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3 CIDADANIA: história, conceito e perspectiva política

3.3 Bipolaridade Ideológica: uma verticalização da cidadania

Objetivamente, na perspectiva de Leite Neto (2006, p. 116), a ideia de cidadania vertical indica uma relação formal e recíproca entre o cidadão e o Estado democrático de

direito, correspondendo ao “[...] reconhecimento na nacionalidade e da legitimação do poder político. Trata-se do direito a ter direitos, isto é, de ser reconhecido primordialmente como ser humano membro de uma sociedade e de um Estado”. Partindo deste prisma, é possível inferir que tal verticalização insinua que os direitos e os deveres são ações restritas à relação mútua entre o Estado e o cidadão. Baseado nisto, a despeito de a cidadania ser considerado um direito correspondente à justiça social, sua definição no campo dos conceitos, passa a ser alvo de severas críticas.

Na perspectiva de Silva (2013), em seu artigo intitulado As interfaces de Marshall

e de Bendix em defesa da noção de cidadania e da política de assistência na contemporaneidade, o autor estabelece a ideia de cidadania a partir das formações dos

Estados modernos, e é vista como instrumentalização ideológica, fundamentada na consolidação do Estado burguês, cuja estrutura se define necessariamente por meio da dicotomia e polaridade estabelecida entre ricos e pobres.

Na esteira do pensamento de Silva (2013), podemos perceber que os direitos de cidadania propostos em lei, garantidos a partir das fundamentações teóricas e nos amparos jurídicos; foram iniciativas de cunho político-ideológicas para conformar as classes subalternas, de modo que tais conflitos não se configurassem numa revolução do proletariado. Para tanto, Silva (2013), refere-se às asseverações de Bendix (1996), no que tange à sua obra

Construção nacional e cidadania: estudos de nossa ordem social, sobre o impacto das

reivindicações dos trabalhadores europeus entre os anos finais do Século XIX e início do Século XX. Descreve:

Na Inglaterra, os protestos das classes inferiores parecem objetivar o estabelecimento da cidadania dos trabalhadores. Aqueles que contribuem para a riqueza e o bem-estar de seu país têm o direito de serem ouvidos em seus conselhos nacionais, e estão habilitados a uma posição que imponha respeito. Na Inglaterra, essas demandas nunca alcançam a culminância revolucionária que se desenvolve com mais frequência no continente europeu. (BENDIX, 1996, p. 103).

Corroborando com esta linha de interpretação acerca do direito à cidadania, Covre (2005), especifica que no início do Século XX, à medida em que eclodia a Revolução Russa em 1917, os partidos socialistas ascendiam em determinadas regiões da Europa como na Alemanha, na Itália, na Espanha e na França, onde os trabalhadores reivindicavam melhores condições de vida31. Porém, destacamos que essa classe trabalhadora se revelava cada vez

31 Uma série de eventos políticos na Rússia, que, após a eliminação da autocracia russa, e depois do Governo

Provisório (Duma), resultou no estabelecimento do poder soviético sob o controle do partido bolchevique. O resultado desse processo foi a criação da União Soviética, que durou até 1991.

mais, como força de caráter político, apoiando-se em partidos e com o objetivo revolucionário de implantar uma sociedade socialista.

Assim, historicamente após a II Guerra Mundial (1939-1945), os tecnocratas capitalistas desenvolveram um tipo de visão ou consciência de mundo que foi chamado pelos socialistas de ideologia “[...] pós-liberal do Estado do Bem-Estar, com sua proposta „socializante‟ e um aceno a uma cidadania, a de atendimento a todos os direitos sociais – salário, saúde, transporte, educação, habitação, seguro desemprego, lazer, etc.”. (COVRE, 2005, p. 43). Vale ressaltar que a ideia de Estado de Bem-Estar ou Welfare state, de acordo com Bobbio (2010) é caracterizado como assistencial. Assim, pode ser definido, à primeira análise, como aquele Estado que garante tipos mínimos de renda, alimentação, saúde, habitação, educação, assegurados não como caridade, mas como direito político. Retomando a ideia de Covre (2005, p. 45), temos o seguinte esclarecimento:

Mas por que essa proposta “socializante”? Trata-se de enfrentar o avanço da organização operária – que poderia implantar uma sociedade mais igualitária – e do socialismo do Leste, então identificado como primeira ameaça. Trata-se de desmobilizar esses trabalhadores e de conformá-los ao capitalismo. Elabora-se um nível de cidadania que avança, mas também desmobiliza.

Outra crítica que incide sobre o sentido de cidadania vertical é quando a mesma não transpõe a esfera inflexível da escrita – letra fria –, ou da aprovação desta em todas as instâncias do poder público de demandas individuais. Entretanto, tal inflexibilidade pode, amiúde, ser obliterada pelos intermináveis processos no campo burocrático. Ora, se num primeiro momento a obtenção de direitos pode acomodar o cidadão, mantendo, porém, a ordem vigente; por outro lado, a legitimação de direitos pode não garantir, numa perspectiva prática, o objeto deste mesmo direito. Cabe ressaltar nessa digressão, que a burocracia é qualificada aqui como um fator que desestimula o cidadão quando da busca e usufruto dos direitos já assegurados por lei.

3.3.1 Entre o Estado e o cidadão

O pesquisador francês Bernard Charlot (2013, p. 273), ao falar discorrer sobre a conquista da liberdade num contexto de privação de cidadania, especifica que a liberdade “[...] nas sociedades que sofrem uma ditadura militar ou partidária, permanece uma luta política pela liberdade. A conquista desta, porém, não traz de volta a lógica da cidadania”. Entretanto, nesse contexto que coloca no mesmo plano o Estado e o cidadão, vale considerar

que as cidadanias têm uma efetivação específica de acordo com a história de cada povo ou nação.

Quando levamos em consideração o caráter memorialista no plano da experiência cidadã, face aos processos burocráticos, podemos inferir que na maioria das vezes, os direitos do cidadão são conquistados paulatinamente mediante sucessivos embates reivindicatórios, – tal como se deu entre os plebeus e os patrícios durante o Período Republicano da Roma Antiga.

Também é importante destacar que a luta por direitos – já garantidos –, corresponde em si, ao exercício da cidadania. Contudo, entendemos que não se constitui como objetivo principal, lutar pela cidadania depois de se haver constituído o cidadão; visto que tal condição pressupõe, mediante as leis, a aquisição e o usufruto de direitos. Portanto, alienar o cidadão, através do abuso velado do poder ou pelos processos burocráticos sobrevindo a este, sentimentos de desânimo e consequente privação de seus direitos, denuncia um suposto Estado da „ditadura burocrática‟ sob a máscara de Estado Democrático de Direito.

Dentro dessa perspectiva, entendemos que a crítica feita aos Estados comandados por partidos com concepções capitalistas32 pode recair sobre aqueles que são liderados pelas mais variadas vertentes do pensamento de base socialista33. Pois, aparentemente, pouco se satisfaz, quando por meio das reivindicações, a classe trabalhadora – no contexto do capitalismo –, consegue ampliar e adquirir os seus direitos. Ora, nesse sentido, entendemos que se as lutas de classes não resultarem na conquista do poder de governança, seja por meio de eleições ou até mesmo através da revolução armada, todo direito alcançado, será visto como conquista decorrente de uma estratégia ideológica, e, portanto, sem grandes significados.

Neste caso, inferimos que aquele partido político cuja convicção se fundamenta no discurso de ser o representante das classes sociais desfavorecidas, torna iminente uma

32 Tradicionalmente o capitalismo parte da concepção de que a propriedade é a recompensa final do trabalho.

Nesse sentido, quanto mais se produz, maior será o acúmulo das riquezas. Sendo tais riquezas convencionado em valor monetário torna ilimitado o acúmulo de propriedade identificado agora como lucro. No plano discursivo tal concepção é justificada mediante as ideias de liberdade e do direito à propriedade. Em linhas gerais, segundo Marx (1818-1883) esse lucro só é possível quando o trabalhador recebe abaixo daquilo que deveria receber. Tal relação, portanto, é responsável pela manutenção da fronteira entre ricos e pobres. Cf. (BOBBIO, 2010).

33 “Em geral, o Socialismo tem sido historicamente definido como programa político das classes trabalhadoras

que se foram formando durante a Revolução Industrial. A base comum das múltiplas variantes do Socialismo pode ser identificada na transformação substancial do ordenamento jurídico e econômico fundado na propriedade privada dos meios de produção e troca, numa organização social na qual: a) o direito de propriedade seja fortemente limitado; b) os principais recursos econômicos estejam sob controle das classes trabalhadoras; c) sua gestão tenha por objetivo promover a igualdade social (e não somente jurídica ou política) através da intervenção dos poderes públicos.” (BOBBIO, 2010, p. 1196).

ditadura político-ideológica, uma vez que tal partido pode se utilizar da própria categoria da qual se opõe, condicionando, – através do assistencialismo, por exemplo –, o pensamento crítico dos cidadãos. Ou seja, o discurso político ao afirmar ser contrário ao estado de pobreza, utiliza-se desse mesmo estado de miséria para se promover e se perpetuar no poder, fomentando e consolidando uma ausência de reflexão crítica do cidadão. Esse prejuízo ao senso crítico é, em si, a perda embrionária da liberdade, uma vez que compromete as condições de se pensar a política, a educação e a própria cidadania.

Portanto, percebemos que visto exclusivamente pelo prisma da política partidária, a noção de direitos e deveres se torna produto de uma estrutura político-ideológica, sendo assimilada apenas como institucionalidade nacional-partidária, externa ao indivíduo, e, portanto, tornando o respectivo cidadão econômica e mentalmente dependente do Estado – a exemplo de programas sociais de caráter assistencialista – e de suas leis.

Com base nessas percepções, busca-se as condições teóricas de superação da cidadania verticalizada mediante a fundamentação do Estado-cidadão, isto é, o Estado sujeito às inclemências da letra fria e aos princípios dos direitos e deveres que regem ou devem reger as relações horizontais de cidadão para cidadão.

Talvez a compreensão do Estado rousseauniano como expressão máxima do bem comum seja a fundamentação teórica que mais se aproxima das condições ideais na formação do Estado-cidadão, tema sobre o qual abordaremos no tópico seguinte. Porém, antes de analisarmos a proposta central da filosofia política de Rousseau, faremos uma leitura específica e comparativa – tomando como referência, a análise do sociólogo Santos (2011) – entre as principais vertentes basilares do contratualismo moderno.

Numa acepção restrita, o contratualismo pode ser compreendido como uma espécie de doutrina ou corrente filosófica que floresceu na Europa entre o início do século XVII e o final do século XVIII. Na esteira do pensamento de Bobbio (2010, p. 272), podemos destacar que o contratualismo abrange todas aquelas “[...] teorias políticas que veem a origem da sociedade e o fundamento do poder político (chamado, de quando em quando, potestas,

imperium, Governo, soberania, Estado) num contrato, isto é, num acordo tácito ou expresso

entre a maioria dos indivíduos”. Trata-se, portanto, de uma espécie de acordo que marcaria o fim do chamado estado natural e, consequentemente, o início do estado social e político.