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III. Papéis avulsos: o desdobrar do molde clássico numa dupla face

12. Entre as curvas do universal

Atente-se à própria advertência colocada por Machado de Assis nesse seu livro de contos, já anunciando o que encontraremos nestes: “Este título de Papéis Avulsos parece negar ao livro uma certa unidade (...). A verdade é essa, sem ser bem essa”. Como vemos, a atitude do autor é semelhante à dos narradores dos textos, ou seja, ao mesmo tempo que afirma, nega, deixando o leitor com a sensação de estar abandonado à sua própria sorte. Porém, como observamos nas análises, todos os contos são metaforicamente “pessoas de uma só família”, palavras do autor, por isso interligados temática e esteticamente. Outro trecho interessante da advertência é o que se refere ao gênero: “E aqui há sentido, que tem sabedoria. Menos a sabedoria, cubro-me com aquela palavra”. Apesar de os textos serem construídos de maneira complexa, o que resulta em maior dificuldade no processo de refiguração da intriga, há sentido e, sobretudo, sabedoria. Mas é necessário ler o implícito no explícito. Portanto, partindo dessa nota introdutória, ou melhor, após analisarmos os contos e voltando a ela, percebemos que o comentário é revelador, apesar de não o parecer. Pois, a união dos textos, a importância do sentido neles presente e o elogio ao gênero mostram a relevância desse terceiro livro de Machado de Assis.

Em Papéis avulsos percebemos uma ligação de seus textos com os primeiros contos machadianos. Como já dissemos em outro momento, é preciso observar essa transformação sem, contudo, desprezar as obras iniciais. Porém, se há ligação, ocorrem, com maior evidência, mudanças, principalmente em relação à forma como os textos são elaborados. Em “O alienista”, por exemplo, lembramo-nos de “As bodas de Luís Soares”, nos dois contos as focalizações internas e as ironias são procedimentos fundamentais, porém, em “O alienista” há uma visível evolução em relação à ironia. Isso porque a dissimulação não é mais tratada explicitamente, ela está contida nas

entrelinhas das alegorias, do humor reflexivo e de uma ironia cômica utilizados para alcançar a ambigüidade. O fio da mentira ultrapassa as personagens, atingindo o narrador, que exercita a ambivalência através de sua postura enunciativa. Ou seja, a personagem principal do conto, Simão Bacamarte, apesar de o narrador ser heterodiegético é ambígua, pois não sabemos o que melhor define seu caráter, se a intenção científica ou a lucrativa, o bem comum ou o interesse particular sob a máscara do coletivo. Com referência aos recursos anisocrônicos, notamos que algumas elipses e sumários foram utilizados para criarem expectativa e curiosidade nos leitores, porém a maioria deles tiveram a função de atingir a concisão. Em “O alienista”, o principal elemento utilizado para alcançar a ambigüidade é a ironia.

“Teoria do medalhão” nos remete à “Linha reta e linha curva” de Contos fluminenses. Em ambos os textos prevalecem os diálogos, porém, no conto do primeiro livro, o narrador conduz o discurso, já em “Teoria do medalhão” há total neutralidade narrativa. A rigor, o que queremos realçar com essas comparações é justamente a transformação artística machadiana, passando pelas diversas experiências do narrar. Neste conto, a ironia também é o principal procedimento gerador de sentidos e, juntamente com as alegorias, ela gera a ambigüidade, ao serem contadas duas histórias, uma aparente e outra implícita. O alongamento, recurso temporal utilizado no discurso, aparece igualmente em “O empréstimo”. O fingimento novamente tem caráter enunciativo, isso porque há duas histórias em uma. A arte da dissimulação é ensinada como algo positivo, sem perder, todavia, seu aspecto negativo.

“A chinela turca”, como “Teoria do medalhão”, é um conto que se constrói sob duas faces. Na maior parte do tempo o leitor acredita ler a verdade, quando está lendo uma mentira. Há também um fino humor perpassando o enunciado, porém, o principal recurso instaurador da ambigüidade nesse conto é a elipse, ela é quem favorece a movimentação de sentidos, permitindo o fingimento enunciativo.

“Na arca” possui estrutura parecida à do conto “Teoria do medalhão”, no que diz respeito ao uso do discurso direto. Mas, aqui há uma pequena inserção do narrador. A comicidade presente em todos os contos continua nesse também, entretanto, diferentemente de “A chinela turca”, o humor do texto “Na arca” tem um tom mais reflexivo. A alegoria é outro recurso desse conto, e tem a função de subverter a idéia

bíblica de que o mal está representado na mulher e na serpente, revelando que a ambição está primeiramente no Homem. Este deixa de ser vítima subserviente para tornar-se o elemento ativo da construção dos vícios humanos. Em termos temporais, as freqüências são o procedimento de maior relevância para a instauração de significados. A utilização delas mostra o estrutural contribuindo para com o conteúdo, pois, elas reforçam a mediocridade humana.

Em relação às intertextualidades ocorrentes em textos machadianos, BRAYNER (1979) afirma que Machado, nos contos da década de 80, “faz largo uso de enunciados alheios, instigando a problematização do discurso dentro de seu próprio mundo ideológico” (p.68).

“O segredo do bonzo” se assemelha a “O alienista”, tanto no que diz respeito ao conteúdo quanto à estrutura. A técnica de dizer que o conto é proveniente de papéis achados, utilizada primeiramente em “Frei Simão”, ocorre também em “O alienista”. Assim como em “O alienista”, aqui é mostrado que teorias estranhas, mas bem formuladas, são um meio eficaz de manipular as pessoas. Em tal universo, a virtude e o saber estão presentes tanto no sujeito que fala quanto no que ouve. Ou seja, sabendo dominar a retórica, (instrumento dissimulador), tudo o que for dito, se bem executado passa a ser sábio para aquele que escuta. Como “Na arca”, as freqüências têm a função de ilustrar o ridículo da sociedade. Os sumários e as elipses são importantes porque contribuem para a instauração da dúvida no leitor e, conseqüentemente, instigam a curiosidade em ver desvendado o que foi oculto pelo lapso temporal. Porém, os recursos mais eficazes na formação da ambigüidade são a alegoria e a ironia.

Novamente o discurso direto é privilegiado no conto “O anel de Polícrates”. Nesse texto o foco narrativo é muito importante para a formação de sentidos, pois a personagem é mostrada pelo ponto de vista de duas outras, que não têm onisciência e isso garante o ambíguo. A alegoria, mais uma vez, é o elemento principal para a construção dessa ambigüidade, endossada pelo fantástico e pelo ponto de vista narrativo. As elipses e sumários possuem o valor de imprimirem concisão ao texto.

“D. Benedita” como “Luís Soares”, de Contos fluminenses, e “A parasita azul”, de Histórias da meia noite, são contos que não foram analisados na nossa tese pelo motivo já explicado anteriormente de terem sido objeto de estudo de livro publicado

(CARDOSO:2005). Porém não podemos deixar de dizer, mesmo que sucintamente, que em “D. Benedita” o principal procedimento na arquitetura textual são as freqüências. Além delas, a elipse e a alegoria também geram sentidos.

Em “O empréstimo”, assim como em “D. Benedita”, a focalização externa indica o movimento interno das personagens, além de lembrar o conto “O espelho” no que diz respeito à duplicidade do caráter. A elipse favorece o narrador que utiliza o recurso de contar e esconder. Ou seja, ao mesmo tempo em que ele começa a revelar algo, logo utiliza uma elipse para ocultar os fatos. Nesse movimento discursivo o leitor fica cada vez mais curioso. A figura de focalização paralipse também é importante para a instauração de significados. Assim, o alongamento novamente torna-se um recurso temporal importante para a arquitetura do texto. As alegorias e metáforas são outros procedimentos reutilizados no discurso. Entretanto, os principais são as elipses e o ponto de vista narrativo.

Como em “O anel de Polícrates”, no conto “A sereníssima república” o fantástico auxilia a alegoria e a ironia na formação da ambigüidade. O narrador também é um dissimulador, afinal mostra uma idéia falha como positiva. Neste conto a elipse também é importante, pois possui um valor retórico percebido com a conclusão alegórica, que retoma o fato anulado no início do discurso por esse recurso temporal. É preciso mencionarmos ainda o humor refinado que é um procedimento constante nos textos de Papéis avulsos.

No conto “O espelho”, a duração da narração é explorada como em “Teoria do medalhão” e “O empréstimo”. A elipse é usada para movimentar os sentidos, instigando o leitor. O uso do sumário também é interessante, afinal motiva a intriga, pois ao acelerar os acontecimentos fornece ao leitor a sensação de desespero da personagem, que tenta resolver a situação através de atitudes diversas. Porém, apesar de os recursos anisocrônicos transmitirem a angústia da personagem, instigando o leitor, o principal elemento causador da ambigüidade é mais uma vez a alegoria.

Em “Uma visita de Alcibíades”, a dissimulação existe na personagem e no narrador. O sumário é utilizado para acentuar a ambigüidade, afinal não se sabe se o acontecido foi um sonho ou realidade. A elipse também contribui para a curiosidade

do leitor e a alegoria ocorre novamente. Mas, o ambíguo é instaurado principalmente pela voz narrativa e pelo insólito.

No texto “Verba testamentária”, a tessitura temporal é um dos fatores principais de geração de sentidos do discurso. O procedimento fundamental para atingir tal construção é a elipse. O narrador é um grande manipulador, desvia a leitura do enunciatário, negando explicitamente tudo o que constrói implicitamente. Além da elipse, o sumário e a freqüência ampliam os significados. A alegoria ocorre apesar de não ser a maior motivadora estrutural do texto.

A rigor, percebemos que todos os textos estão interligados temática e estruturalmente. A eterna contradição humana, a duplicidade do eu, o poder da dissimulação e da retórica, a relação eu versus outro, a valorização da construção ficcional, com sua natureza imaginativa, como uma crítica à postura documental realista, são assuntos reincidentes nos contos. Porém, o que os torna ainda mais interessantes são os recursos utilizados para a construção do ambíguo. Percebemos que os principais elementos são a alegoria, o humor refinado por uma ironia não mais simples e direta como nos primeiros textos e o procedimento enunciativo, que passa a desamparar o enunciatário, deixando-o confuso e solto por um caminho labiríntico. Seguindo esses recursos está a elipse, que em pelo menos dois contos foi fundamental: “A chinela turca” e “Verba testamentária”. É preciso lembrarmos ainda que esses recursos temporais nos contos anteriores eram utilizados apenas para atingirem a concisão. Em Papéis avulsos, essa situação se modifica e os procedimentos anisocrônicos são melhor aproveitados em termos de arquitetura textual.

Além dessas constatações, a observação mais relevante a se fazer é a mudança estrutural no que diz respeito à arte machadiana de escrever contos. Ou seja, quando dissemos, no início da tese, que Machado, apesar de ter recebido influências de Poe, o supera, queríamos dizer o que ocorre justamente em Papéis avulsos: “O conto clássico à Poe contava uma história anunciando que havia outra; o conto moderno conta duas histórias como se fossem uma só” (PIGLIA:2004, p. 91). É notável esse modernismo machadiano, principalmente nos contos “A chinela turca” e “Teoria do medalhão”, em que há duas histórias revestidas pela aparência de uma. É necessário dizermos que todos os contos desse livro possuem essa dupla face. Só citamos esses dois porque

neles o procedimento é mais evidente, mais fácil de ser observado. E o principal recurso motivador desse caráter duplo do texto de Machado de Assis, em Papéis avulsos, é a alegoria. Porém isso ocorre em termos gerais dentro do livro, porque, como já observamos, há contos em que ora a elipse, ora o ponto de vista narrativo exercem essa função.

Portanto, Papéis avulsos constitui um livro que continua a mostrar a dissimulação como arma social, contudo muito mais complexa, pois ultrapassa o nível da diegese, passa pelo enunciado, atingindo a enunciação. Os narradores desses textos não mais conduzem o leitor, pelo contrário, dissimulam fazendo-o sentir-se totalmente subserviente à manipulação enunciativa. A forma se comporta conforme o conteúdo.

IV- HISTÓRIAS SEM DATA: O HUMOR E O ALEGÓRICO COMO