELO, Carta de guia de casados, Edição semidiplomática por Daniel Neto Rocha. Centro de Estudos de Lingüística Geral e Aplicada (CELGA). Faculdade de Letras. Universidade de Coimbra, 2007. Versão digital. [1ª. Edição Lisboa: Officina Craesbeeckiana, 1651]. Sobre o papel feminino vale mencionar novamente a Fénelon, que comparou a família a uma pequena República, e seu bom governo ou ruína estaria sob responsabilidade materna. No pensamento do autor, e isto permeia toda a obra, as mães deveriam ter aplicação na educação dos filhos. Educação moral e religiosa, no estimulo às virtudes cristãs e evitando os vícios, mimos e paixões. F. S. L. M. FÉNELON, De L`Education des Filles, Versão digital.

disciplina, cabendo-lhes prover o sustento da família, pertencendo-lhes, portanto, as atividades e papéis do espaço público. 182

“O melhor documento para a boa creaçam dos filhos, he sem duvida o bom exemplo dos pays”, afirmou o padre Alexandre de Gusmão. 183 Os pais deveriam dar bons exemplos, pois estava a seu encargo a direção da família. Do mesmo modo que cabia ao Rei, aos Bispos e Prelados governarem o Reino, a Diocese e o Convento, respectivamente, serem exemplares para edificação de seus súbditos. Elucidativa desta importância é a fábula do Caranguejo apresentada pelo jesuíta. Indagou o Caranguejo pai aos seus filhinhos por que razões andavam para trás e com as pernas tortas. Os caranguejinhos lhe responderam que andasse ele para frente como exemplo, do que logicamente não foi disto capaz. O padre lançou duras palavras aos seus leitores:

He força, que sigam os filhos o exemplo do pay, que andem os filhos da sorte que vem andar seus pays. Se vòs dais tam máo exemplo a vossos filhos com vossa torpe vida, com vossos depravados costumes, qual esperais, que seja vossa família; quaes esperais que sayam vossos filhos. Esperais, que sejam castos à vista de vossa incontinência? Que sejam humildes á vista de vossa soberba? Que sejam modestos á vista de vossa desenvoltura? Se vòs nam obedeceis aos divinos preceitos, & das Leys de Deos (...), quereis que vossos filhos vos sejam rendidos, & obedientes a vossos preceitos? Se vòs procedeis como Gentio sem piedade, nem temor de Deos, como quereis, que vossos filhos sejam devotos, & tementes a Deos? Pródigo seriam nam serem como vòs, porque será milagre grande serem de bons costumes os filhos, donde he de tam mãos procedimentos o pay. 184

O projeto de educação das crianças espraiava-se deste modo para um projeto de moralização da família, e em uma crescente, de toda a sociedade. Esta retórica pode ser percebida nas histórias edificantes de pais e mães descuidados, e nas severas reprimendas aos pais negligentes e “desamorosos”, tais quais não deveriam ser os pais católicos.

1.2 –AINFÂNCIA DESCUIDADA E ENJEITADA.

Muitas foram as censuras lançadas pelo padre Alexandre de Gusmão aos descuidados na criação dos filhos, ditas quase que como sentenças proverbiais. Cito: pais havia mais “cuidadosos na creaçam de seus cavallos, & cachorros, do que da creaçam de seus filhos.”. Outros ainda se preocupavam com coisas menores de matéria de polidez e civilidade,

182 Sobre as diferentes expectativas para as esposas e esposos na Península Ibérica, ver M. de L. C. FERNANDES, Espelhos, Cartas e Guias de Casamento e Espiritualidade na Península Ibérica 1450-1700, 1995, p. 291-341.

183 A. de GUSMÃO, Arte de crear bem os filhos na idade da Puericia, 1685, p. 238. 184 A. de GUSMÃO, Arte de crear bem os filhos na idade da Puericia, 1685, p. 240-241.

como por exemplo, que “o filho nam uze da mam esquerda na mesa, & mais policias”, mas não “que viva as esquerdas na vida, & nos costumes, nenhum cuidado tomam.” 185 “Vergonha he, que ponham os homens mais cuidados em procurar, & guardar a joya, que em guardar, & doutrinar o filho, para quem joya he”. 186 “Ridícula cousa”, afirmou o inaciano citando Sócrates, “que ponham os homens toda a industria em buscar boas riquezas para os filhos, & nam procurem primeiro, que sejam os filhos bons”.Outros ainda, “Edificam-lhes aceados Palácios para sua habitaçam, grandes herdades para seu sustento, & do animo, que mais importa, nada curam; vestemnos de lindas galas, & curiosos enfeytes para o corpo, & das virtudes da alma nada tratam”. 187

Casos mais extremados eram os dos pais que tratavam as crianças “como o cisco de casa, ou como os cachorrinhos da vossa cachorra, quando os não quereis crear”. 188 Sobre os cruéis pais, que abandonavam ou matavam seus filhos, dedicou padre Alexandre de Gusmão três capítulos de sua obra (I Parte, capítulos XII, XIII, XIV). “Inhumanidade” foi o termo empregue para definir o ato daqueles que “pelo nam crear, ou por outros respeitos os engeitão, ou (o que he mais detestavel)” matavam a seus próprios filhos. Semelhantes à águia, que segundo São Basílio, quando lhe nascem dois filhotes, ou mata um destes, ou muitas vezes o enjeita. As razões disto, afirmou o referido santo, talvez fosse a dificuldade de criá- los, ou talvez “porque degenere de sua natureza em fitar os olhos nos rayos do Sol”. 189

Na opinião do jesuíta, eram os homens mais selvagens que as aves, pois estes só enjeitam aos seus filhotes quando já estão em condições de voar. Os homens, porém, abandonavam os seus quando estavam no maior desamparo da natureza. Citou a Santo Ambrósio, que lamentou que sendo as mães ricas “se enfastiam de crear os filhos a seus peitos, & os dam a outras mulheres para os crear”, e se eram pobres, “os enjeitam, & talvez os desconhecem por filhos”. “Pois que animal faz isto senam o homem?” – ralhou o santo doutor. 190

A preocupação do jesuíta sobre estes “inhumanos” pais derivava de uma situação bem real em seu tempo. 191 Na América Portuguesa, notadamente nos principais centros

185 A. de GUSMÃO, Arte de crear bem os filhos na idade da Puericia, 1685, p. 50-51. 186 A. de GUSMÃO, Arte de crear bem os filhos na idade da Puericia, 1685, p. 14 - 16. 187 A. de GUSMÃO, Arte de crear bem os filhos na idade da Puericia, 1685, p. 16. 188A. de GUSMÃO, Arte de crear bem os filhos na idade da Puericia, 1685, p. 95. 189 A. de GUSMÃO, Arte de crear bem os filhos na idade da Puericia, 1685, p. 92-93. 190 A. de GUSMÃO, Arte de crear bem os filhos na idade da Puericia, 1685, p. 94-95.

191 Podemos identificar o desamparo às crianças como uma trágica constante histórica. Ainda no período medieval, a cena das crianças expostas fez surgir instituições especializadas no amparo das frágeis criaturas. Maria Luiza Marcilio identificou o Hospital de Santa Maria in Saxia (1201-1204), surgida das ações da Confraria do Espírito Santo da França, como a primeira instituição de amparo para as crianças expostas e abandonadas, criada pelo Papa Inocêncio III em razão do grande número de bebês mortos encontrados no Tibre.

urbanos, como Salvador, Recife e Rio de Janeiro, o infanticídio e os abandonos não foram práticas incomuns. O governador Antonio Paes de Sande mostrou-se horrorizado com a falta de piedade para com os enjeitados na cidade do Rio de Janeiro em fins do século XVII. O vice-rei Vasco César Fernandes, em missiva do ano de 1708, solicitou a instalação de uma Roda na cidade da Bahia, pois apareciam em grande número os “enjeitados nas ruas, inclusive sujeitos à voracidade dos animais”. 192

Sobre este assunto dos enjeitados, deve ser mencionado o estudo de Renato Pinto Venâncio sobre as “famílias abandonadas”, no qual tratou das formas de amparo às crianças enjeitadas e expostas na cidade de Salvador e no Rio de Janeiro de princípios do século XVIII ao século XIX. Segundo apontado pelo historiador, a preocupação contra estas práticas dizia respeito às instâncias administrativas no mundo luso-brasileiro. Em Portugal, a primeira “Roda” foi fundada no século XIII, assim denominada pelo mecanismo rotatório de entrega dos bebês enjeitados. Na América Portuguesa foi instituída na Santa Casa de Misericórdia na Cidade de Salvador no ano de 1726. 193

A memória destas coisas na Bahia pode ser observada no relatório do tombamento dos bens da Santa Casa da Misericórdia na cidade de Salvador datado de 1862, no qual apresentou-se um breve histórico do “Asylo dos Expostos”. Antonio Joaquim Damazio, então tesoureiro da Irmandade da Santa Misericórdia, relatou sobre a história da assistência às crianças abandonadas na instituição que,

Há 136 annos, porém, a pezar da escassez da população, e da religiosidade do tempo, era considerável o numero de exposições por todos os logares da cidade, ainda os mais immundos, e tão bárbaras e lamentáveis que, ora pela inclemência das noutes, ora pela voracidade dos caes e dos porcos, achavão-se frequentemente creanças mortas e consumidas, sem se haverem baptisado. 194

Não nos poderia passar despercebida a exprobação do tesoureiro sobre os bebês virem a falecer sem o batismo. Para o padre Alexandre de Gusmão causava grande admiração

M. L. MARCILIO, A roda dos expostos e a criança abandonada na História do Brasil. 1726-1950. In: M. C. de FREITAS (Org.), História Social da Infância no Brasil, 2006, p. 56; M. L. MARCILIO, História social da criança abandonada, 1998. Colin Heywood tratando historicamente da infância afirmou que o infanticídio no período moderno parece ter sido raro, levando em conta os poucos casos foram julgados por tribunais na Europa. A resposta a esta “raridade”, o próprio autor identificou, ao constatar que a criminalização desta prática foi muito lentamente tratada na legislação no Ocidente. C. HEYWOOD, Uma história da Infância: da Idade Média à época contemporânea no Ocidente, 2004, p. 98-107. Sobre os abandonos e infanticídios na Europa, a sua condenação por moralistas e religiosos, cf. F. LEBRUN, A vida conjugal no Antigo Regime, s/d, p. 140-151. 192 Cf. R. P. VENÂNCIO, Famílias Abandonadas: assistência à criança de camadas populares no Rio de Janeiro e em Salvador – séculos XVIII e XIX, 1999, p. 24.

193 Vale o parêntese de que este historiador destacou ao padre Alexandre de Gusmão como o “jesuíta campeão na retórica contrária às mães descuidadas”. R. P. VENÂNCIO, Famílias Abandonadas: assistência à criança de camadas populares no Rio de Janeiro e em Salvador – séculos XVIII e XIX, 1999, 24, passim.

194Antonio Joaquim DAMÁZIO, Tombamento dos bens immoveis da Santa Casa da Misericórdia da Bahia em 1862, Bahia: Typographia de Camillo de Lellis Masson & Cia, 1862, p. 59.

as criaturas capazes de razão, que tem a luz da Fé e conhecimento do bem e do mal, que sabem das eternas penas a que se condenavam, e da glória que privavam a alma de seus filhos, e que mesmo assim enjeitavam ou matavam os seus próprios filhos. 195

Padre Alexandre de Gusmão dirigiu suas mais duras palavras de admoestação às mães. Crueldade das mães que expunham os filhinhos no risco de perecerem por falta de papa e mama, afirmou o jesuíta. Dureza de coração das mães que lançavam os infantes na rua, “& nam se lhe enternece o coraçam, & entranhas, & nam se lhe arrazam os olhos de lagrimas”. Pecado gravíssimo, redargüiu o padre, seria ainda mais o da mulher católica que tem mãos e olhos para abandonar, ou pior matar seus pequenos filhos, não atentando para a grave ofensa que fazia a Deus. 196

Dentre as causas para o enjeitamento, o jesuíta apontou a pobreza e “outros humanos respeitos”, como questões de honra e a falta de “consideraçam de Fé, & confiança em Deos”. 197 As conclusões dos historiadores Maria Luiza Marcílio e Renato Venâncio sobre a infância abandonada e a “Roda dos Expostos” confluem a esta sua opinião. Marcílio listou que as principais causas do abandono eram: (1) pobreza, (2) doença dos pais, (3) controle da família, (4) crianças doentes ou deficientes, e (5) a tentativa de ocultar a “desonra” feminina.

198 Nos dados apresentados por Venâncio para a Roda da Bahia, de 1755 a 1850, ficou

refutada a idéia corrente na historiografia de que seriam filhos ilegítimos, filhos de adultérios e de mães solteiras brancas. Apontou como possíveis fatores para o abandono, a miséria das famílias e morte dos progenitores, considerando ainda os “casos de honra”. 199

No capítulo XIII da primeira parte, padre Alexandre de Gusmão tratou da crueldade e “impiedade inhumana” dos infanticídios praticados pelos pais, e de suas danosas conseqüências a partir de alguns tenebrosos casos. Relatou o padre a história de um piedoso casal, que sendo estéril foi agraciado com um filho, que veio a ser consagrado na Ordem de São Domingos. Contudo segundo o relato do padre, como “nenhua virtude está segura”, a esposa se efeiçoou de um mancebo, de quem veio a conceber. Somando o adultério ao homicídio, a mulher matou a criança com suas próprias mãos. Vindo a falecer o marido, a mulher se entregou aos seus apetites, e tornou novamente a parir, matando também a outra criança. Morreu não cuidando em confessar-se para alcançar o perdão divino, e no mesmo momento foi sepultada nos infernos. Estando uma vez o pio e religioso filho orando pela alma

195 A. de GUSMÃO, Arte de crear bem os filhos na idade da Puericia, 1685, p. 104-105. 196 A. de GUSMÃO, Arte de crear bem os filhos na idade da Puericia, 1685, p. 97. 197 A. de GUSMÃO, Arte de crear bem os filhos na idade da Puericia, 1685, p. 99. 198M. L. MARCILIO, História social da criança abandonada, 1998, p. 257-260.

199R. P. VENÂNCIO, Famílias Abandonadas: assistência à criança de camadas populares no Rio de Janeiro e em Salvador – séculos XVIII e XIX, 1999, p. 85-94.

de sua mãe, esta lhe apareceu cercada de dois dragões, que mamavam em seus peitos com terrível tormento. Aturdido por tal cena, perguntou-lhe o filho qual tinha sido a sua “sorte”, e o que simbolizavam aqueles dragões.

Ao que respondeo a triste mãy, que ella estava condennada, por se nam aver confessado, & que aquelles dragoens eram os dous filhos, que parira, aos quaes devendo ella crear a seus peitos, matara com suas maos, & que agora lhe foram dados em tormento sem fim. 200

Outro estranhíssimo caso narrou o padre sobre a irmã do “Santo, & Apostólico Varam” São Vicente Ferreira. Forçada por um escravo negro, “atrevida, & aleivosamente”, veio esta senhora a conceber. Temendo a desonra, e a indignação de seu marido, matou o escravo e a criança com uma peçonha. Confessou arrependida o seu pecado, e morreu.

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