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Os Romeiros do Padre Cícero

No documento Eduardo Coutinho o Homem Que Caiu Na Real (páginas 58-61)

Contexto

Desde que as equipes do produtor Thomaz Farkas redescobriram o Nordeste brasileiro para o cinema moderno, ainda na década de 1960, a figura do Padre Cícero Romão (1844-1934) tornou-se recorrente no documentário. Eduardo Escorel, Geraldo Sarno e Rosemberg Cariry foram alguns documentaristas que já enfocaram a devoção ao maior santo extra-oficial brasileiro. No cinema de ficção, ele foi vivido pelos atores Jofre Soares e José Dumont. Em 1994, quando se comemoravam os 150 anos de nascimento e 60 da morte de Padre Cícero, Eduardo Coutinho encarregou-se de dirigir este documentário de média-metragem sobre as romarias que anualmente se deslocam em direção à cidade de Juazeiro do Norte, no estado do Ceará, movimentando cerca de 1 milhão de pessoas. A produção era do CECIP – Centro de Criação de Imagem Popular – para a televisão alemã ZDF, com a participação da TV Viva, produtora que há mais de 20 anos desenvolve um trabalho de televisão de rua em Recife, capital do estado nordestino de Pernambuco.

Quando o religioso instalou-se em Juazeiro, em 1872, este não passava de um minúsculo povoado com cerca de 30 casas. Um suposto fenômeno ocorrido em 1889 – o sangue de Cristo teria escorrido da boca de uma beata que acabava de receber a comunhão das mãos de Cícero – selou a sua reputação de milagreiro e deu origem a um culto de proporções avassaladoras. Por sustentar a versão do milagre, o padre foi destituído de suas ordens e proibido de rezar missas e orientar fiéis. Durante certo tempo, a Igreja chegou a vetar o batismo de crianças com o nome de Cícero. Nada disso, porém, impediu que o povo nordestino o elegesse padrinho de todos (“Padim Ciço” é a forma mais popular de chamá- lo), uma espécie de advogado e conselheiro, fonte de esperanças para os enfermos e os necessitados.

Bajulado por governantes, poderosos e mesmo por cangaceiros, Cícero Romão foi eleito prefeito de Juazeiro do Norte e vice-governador do Ceará. As doações populares o fizeram milionário, condição fundamental para as muitas caridades que ajudaram a celebrizá-lo. A devoção continua até hoje. Juazeiro desenvolveu-se num imenso mercado pop e religioso à sombra do mito, que dá nome a ruas, estabelecimentos comerciais, folhetos de cordel (narrativas versificadas de grande apelo popular) e toda sorte de memorabilia sacra. Padre Cícero, entretanto, continua banido da Igreja oficial, apesar de muitos prelados famosos já admitirem o contrário. Uma comissão ainda se bate pela sua reabilitação histórico-eclesial, cujo processo será em breve encaminhado ao Vaticano.

Análise

Os Romeiros do Padre Cícero é um documentário reverente à reverência. Coutinho não

completa revelia da hierarquia católica. Sua postura é de respeito e curiosidade. Descrição e discrição. Um argumento se esboça aqui e ali, como nas tomadas de imagens religiosas e astros pop justapostas nas barracas do mercado popular; ou no contraponto entre a pregação de um bispo a favor da reabilitação de Cícero e as declarações de uma filha de romeiros a respeito da perseguição movida pela Igreja no início do século.

O tom predominante, porém, é o da reportagem panorâmica e didática, bem ao gosto da platéia estrangeira a que o vídeo prioritariamente se destinava. Isso não significa que se ressaltem aspectos exóticos ou bárbaros, tão freqüentemente associados a esse tipo de produção. A sobriedade é um critério de escolha e de apresentação. O próprio Coutinho faz a narração em off, mas sem jamais fazer-se presente dentro do quadro. Curiosamente, a equipe que aparece numa das cenas, com claquete e tudo, é a do diretor Wolney Oliveira durante as filmagens de Milagre em Juazeiro, misto de documentário e ficção que só seria lançado em 1999.

O desenvolvimento de personagens apenas se esboça em torno de uma família de romeiros que parte do estado de Alagoas numa viagem de 700 km em pau-de-arara (caminhão de transporte de gado improvisado para carregar passageiros) rumo a Juazeiro.

Acompanhamos algumas refeições do grupo, a chegada e a partida para a viagem de volta, mas de maneira insuficiente para constituir uma história particular dentro do painel geral. O que importa, aqui, é a visão de conjunto: a cidade transformada num grande templo ao ar livre e batizada de “Nova Jerusalém”, as multidões acenando chapéus ou reverenciando com o tato as inúmeras imagens do “santo”, os salões paroquiais revestidos de ex-votos. Importam as referências fervorosas de romeiros anônimos, que sem cerimônia integram o “Padim Ciço” à Santíssima Trindade e reconhecem nele uma identidade local, ao contrário dos santos europeus que dominam a fé católica. Importam os detalhes do fetichismo religioso: a adoração dos fragmentos da batina e da barba de Cícero, da cama onde ele dormia, das estátuas de onde emana um carisma poderoso.

O caráter legitimamente popular e sem intermediações do culto ao Padre Cícero o difere de outras manifestações de fé mais institucionalizadas pelas várias Igrejas no Brasil. Coutinho recolhe flashes dessa devoção, expressos no canto de um velho tocador de rabeca, na pregação exaltada do penitente, na crença nem tão convicta da alagoana de que o “Padim” iria voltar à vida ainda nos anos 1990.

Projeto, sem dúvida, menor na filmografia do cineasta, Os Romeiros do Padre Cícero tem o valor de posicioná-lo para a grande revelação de Santo Forte, chave de entrada para o trecho mais maduro e admirável de seu itinerário.

Os Romeiros do Padre Cícero

Brasil, 1994, cor, vídeo, 37 minutos Direção: Eduardo Coutinho

Produção: CECIP para a ZDF.

Câmera: Mario Ferreira, Nilton Pereira Edição: Pablo Pessanha

Som: Paulo Ricardo Nunes, Alan Schmidtbauer Produção executiva: Thereza Jessouroun Música: Tim Rescala

No documento Eduardo Coutinho o Homem Que Caiu Na Real (páginas 58-61)