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Contexto

Enquanto mapeava a situação dos afro-brasileiros para O Fio da Memória, Eduardo Coutinho filmou pessoas que viviam da coleta em um vazadouro de lixo na periferia da cidade do Rio de Janeiro. Passou poucas horas ali e o resultado sequer entrou na montagem final. Mas ele saiu impressionado – não tanto pelas imagens dantescas daquela gente a escalar montanhas de detritos, mas com a vida aparentemente comum que eram capazes de ali levar. Crianças jogavam bola, mulheres cozinhavam, tudo como numa comunidade qualquer. Coutinho prometeu-se a si mesmo fazer um filme sobre o chamado “lixão”. Os “lixões” existem na maioria dos municípios brasileiros e, quanto maior for a cidade, mais “espetaculares” são os seus contornos. Geralmente ficam distantes dos bairros de classe média e alta, assim como das atrações turísticas. São o anti-cartão postal de um lugar como o Rio. Não têm a riqueza do lixo de uma grande cidade americana ou japonesa, mas ainda assim um contingente de despossuídos retira dali a sua sobrevivência. A cada manhã, eles chegam com seus grandes sacos, bacias plásticas ou carrinhos de mão, à espera das novidades trazidas pelos caminhões da limpeza urbana e dos supermercados. Controlando a disputa nos limites de uma certa civilidade, eles se lançam à cata de tudo o que ainda possa representar algum valor comercial: lataria, peças e objetos de metal, papelão, plástico etc, que serão revendidos por intermediários a indústrias de reciclagem.

Os catadores do “lixão” também fazem uso de refugos alimentares, seja para servir a suas criações de porcos, seja para consumir eles mesmos. Em função disso, são geralmente considerados como a escala mais inferior da organização social, o último grau da degradação humana. “O lixo é o final do serviço. E o príncípio...”, diz um dos catadores entrevistados por Coutinho.

Dois anos antes de Boca de Lixo, um curta-metragem de Jorge Furtado, Ilha das Flores (hoje um clássico brasileiro) havia tematizado essa nivelação entre homens e animais, num misto de documentário e ensaio ficcional. Através de um raciocínio dedutivo em cadeia, o filme de Furtado levava à conclusão de que, num certo depósito de lixo do estado do Rio Grande do Sul, os homens pobres situavam-se em escala de prioridade inferior mesmo à dos porcos.

Boca de Lixo viria a ser uma antítese da constatação/denúncia contida em Ilha das Flores.

Coutinho foi ao “lixão” de Itaoca, no município de São Gonçalo, a 40 km do centro do Rio, para resgatar a humanidade dos seus freqüentadores. O documentário procurava,

explicitamente, “afastar o estigma que envolve os catadores – ‘comedores de carniça’, segundo a visão genérica da sociedade – e ao mesmo tempo inserir seu trabalho como uma estratégia de sobrevivência indispensável nas circunstâncias sociais do Brasil de hoje”. O depósito de Itaoca, comumente chamado de “Boca de Lixo”, era mantido ilegalmente pela Prefeitura junto a uma área de preservação ambiental muito próxima da Baía de

Guanabara. Aos prejuízos ambientais somava-se um grave risco para a saúde das muitas famílias que dali retiravam o seu sustento, haja vista a concentração de resíduos químicos perigosos e de lixo hospitalar.

Este foi o primeiro trabalho autoral de Coutinho sob os auspícios da organização não governamental CECIP – Centro de Criação de Imagem Popular.

Análise

Depois do interregno de hesitações representado por O Fio da Memória, Eduardo Coutinho retoma, com Boca de Lixo, o prazer da aventura documental. Ele chegou com sua equipe ao “lixão” de Itaoca desprovido de qualquer pesquisa prévia, imbuído apenas da vontade de alcançar a intimidade daquele grupo de excluídos entre excluídos. O primeiro teste – e um dos mais duros da carreira do diretor – foi vencer a resistência de boa parte dos catadores a botar a cara na frente da câmera. Os primeiros dos dez dias de gravação foram gastos numa árdua e gradual conquista de confiança. Logo no início do média-metragem, vemos um bloco de tomadas em que pessoas fogem do campo visual, tapam o rosto ou mandam a câmera desviar-se para outro lado. Demonstram não apenas ter consciência do estigma que as acompanha, mas também que o preconceito grassa entre as suas próprias vítimas. Os catadores acanham-se com sua condição, muito embora insistam em reafirmar que sua atividade é um trabalho como outro qualquer. A exemplo das rápidas entrevistas iniciais de

Santa Marta: Duas Semanas no Morro, Coutinho trabalha com o horizonte de um mundo

de trabalhadores. Ex-domésticas, ex-lavradores e ex-operários estão unificados numa nova profissão. Orgulham-se de não serem nem vagabundos, nem ladrões, o que os faz subir alguns degraus no organograma social. A pessoas envergonhadas da própria imagem o documentarista oferece fotografias impressas em papel, imagens retiradas do próprio vídeo que está sendo feito. Quando uns identificam os outros pelos nomes, é a idéia de

comunidade que se faz presente, em toda sua espontaneidade. Coutinho leva um aparelho de televisão ao vazadouro para exibir o vídeo a seus participantes, embora não explore as reações como fez em Cabra Marcado para Morrer.

As câmeras não se desviam dos aspectos naturalmente sórdidos: a matéria em

decomposição, as mãos que chafurdam nos detritos, a proximidade entre homens e urubus, gente que come ali mesmo o que encontra de aproveitável. Na verdade, não encontram grande coisa, pois, como diz alguém a certa altura, o lixo que chega ali já foi “catado” em algum local intermediário. Mesmo assim, uma das mulheres entrevistadas critica a suposta preguiça dos catadores, que prefeririam a comida “fácil” da Boca de Lixo a um emprego mais convencional. Uma mulher diz que preferia estar trabalhando como empregada numa casa de família. Outra afirma exatamente o contrário.

No olhar de Coutinho, porém, prevalece a disposição restauradora. Ele não quer mostrar o inferno, mas revelar a humanidade de uma gente vista usualmente como mero emblema social. Acaba encontrando manifestações de alegria relacionadas ao lixo (uma mulher admite que fica triste quando chega no seu barraco e conta que muitos não resistem ao desejo de passear aos domingos no próprio “lixão”). Encontra sinais de solidariedade

típicos de aglomerações populares. Topa com exemplos de profissionalismo compenetrado, como o de Nirinha, uma espécie de catadora-padrão que já conseguiu ampliar seus ganhos com a eliminação de intermediários. Conversa com famílias relativamente bem

constituídas, para quem viver do lixo não significa deixar de viver.

O professor estadunidense Robert Stam, atento estudioso do cinema moderno brasileiro, verificou que “se O Fio da Memória vê o lixo como recurso artístico, Boca de Lixo revela sua dimensão humano-existencial”. Para Stam, “em vez de fazer uma abordagem

miserabilista, Coutinho nos mostra pessoas inventivas, irônicas e críticas, que apontam ao diretor o que olhar e lhe dizem como interpretar o que vê.”vii

Apesar da relativa acentralidade do documentário, a catadora Jurema e o velho Enock destacam-se como as personagens mais ricas de Boca de Lixo. Enock, dono de uma barba branca, longa e hirsuta que lhe valeu o apelido de “Papai Noel”, tem a figura de um patriarca do “lixão”. É ele quem oferece a citada reflexão sobre o lixo como fim e

recomeço de um interminável ciclo de consumo. Através de sua fala, é possível vislumbrar, mesmo desse posto socialmente remoto, o discurso do filme sobre o funcionamento da globalização.

Jurema, por sua vez, é uma autêntica cria do lugar. Ali nasceu, casou-se e cria seus sete filhos. Naturalmente, zela pela imagem do seu hábitat. Quando Coutinho tenta aproximar- se pela primeira vez, ela reage indignada. Não quer que “a televisão” espalhe a notícia de que os catadores se alimentam do lixo. “A comida é para os porcos! Aqui todo mundo tem porco!”, explica, aos gritos. Mais adiante, Jurema enfim aceita receber a equipe em sua casa. Recorda-se do namoro-relâmpago e da união com seu companheiro, anuncia a intenção de fazer mais cinco filhos entre uma e outra briga conjugal. No fim da conversa, acaba admitindo que o refugo dos supermercados vai, sim, parar nas suas panelas. Jurema foi um dos que mais resistiram ao cerco do perseverante Coutinho. A entrevista, nesses casos, é bem mais que veículo de informação. É constituição de uma dramaturgia profundamente reveladora, eivada das tensões do encontro, atravessada pelas condições ora do flagrante bruto, ora de uma postura mais intimista ou formal. Para cada um desses momentos, o resultado é particular. A entrevista torna-se um fato eminentemente cinematográfico, em lugar de quimérica reprodução do real.

O processo de documentação integra organicamente o trabalho, seja através da presença da equipe, aqui e ali revelada, seja do ritmo ditado pelas perguntas de Coutinho. Da mesma forma, a trilha musical do maestro Tim Rescala opera com ruídos do “lixão” sampleados, como se o próprio rumor ambiente vez por outra se organizasse em música.

Gradativamente, Coutinho vai reconfigurando a estrutura de seus filmes, deixando de pautar-se por temas e abrindo-se ao predomínio das personagens, com sua multiplicidade de histórias, experiências e fabulações. Boca de Lixo parte do grau zero do documentárioviii para estabelecer experiências únicas através da insistência, da simplicidade e de sutis estratégias de aproximação. Este, cada vez mais, vai passando a ser o seu método.

Boca de Lixo

Brasil, 1992, cor, vídeo, 50 minutos Direção: Eduardo Coutinho

Produção: CECIP

Fotografia: Breno Silveira

Fotografia adicional: Luiz Augusto Tigu, Estevão Pantoja Edição: Pablo Pessanha, Thereza Jessouroun

Som: Flavio Protásio Ceccon, Antonio Gomes Som adicional: Aloysio Compasso

Produção executiva: Thereza Jessouroun Produção de campo: Alvarina Souza Silva Música: Tim Rescala

Distribuição: CECIP Premiação:

- Melhor filme – Rencontres des Cinémas d’Amérique Latine, Toulouse, 1993 - Grande Prêmio – Video-Fil-Video, Guadalajara, 1993

- Prêmio Contribuição Jornalística – Festival de Leipzig, 1993

- Margarida de Prata – Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, 1993

No documento Eduardo Coutinho o Homem Que Caiu Na Real (páginas 54-58)