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A BOA-FÉ NA EXECUÇÃO DOS TRATADOS INTERNACIONAIS CONTRA A BITRIBUTAÇÃO E O TREATY DODGING

Em adição aos argumentos expendidos ao longo do presente artigo, é preciso pontuar o efeito significativo que as sucessivas alterações legislativas que culminaram com a instituição da Cide-royalties e o alargamento da sua base de cálculo, em contrapartida da redução da alíquota do imposto de renda, possuem para fins de descaracterização da boa-fé no cumprimento das disposições dos tratados que foram assinados pelo Brasil antes da instituição da referida contribuição interventiva.

Nesse ponto, o dever de boa-fé ou princípio da boa-fé65 está intrinsecamente vinculado à interpretação dos tratados internacionais e previsto no próprio art. 31 da Convenção de Viena, que expressamente menciona a boa-fé como um vetor interpretativo dos acordos firmados.

De fato, a boa-fé é um conceito amplo que vai muito além do princípio do pacta sunt servanda, podendo ser divido, como critério hermenêutico, em dois

65 Como se refere Sergio André Rocha in Tributação Internacional. São Paulo: Quartier Latin. 2013.

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aspectos: um objetivo e um subjetivo, como separa Elisabeth Zoller, em estudo específico sobre o instituto no Direito Internacional Público.66

Sob o prisma subjetivo, a autora pontua que a boa-fé determinaria a busca pela intenção das partes contratantes, que só estariam obrigadas nos limites do seu consentimento. Sob o prisma objetivo, a boa-fé demandaria uma interpretação razoável do tratado, adaptando-se a interpretação das suas disposições com o passar do tempo.

Sérgio André Rocha resume o princípio da boa-fé como determinante aos Estados que, na construção do sentido do texto dos tratados, não poderiam buscar eximir-se do cumprimento das obrigações assumidas e nem atribuir à outra parte obrigações que não foram pactuadas.67

É justamente nesse contexto que se insere a figura do treaty dodging ou treaty circumvention,6869 entendida como uma forma de um Estado contratante driblar as disposições dos tratados, através da manipulação da sua legislação doméstica, cuja aplicação ele mesmo requer perante as suas Cortes internas. Na lição de Klaus Vogel:

It should be noted that states, too, can circumvent tax treaties. They can do so by drafting laws that according to their language try to avoid certain treaty situations, though in substance the treaty situation is present, because they want to avoid certain consequences which they may consider undesirable.

Or, conversely, they may draft laws that artificially create treaty situations which the law-making state considers desirable. By such legislation the material content of a treaty, though not its language, may be infringed. The

66 ZOLLER, Elisabeth apud ROCHA, Sérgio André. Ibid. 67 Ibid.

KLAUS, Vogel. Double Tax Treaties and Their Interpretation, 4 Int'l Tax & Bus. Law. 1 (1986). p. 83/85. Disponível em: http://scholarship.law.berkeley.edu/bjil/vol4/iss1/1. Acesso em 05.05.15.

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legal consequences of such "treaty circumvention" by states cannot be basically different from those of tax avoidance by taxpayers.70

Nesse aspecto, difere-se do treaty override, pois não representa uma violação direta ao texto do tratado, mas ao seu conteúdo material, desrespeitando, assim, o espírito do acordo e a boa-fé das partes. É a típica forma de legislação abusiva, editada por um dos Estados contratantes, que infringe a finalidade dos tratados contra a bitributação, embora não contrarie o seu texto expressamente.

Como destaca Igor Mauler Santiago, ao tratar da interpretação dinâmica das convenções tributárias:

A primazia dada, para efeito de aplicação do art. 23 do Modelo/IRC, à qualificação feita, com base em suas próprias leis, pelo Estado da Fonte, põe em situação de fragilidade o Estado da residência, na hipótese, com vistas a aumentar às expensas deste a sua arrecadação, decidir alargar as definições internas das categorias convencionais que pode tributar (com ou sem exclusividade), destruindo o equilíbrio estabelecido no momento da negociação do tratado. A esta conduta, que não se confunde com o treaty override (já que não se trata de contrariar o texto do tratado, mas apenas de manipular as leis cuja aplicação ele mesmo requer) tem se dado o nome de treaty dodging ou treaty circumvention.

O instituto, embora impreciso em seus contornos, que dependem da definição do patamar a partir do qual uma modificação legislativa passa a ser definível como abusiva, funciona como um freio à interpretação ambulatória das convenções tributárias.71

É possível aqui traçar um paralelo entre esse abuso na estruturação da legislação interna pelo Estado com a desconsideração de condutas elisivas dos contribuintes, na medida em que, se não é lícita a prática de adoção de

70 KLAUS, Vogel. Op. Cit. p. 84/84. 71 SANTIAGO, Igor Mauler. Op. Cit.

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planejamentos tributários abusivos, com o único fim de afastar ou reduzir a obrigação tributária, de igual forma, não é lícito ao Estado contratante manipular a sua legislação interna para se furtar ao cumprimento do conteúdo material dos tratados que assinou.

O planejamento abusivo deve ser coibido tanto se praticado pelos contribuintes quanto se praticado pelos Estados contratantes a nível internacional.

Nesse contexto, as sucessivas manobras legislativas que resultaram na instituição da Cide-royalties representam um exemplo típico de treaty dodging, pois a tentativa de retirá-las do âmbito de aplicação dos tratados firmados com o Brasil anteriormente à sua instituição fere diretamente o conteúdo desses acordos, posto que, na prática, implica na dupla tributação das remessas de pagamentos ao exterior.

E mais, altera as circunstâncias vigentes no momento da celebração dos tratados, sem a anuência prévia das partes contratantes, impondo-lhes, assim, um ônus que não foi previamente deliberado, em clara afronta ao princípio da boa-fé.

Diante disso, como bem destaca Igor Mauler Santiago, seria o caso de uma solução negocial entre as partes contratantes ou, no limite, a denúncia do tratado.72 Inclusive, especula-se que a Alemanha teria denunciado o Tratado com o Brasil, dentre outras razões, pela instituição da Cide-royalties, que não estaria contemplada pelo acordo entre os dois países.73

Portanto, além do exposto nos itens 2 e 3, a boa-fé, como elemento integrante da atividade interpretativa, demanda que, para os tratados assinados antes da instituição da Cide-royalties (29.12.2000) – que representam a maioria, diga-se -,74 seja reconhecida a abrangência dessas contribuições ao lado do imposto sobre a renda.

72 Ibid.

73 Disponível em: http://www.ibdt.com.br/2005/integra_11082005.htm. Acesso em 05.05.15.

74 Acordos com: Argentina, Áustria, Bélgica, Canadá, China, Coréia, Dinamarca, Equador, Espanha,

Filipinas, Finlândia, França, Hungria, Índia, Itália, Japão, Luxemburgo, Noruega, Países Baixos, República Tcheca e Slovaca, Suécia.

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