• Nenhum resultado encontrado

Bonimenteur: uma voz que conduz e uma aproximação com o narrador literário

3 DIÁLOGO DE LARS VON TRIER COM O DESENVOLVIMENTO DO SOM

3.1 O boniementeur e os bruitistes – um elo perdido do período silencioso

3.1.1 Bonimenteur: uma voz que conduz e uma aproximação com o narrador literário

Antes do estabelecimento dos sistemas de reprodução sonora nas salas de cinema, uma tradição representou um elo importante para a função narrativa do som: o bonimenteur. Esse personagem normalmente se fazia presente na porta dos cinemas convidando o público para assistir aos filmes. Durante as exibições, exercia um papel de narrador, tentando entreter o público, ambientar e explicar trechos do que estava sendo projetado. Por mais estranho que possa parecer, o bonimenteur foi um personagem fundamental na ampliação do alcance cinema, sobretudo na França, servindo como um elemento agregador que conseguia atrair um maior público pelas sua capacidade de entreter e divertir (BARNIER, 2010).

A sua utilidade e popularidade não se repousa apenas sobre a sua função de tradutor das cartelas73, uma vez que o público aprecia-o mesmo após a introdução das cartelas traduzidos. Ele é especialmente apreciado por sua performance, ou seja, sua capacidade de comentar o filme segundo as convenções narrativas específicas da sua comunidade. Esta é uma tática de apropriação do filme, bem como de interpretação da narrativa. A intervenção do bonimenteur não para por aí, já que muitas vezes ele é também um músico, cantor ou ator. O filme é assim integrado aos espetáculos do tipo teatral, prolongando um modo de recepção que a instituição do cinema não deu destaque. (LACASSE, 1996, p. 5)74

A chegada das cartelas escritas no cinema não foi capaz de diminuir a relevância dos bonimenteurs na França. Em 1907, a presença desses personagens era fundamental. A obra dos Irmãos Pathé, por exemplo, dispunha de catálogos com textos abertos à intervenção deles

72 Adotamos essa tradução mais presente nos estudos, mas também encontraremos o termo cinema silencioso como uma tradução possível para o termo silent film.

73 Complemento textual que intercala as cenas, sobretudo no período do cinema mudo, podendo conter frases explicativas, diálogos ou onomatopeias que ajudavam na compreensão do filme.

74 “Son utilité et sa popularité ne sauraient reposer sur sa seule fonction de traducteur d'intertitre, puisque le public l’apprécie même après l’introduction de titres traduits. Il est surtout apprécié pour sa performance, c'est-à- dire sa capacite de commenter le film selon les conventions narratives propres à sa communauté. Il s'agit d'une tactique d'appropriation du film aussi bien que d’interprétation du récit. L'intervention du bonimenteur ne s’arrête pas là, puisqu'il est souvent aussi musicien, chanteur ou comédien. Le film est ainsi intégré des spectacles de type théâtral, prolongeant un mode de réception que l’institution du cinéma n'a pas mis en valeur.” (Tradução do autor).

(LACASSE, 1996). Segundo Lacasse, a tradição do bonimenteur75 se perpetuou até 1913. Aos poucos, porém, foi perdendo a sua relevância. Esse narrador/intérprete/interlocutor recebeu essa nomenclatura na França, mas diversas experiências similares ocorreram nos vários países do mundo. Lacasse (1996) destaca a importância desses comentaristas na Alemanha, Inglaterra, Japão, Holanda, Irã, Rússia, entre outros píeses76.

Figura 25 – Imagem ilustrativa da figura do bonimenteur.

Fonte: CLICI (2015).

O narrador ou comentador recebeu diversos denominações pelo mundo afora. Antes mesmo de se chamar bonimenteur, na França, ele recebeu o nome de conférencier de vues animées77. No Japão, foi chamado de benshi; na Espanha, de explicador; na Alemanha, de kinoerzähler, e de lecturer, nos Estados Unidos e no Canadá78. Essa tradição destacava o aspecto narrativo da voz no cinema, que seria incorporada e presente até hoje por um narrador onisciente que guia o espectador.

Assim, parece que esta tecnologia fascinante79 porque é de vanguarda e corresponde ao gosto da época pela novidade, em geral nós queremos adicionar a voz do bonimenteur representando por outro lado a tradição, que integrada ao cinema em um discurso narrativo, sendo esta tratada muitas vezes como uma atração, ainda sendo chamado de "imagens em movimento" e só superará o bonimenteur quando ele se tornar a própria narrativa. Este cinema foi raramente silencioso, mas foi muitas vezes oral, integrado na tradição da oralidade e nas suas formas de narração e entretenimento,

75 Para aprofundar as diversas nuances presentes no desenvolvimento do bonimenteur, sugerimos consulta às obras de Barnier (2010) e Lacasse (1996).

76 Costa (2006) e Souza (2004) destacam a ausência de informação sobre esse narrradores na história do cinema brasileiro.

77 O termo pode ser traduzido livremente por conferecista de imagens animadas.

78 Lacasse (1996) explica as etimilogias do fenômeno bonimenteur e os diversos termos em cada cultura. 79 Essa é uma alusão que ele faz ao cinema.

esforçando-se por várias décadas contra uma instituição que queria incliná-la para o campo da literatura, se contrapondo a um som que vinha de outro lugar. Um cinema “oral” lutando contra o som “óptico": esta é a aventura do

bonimenteur resumidas pelo termo inventado com as máquinas. (LACASSE,

1996, p. 5).80

Encontramos alguns ecos do bonimenteur no cinema de Lars von Trier, a partir da utilização do narrador onisciente. A voz sempre aparece como um narrador fora da tela (off- screen), que não não é visto, mas ocupa um papel fundamental na narrativa. Podemos observar essa herança, particularmente, em três filmes da obra do artista: Europa (1991), Dogville (2003) e Manderlay (2005). O narrador onisciente não é uma especificidade do cinema de Lars von Trier, contudo a forma como ele mobiliza essa função foge aos padrões convencionais.

Esse traço percebido na obra do diretor confirma a relação existente entre a filmografia de Lars von Trier e o universo literário. A presença do narrador onisciente remonta ao conceito do bonimenteur, como se imergíssemos de um ambiente onde uma pessoa nos guiasse e conduzisse os relatos da trama. A voz apresentada no filme é sempre masculina, configurando uma materialidade imaginária da figura do diretor e roteirista, como se ele mesmo estivesse nos contando a história. O tom e o timbre da voz do narrador são marcadamente graves e impostados, transmitindo um ar sóbrio à locução. Diferentemente do bonimenteur, o narrador não possui uma função cômica e de mero entretenimento. Contudo, nas obras do diretor, a locução pode representar um lugar irônico ou de pequenas sátiras à realidade apresentada no filme.

A retomada desse marco do cinema sonoro, o bonimenteur, por Lars von Trier enfatiza o vasto conhecimento do diretor a respeito dos estilos, gêneros e histórico da arte cinematográfica. Ele consegue atualizar linguagens de outro contexto histórico, reinscrevendo no momento contemporâneo. O narrador onisciente representa um anseio de aproximação com o público e um desejo de controlá-lo e guiá-lo na sua percepção da história.

80 “Il semble donc qu’à cette technologie fascinante parce qu'elle est avant-gardiste et qu'elle correspond au goût de l’époque pour la nouveauté, on veuille en general adjoindre la voix du bonimenteur qui représente par contre la tradition, qui vient intégrer dans un discours narratif le cinema qui n’était encore souvent qu'une attraction, qui était encore appelé «vues animées» et se passera du bonimenteur seulement quand il sera devenu narratif par lui- même. Ce cinéma fut rarement muet, mais fut très souvent oral, integre dans la tradition de l'oralité et dans ses formes de narration et de spectacle, luttant pendant quelques décennies contre une institution qui voulait le drainer vers le champ de la littérature, protestant de vive voix contre un son venu d'ailleurs. Un cinema « oral » luttant contre un son «optique»: voilà l’aventure du bonimenteur résumée brièvement par les termes inventés avec la machine.” (Tradução do autor).

O bonimenteur era uma atração agregada ao espetáculo visual, com a função de entreter e comentar as imagens que apareciam na tela. A função do narrador onisciente aparece no cinema com uma certa frieza e distanciamento, quase como um orador que discorre sobre a história que se passa na tela. Nos filmes supracitados, percebemos esse papel sonoro do narrador ser trabalhado de uma maneira diferente. A priori o narrador aparece de uma forma mais tradicional, porém, no decorrer da narrativa, ele vai sendo ressignificado. A frieza narrativa e a passividade dão lugar a um ar mais cômico e satírico. Essas oscilações no papel do narrador onisciente criam uma flutuação entre o papel de um condutor da narrativa e um comentarista que interfere no significado das imagens.

Mesmo não sendo uma citação direta a figura do bonimenteur, percebemos uma ligação entre esse comentarista do início do cinema mudo e o narrador onisciente retomado por Lars von Trier. Essa breve conexão nos permite ver como o cinema do autor converge para as tradições cinematográficas, atribuindo-lhes novas funções e tensionando a sua linguagem; ou seja, o cinema de Lars von Trier se conecta com a tradição cinematográfica e reinventa e tensiona alguns cânones da linguagem. Tais questões serão abordadas mais profundamente no capítulo 3, no qual destacaremos especificamente a obra do diretor e analisaremos o som constante nos seus filmes.