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II. Histórias da meia-noite: a face oculta da verdade

1. As bodas de Luís Duarte

O discurso inicia em uma “manhã de um sábado, 25 de abril” (p.191), dia em que se preparava algo importante pela agitação das personagens. O narrador não diz o que é, mas pelo título sabemos tratar-se dos preparativos de um casamento. A explicitação da data é importante para o processo de refiguração do sentido, pois a partir dessa marcação temporal percebemos, no final da narrativa, que Carlota casara- se grávida.

Como em D. Casmurro, o enunciador refere-se a duas gravuras que estavam sendo colocadas na parede por José Lemos, as quais trazem a morte como tema: “Morte de Sardanapalo” e a “Execução de Maria Stuart” (p.192). A utilização sugestiva desses quadros fúnebres aponta para uma forma de status social, afinal como diz o dono da casa “que tinha sido membro de uma sociedade literária” (p.192), aquelas gravuras faziam parte da história, por isso era importante exibi-las (tanto na diegese quanto na própria composição da narrativa). Podem também representar uma alegoria ao casamento. Isto é, as núpcias seriam uma espécie de morte pela anulação do eu e pela entrada em outro tipo de situação. O que não podemos deixar de observar é o trocadilho feito pelo sujeito da enunciação quando José Lemos diz à mulher que a “história está bem em todas as famílias”: “Podia acrescentar que nem todas as famílias estão bem na história” (p.192). O que quer dizer o narrador com essa ironia? Será que é uma crítica àquela família específica ou à sociedade em geral?

A focalização externa da filha mais velha também gera possibilidades semânticas para o leitor. Afinal, apesar de ser a noiva, não parecia feliz com o matrimônio. Estava pálida e tinha tido “uma insônia terrível” (p.192). O verbo “estava” sugere que ela não tinha como característica fixa a palidez, apenas estava naquele momento ou dia. Além disso, a falta de sono também não era comum: “doença de que até então não padecera nunca. Há doenças assim” (p.192). Portanto, o que teria acontecido a ela para causar tal estado? Esse efeito suspensivo é, tecnicamente, causado pela paralipse.

A focalização dos irmãos da noiva carrega um tom irônico: “o Antonico era a miniatura do Rodrigo; distinguiam-se ambos por uma notável preguiça (...)” (p.192). Como notamos, o sujeito da enunciação continua ridicularizando a futilidade ostentada pelo dinheiro. O despreparo para assumir a vida é assunto de alguns contos do primeiro livro e repete-se nesse.

A conversa entre D. Beatriz e Carlota fornece pistas interessantes. A mãe assume a função de ativar na filha a consciência das “responsabilidades gravíssimas” de uma mulher casada. Durante o diálogo, D. Beatriz cala-se repentinamente e é com uma analepse que tomamos conhecimento do discurso arranjado: “(...) se a noiva de Luís Duarte tivesse espiado três dias antes pela fechadura do gabinete de seu pai, adivinharia que D. Beatriz recitava um discurso composto por José Lemos, e que o silêncio era simplesmente um eclipse de memória” (p.193). O pai da noiva não escapa à ironia do narrador heterodiegético: ao revelar que foi ele o autor do discurso decorado por D. Beatriz, não só critica a mãe, que deveria ser mais afetiva e falar à filha espontaneamente, mas também José Lemos, que se achava superior pelos seus “conhecimentos” literários.

Em alguns textos machadianos há a presença de personagens que desempenham um papel social, como o cônego Roxo, em “D. Benedita”, que nas festas cuidava do peru, e aqui, nesse conto, o Tenente Porfírio, “tipo de orador de sobremesa” (p.194). Essas personagens são como parasitas que agem para se tornarem necessárias, intenção que não escapa à captação pelo olhar do narrador: “(...) o bom homem, – se bem falava, melhor comia. De maneira que, bem pesadas as cousas, o discurso valia o jantar” (p.194).

Do ponto de vista da temporalidade, além de uma elipse sem grandes implicações retóricas, ocorre um recuo temporal para mostrar a discussão em torno do horário do casamento na Igreja, se o mesmo seria antes ou depois do almoço: “Foi grande assunto de debate nos três dias anteriores ao dia das bodas” (p.194). Essa analepse mostra a futilidade dos actantes, ligados à superficialidade, à aparência, como se o casamento parecesse mais uma festa circense do que o começo de uma vida nova. Além disso, a focalização externa dos comportamentos das personagens revela como tudo parece se arranjar às pressas, até mesmo o casamento, idéia que irrompe sem o planejamento pela família. Isso se evidencia quando José Lemos pergunta se todos os convites foram entregues (o que permite pensar que foram distribuídos recentemente) às pessoas que “deviam assistir à festa”. Outros fatores que reforçam esse aspecto são: a compra das luvas da esposa e das filhas; a encomenda dos sorvetes e vinhos feita no dia do evento; a indecisão, três dias antes quanto ao matrimônio ser anterior ou posterior ao almoço. Tudo isso, enfim, são dados sugestivos, afinal haveria motivo para os noivos estarem se casando às pressas? Questionamento possibilitado pelo próprio procedimento enunciativo, além de tomarmos contato com aspectos que preparam o final do discurso. Ou seja, o mal estar da noiva, o fato de nem toda família estar bem na história, os preparativos aparentemente atrasados, sugerem o casamento urgente pela gravidez da noiva.

A imparcialidade esperada quando a voz narrativa é heterodiegética acontece parcialmente nesse conto. Por um lado, o leitor atento percebe que há informações encobertas pelo enunciador, por outro, o narrador parece não ter simpatia pelas personagens que são constantemente ridicularizadas: “A cabeça de Justiniano Vilela, – se se pode chamar cabeça a uma jaca metida numa gravata de cinco voltas, – era um exemplo da prodigalidade da natureza quando quer fazer cabeças grandes” (p.194).

O sujeito da enunciação vai formando uma galeria de tipos em que a aparência vale mais do que qualquer outra coisa. Manter-se bem ao olhar alheio parece ser o objetivo dessas personagens. É o que pode ser notado no Dr. Valença, com sua insistência em manter o porte altivo para conseguir respeito e distinção: “Compreendeu este advogado (...) que a primeira condição para merecer a consideração dos outros era ser grave (...)” (p.195). Estamos, assim, diante de alguns

aspectos que compõem o projeto estético de Machado, sendo constantes em suas diversas obras. A preocupação com a aparência, a máscara, por exemplo, já existe nesses textos iniciais e será retomada posteriormente com maior refinamento. Nesse sentido, o conto “O espelho” é exemplar. No conto em análise, para enriquecer essa necessidade de manter a aparência, o sujeito da enunciação utiliza a ironia, o que pode ser notado no trecho em que ele fala da “importância” de se manter a máscara para encobrir a fragilidade do que há por baixo dela: “salva do exame a carga que cobre” (p.195).

Bosi, em O enigma do olhar (1999), confirma a transformação referente a esse assunto: “Embora a consciência da máscara e do jogo instituído não se mostre tão aguda nos primeiros contos, ela seguramente cresceu dos Contos fluminenses para as Histórias da meia-noite” (p.81). Portanto, partindo do que diz o crítico, percebemos que nesse conto um recurso retórico determinante na arquitetura do enunciado é a ironia. Ou seja, há uma intensificação em relação a esse procedimento que mostra com maior força a utilização da máscara social.

Na continuidade do conto, os convidados vão chegando, mas o noivo não. Como a narrativa segue linearmente, o leitor pode acreditar que Luís Duarte poderia ter desistido de casar-se. Porém, com o prosseguimento discursivo, a aflição do enunciatário acaba, pois: “Eram cinco e meia quando apareceu finalmente Luís Duarte” (p.197).

Através da focalização interna e zero executada pelo narrador onisciente, temos desmascaradas as personagens:

A esta observação, toda filha do estômago implacável do ex- chefe de seção, o Dr. Valença respondeu dizendo:

— Compreendo a demora e a comoção de aparecer diante da noiva. (p.196)

Como se pode depreender pela narrativa, essa compreensão do Dr. Valença é falsa, já que suas falas anteriores revelam o contrário (sua fome que o diga...). Mas, para manter a aparência a demora do rapaz é relevada.

O mesmo acontece quando o enunciador, a partir de uma focalização interna de Calisto, compartilha com o leitor a dificuldade de se representar um papel social: “Calisto Valadares suspeitava que houvesse uma omissão nas Escrituras, e vinha a ser que entre as pragas do Egito devia ter figurado o piano. Imagine o leitor com que cara viu ele sair uma das moças do seu lugar e dirigir-se ao fatal instrumento” (p.197). Temos a impressão de que o narrador, ao revelar a intimidade das personagens (vaidade, inveja, gula, raiva, etc.), expõe para o leitor, seu convidado especial, as relações superficiais e dissimuladas, correntes na sociedade, uma postura irônica que desponta como presença marcante nesse conto, realçando-lhe o caráter crítico.

O discurso é permeado por uma ironia cômica manifestada pelas focalizações internas: “—Que magnífico é isto! exclamou ele diante do Sardanapalo, quadro que ele achava detestável” (p.197).

As personagens, nesse conto, representam os sete pecados capitais. A gula é exercitada, por exemplo, pelo Vilela: “(...) o estômago de Vilela formulou um verdadeiro ultimatum ao qual o homem cedeu (...)” (p.198). A soberba e a inveja, por Dr. Valença: “Luís Duarte apareceu à porta da sala, e daí mesmo fez uma cortesia geral, cheia de graça e tão cerimoniosa que o padrinho lha invejou” (p.197). A ira é garantida por Calisto, que demonstra raiva em ouvir as músicas executadas no piano odiado por ele. A preguiça está inerente aos irmãos da noiva: “(...) distinguiam-se ambos por uma notável preguiça, e nisso eram perfeitamente irmãos” (p.193). A cobiça é revelada por José Lemos, que deseja D. Margarida, esposa de Vilela. A luxúria vem implícita no final do conto, em que percebemos a gravidez de Carlota, desmistificadora do “sagrado” casamento. E por último, a avareza vem sugerida em uma focalização onisciente: “Eduardo cultivava a poesia quando as cifras lho permitiam (...)” (p.196).

O casamento não foi focalizado, mas serviu para mostrar o quanto os convidados estavam entediados em esperar que o mesmo se realizasse logo para a festa começar.

Essa estratégia de omitir o fato anunciado no título é extremamente irônica, pois permite destacar as máscaras e os vícios que povoam o acontecimento social. Eis um bom exemplo: ao chegar o Tenente Porfírio, “o dono da casa soltou um suspiro de

alívio e satisfação” (p.199). Como já dissemos, o Tenente é o tipo de pessoa que se faz necessária para lucrar com isso. As focalizações internas revelam as fragilidades diversas (moral, cultural, etc) das personagens: “José Lemos ignorava até aquela data se era anfitrião; mas considerou que da parte de Porfírio não podia vir cousa má” (p.200). Como vemos, o desejo de aparentar um homem culto encobre a percepção do próprio ridículo, pois José Lemos sequer sabia o que significava a palavra “anfitrião”.

Também é caricatural a colocação em cena do Tenente, cujo orgulho por sua habilidade retórica é dissimulado pela humildade que fingia diante das demais personagens: “—Eu, minha senhora? Respondeu Porfírio com aquela modéstia de um homem que se supõe um S. João Boca de Ouro” (p.202). Como vemos, a vaidade vem revestida por uma falsa modéstia.

Os comentários feitos pelo sujeito da enunciação demonstram parcialidade e uma postura irônica e depreciativa: “Estrepitosos os aplausos celebraram este discurso em que o Calvário andou unido ao cravo e à rosa” (p.203). O final do conto é sumarizado. São narrados vários fatos da diegese em um tempo menor, também com a função de sublinhar o comportamento das personagens e a representação das máscaras. Por isso ocorre uma prolepse: “Seguiu-se o baile, que foi animadíssimo e durou até as três horas (...)” (p.203). Esse procedimento é seguido por uma analepse completiva, uma referência “às duas horas” para narrar a retirada de algumas personagens. Porém, o mais interessante na finalização da narrativa é a notícia do “verdadeiro brinde dessa festa memorável” (p.203): uma criança. Portanto, se o “pecurrucho” veio ao mundo em janeiro, Carlota casou-se grávida. E fica a sugestão de que essa é a razão maior da realização matrimonial.

O que se destaca nesse texto é a capacidade de dissimulação entre as personagens, só perceptível graças às focalizações internas e zero efetuadas pelo enunciador. Da noiva aos convidados, todos trabalham o fingimento, a aparência em detrimento da essência.

No que diz respeito aos recursos temporais, podemos afirmar que aparecem pouco devido à estratégia de colocar o acontecimento como suporte para o estudo do comportamento. Por isso também o discurso é linear, os fatos mencionados começam com os preparativos do casamento e findam com a comemoração do mesmo.

Torna-se relevante nesse conto a ironia de Machado de Assis que, como já foi dito, compõe um quadro humano mesquinho. É como se houvesse um palco em que, enquanto as personagens representam seus papéis, o sujeito da enunciação juntamente com o leitor assistissem ao ridículo da dissimulação. A aparente simplicidade diegética vem revestida por uma trama que insere uma mordaz crítica social.

A rigor, percebemos que ainda prevalece a intensidade e não a tensão. Isto porque as ironias se mostram explicitamente e possuem uma tonalidade social, quando o ideal seria gerar os sentidos através da diminuição de pistas acerca da presença delas. Ou seja, elas existem para destacar o conteúdo e não em nível formal, estrutural. Segundo Anatol Rosenfeld, a ironia romântica tem cunho idealista, pois é uma forma de criticar a realidade, “de abalar os padrões filisteus e toda esta realidade aparentemente factícia em que o burguês se acha em casa” (1978, p. 286). É justamente esse o tipo de ironia ocorrente em “As bodas de Luís Soares”.

Assim, podemos concluir que os recursos retóricos ainda estão sendo utilizados para reforçar a intensidade, ou seja, nesse texto Machado ainda segue o modelo clássico à maneira de Poe, contando uma história e anunciando que há outra. O que mudará nos livros posteriores, principalmente em Histórias sem data. Antes, cumpre continuarmos acompanhando os contos de Histórias da meia-noite.