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O BOULEVARD MONTMARTRE SEM THEO (OU OS ÚLTIMOS DIAS DE THEO)

CAPÍTULO 1 – PROFISSÃO MARCHAND, PROFISSÃO ARTISTA

2.10 O BOULEVARD MONTMARTRE SEM THEO (OU OS ÚLTIMOS DIAS DE THEO)

A despeito do luto, os negócios continuavam. Dois dias depois da morte de Vincent, Dupuis comprou um Degas por 2.500 francos. Theo também vendeu cinco obras de Pissarro entre guaches e óleos por 2.500 francos, média de 500 por obra, mesmo valor gasto pela galeria em um desenho de Degas. Foi também nessa ocasião que o marchand holandês comprou seu primeiro e único Cézanne, referido como Femme Assise nos registros da galeria370, por meros 300 francos, provavelmente como parte do pacote de obras envolvido que também envolvia as obras de Degas. A obra só seria vendida em 1899, com prejuízo de 100 francos. O comprador foi Ambroise Vollard, que já começava a trabalhar com artistas do que seria chamado de pós-impressionismo.

Logo após o suicídio de Vincent, Theo procurou Durand-Ruel para organizar uma retrospectiva do irmão. O velho marchand ideológico se mostrou refratário à ideia – assim como tinha feito com uma exposição proposta por Gauguin de suas próprias obras. Essas recusas mostram que Durand-Ruel continuava reticente em relação às variedades de pós- impressionismo e que aquele espírito ideológico, descrito no capítulo anterior, valia mesmo para os impressionistas, com os quais só agora ele começava a ter bons lucros371. De novo: a racionalidade comercial andava junto com a crença na arte. A essa altura, seria precipitado começar uma nova empreitada sem terminar a anterior.

Com a recusa, Theo mencionou a Pissarro o desejo de realizar essa exposição no Theatre d’Aplication, onde Chéret e Renouard haviam exposto há pouco tempo372. Em nenhum momento cogitou utilizar o mezanino de sua galeria. As razões para isto parecem claras. Em primeiro lugar, Theo não expôs Vincent no espaço da empresa quando o irmão estava vivo; em segundo, seus desentendimentos com os patrões não deixavam as coisas nem um pouco fáceis. Ao contrário, expor as obras do irmão em um lugar que tinha causado tantos problemas a ele e a Vincent poderia mesmo ser uma espécie de traição, dado o contexto conturbado. Apesar disso, com ajuda de Bernard, Theo organizou uma

370 Tratava-se, provavelmente, de Mulher sentada em azul, presente hoje na Phillips Collection, em

Washington.

371 Rewald, op. cit., p. 70.

pequena exposição de obras do irmão em seu apartamento. Parecia mais do que nunca dedicado a popularizar a obra de Vincent373.

Ainda que Theo continuasse suas atividades, as atitudes do marchand após a morte do irmão o afastavam de seu perfil de “honest broker374”; surge uma postura pouco comedida em relação aos negócios, que lembra as ideias de seu irmão no passado, como se Vincent ainda estivesse vivo dentro dele. Por exemplo, na época, enviou um telegrama a Gauguin garantindo dinheiro para sua partida aos trópicos e se apresentando como “diretor375”. No início, a proposta animou o francês, mas logo ele percebeu a fragilidade da situação. Eram os primeiros sintomas dos problemas nervosos que levaram Theo ao hospital em outubro de 1890, provavelmente em decorrência da sífilis, somado ao impacto da morte do irmão. Foi internado no hospital dirigido pelo Doutor Blanche, pai do pintor Émile Blanche. Em razão da doença, deixou os negócios e, com isso, ficaram desamparados aqueles artistas que precisavam dele para sobreviver.

Na sequência de sua internação, a galeria Boussod & Valladon pediu a Gauguin que retirasse suas obras em consignação presentes na loja. Com Pissarro, as coisas foram parecidas. Étienne Boussod recomendou ao artista que trocasse suas pinturas divisionistas por obras mais próximas do já muito bem aceito estilo impressionista, celebrado pelo mercado a partir de Monet. Pissarro, a essa altura, sentia os efeitos adversos que as vendas da coleção de Achille Arosa e de Dupuis (ambas em 1891) tiveram sobre suas obras. O artista não teve outra escolha senão aceitar a proposta376.

A venda dessas coleções colocou uma grande quantidade de obras de Pissarro no mercado por preços baixos. Por exemplo, na venda de Arosa havia três painéis pintados por Pissarro com o tema das quatro estações, e que ele esperava vender via Theo, custando menos de 300 francos cada. Um desastre para o artista, que almejava conseguir pelo menos 1.000 francos para cada pintura. A venda da coleção de Dupuis – que cometeu suicídio no final de 1890 em razão da falência iminente de seus negócios – foi feita a toque de caixa e devolveu ao mercado boa parte das obras que o colecionador tinha comprado nos anos anteriores. Os preços da venda foram comedidos, com Monets e

373 Van Dijk, Maite, op. cit., p. 139.

374 É a expressão utilizada por Thomson para descrever o perfil profissional de Theo em seu ensaio presente

em Thomson, Richard (op. cit., p. 47).

375 Ver Alexandre, A. Paul Gauguin: Sa vie et le sens de son oeuvre. Paris, 1930. p. 108. 376 Stolwijk, Chris, op. cit., p. 46

Degas em torno de 2.000 francos377. Entre os compradores estavam marchands como Salvador Meyer (que já havia comprado obras da coleção de Dupuis em seus momentos finais), Durand-Ruel, Portier e mesmo a galeria Bousso, Valadon & Cie, o que mostra mais uma vez que os patrões de Theo tinham interesse em comprar impressionistas a preços baixos. Naturalmente, a presença de tantas obras no mercado aumentava a oferta de um produto quase sem demanda.

Com a morte de Theo, em janeiro de 1891, Gauguin foi direto ao reconhecer que “somente van Gogh sabia como vender e como criar uma clientela, (e que) ninguém hoje sabe como ‘tentar’ um colecionador”. Entretanto, quando Bernard propôs que os dois organizassem uma retrospectiva de Vincent, Gauguin buscou se afastar da imagem de loucura trazida pelos irmãos, alegando que “dada a estupidez do público, não era hora de lembrar de van Gogh e sua loucura [...] Muita gente diz que nossa pintura é insanidade”378. Felizmente Bernard não escutou o colega e, em 1891, organizou uma pequena retrospectiva de Vincent na galeria Barc de Bouteville: a primeira de uma série de exposições que iriam se espalhar no final do século XIX e começo do próximo, como será visto.

No lugar de Theo, Maurice Joyant assumiu o posto de gerente da filial do Boulevard Montmartre. Grande amigo de Toulouse-Lautrec, Joyant era um jovem de boa posição social e ficou no cargo por pouco mais de dois anos. Quando, trinta anos depois, escreveu suas memórias, lembrou-se das circunstâncias em que sucedeu Theo de modo peculiar. Escreveu que os patrões diziam que Theo tinha “acumulado algumas coisas assustadoras de pintores contemporâneos que são a desgraça de nossa galeria”, também que havia um “excesso de pinturas de um paisagista chamado Claude Monet, que estava começando a vender um pouco nos Estados Unidos” e com quem a galeria supostamente teria um contrato que os obrigava a “comprar toda a produção do artista”.

Os relatos de Joyant são imprecisos. Em primeiro lugar, o contrato com Monet havia caducado em 1889. Nada prendia a galeria a Monet na ocasião. Além disso, já em 1891, Joyant vendeu 16 pinturas de Monet que haviam sido acumuladas por Theo, todas

377 Dupuis começou a vender suas obras já no final da vida. O leilão de junho de 1891 vendeu o que tinha

sobrado por preços abaixo do valor de mercado da maioria das obras. Caso das Quatro Estações, de Pissarro, que atingiram o valor de meros 273 francos por obra. Ver Rewald, op. cit., p. 76.

para compradores europeus, como informam os registros da galeria. Entre o estoque deixado por Theo e as novas vendas de Joyant, foram 25 Monets só em 1891, boa parte deles vendida para colecionadores dos Estados Unidos, com preços na casa dos 10.000 francos. Mais que isso: em 1892 a filial principal da galeria, localizada na Place d’Opera, também vendeu uma obra do artista, Degelo em Argenteuil, por 1200 francos para Henri Garnier. Joyant foi responsável por montar a exposição de Carrière que havia sido preparada por Theo anteriormente.

O ano de 1891 foi de Monet. O artista teve uma grande exposição na galeria de Durand-Ruel379, com catálogo escrito por Gustave Geffroy – o mesmo contratado por Theo para suas exposições. Na época, Monet vendeu três pinturas para a Boussod & Valadon que não estavam na exposição, o que contrariamente ao que disse Joyant mostra o interesse da galeria no artista. Em carta a seu filho, Pissarro reconheceu que as pessoas “não queriam nada que não fosse Monet”, que parecia não ser capaz de pintar rápido o bastante para atender à demanda por suas obras. De algum modo, Pissarro se resignava a pintar para saciar o apetite do mercado pelo estilo de Monet. Ao mesmo tempo, os negócios de Durand-Ruel com impressionistas prosperavam nos EUA, e os preços das obras que cruzavam o Atlântico chegavam a ser quatro ou cinco vezes maiores do que na França.

Gauguin finalmente organizou um leilão de suas próprias obras em 1891 para levantar fundos e partir para os trópicos. Durand-Ruel atuou como expert da venda, com total arrecadado de 9.350 francos, e que contou com obras vendidas por até 900 francos, caso de Visão após o Sermão, e com a compra por Degas de La Belle Angèle. O valor total arrecadado é quase o dobro do que Gauguin pretendia receber com o negócio malsucedido com o tal Charlopin. O texto de introdução foi escrito por Octave Mirbeau. A experiência com Gauguin mostra que Durand-Ruel se aproximava de alguns dos artistas agenciados por Theo. Se o holandês tinha buscado trabalhar com os pintores “descobertos” pelo francês, o inverso acontecia com Gauguin380.

Mas se, conforme visto no primeiro capítulo, o caráter “ideológico” de Durand- Ruel tivesse sido gerado, em boa medida, pelas memórias que o próprio marchand

379 Entre os colecionadores que emprestaram obras estavam Clemenceau, Gallimard e Sutton. Ver Rewald,

op. cit., p. 75.

escreveu, no caso de Theo, a celebridade está muito mais associada ao mito de seu irmão. É claro que em sua curta carreira Theo contribuiu para a consolidação dos artistas do pelotão de frente do impressionismo e introduziu outros artistas que não teriam encontrado nenhum espaço sem ele. No entanto, sem Vincent, seria isso suficiente para classificá-lo como um herói da arte moderna, nos moldes propostos por Rewald? Petit e outros também trabalharam com Monet, Degas e companhia, o que não bastou para que eles adquirissem o status de Theo.

Vejamos o que dizem alguns contemporâneos de Theo. No período imediatamente posterior à sua morte, antes de o irmão se tornar um fenômeno, há alguns relatos que ajudam a entender a visão que seus contemporâneos tinham sobre sua atuação quando o mito de Vincent ainda não existia. Em 25 de janeiro de 1891, o crítico Albert Aurier381, que pouco tempo antes havia escrito um artigo elogioso a Vincent, publicou uma pequena nota sobre a morte de Theo na revista Mercure de France (figura 49), na qual se referia ao marchand como um “simpático e inteligente expert” que trabalhou duro “para tornar conhecidos os mais audaciosos artistas independentes”. Na Holanda, Jan Veth382 e Jozef Isaacson383, escritores e amigos de Theo, adotaram um tom mais exaltado ao destacar o suporte dado por Theo à causa da arte moderna. No jornal De Ammsterdamer, Veth se referiu a Theo como um “jovem corajoso” que “trabalhou com generosidade e serena perseverança para o que, para ele, era nobre na arte da pintura”. Isaacson foi ainda mais caloroso ao classificar o marchand como alguém que “lutou por seus artistas, sofreu ao lado deles, e se sacrificou pela causa”.

Os adjetivos da retórica da valorização da arte moderna, com sacrifício, abnegação e luta, que tanto serão associados a Vincent, surgem – principalmente nos artigos holandeses – para falar de Theo. Nenhum sinal dos esforços que o marchand fez em relação à carreira do irmão, o que mostra que, mesmo antes de Vincent, Theo já aparecia retratado como um marchand ideológico, alguém que lutava pela arte moderna.

381 Aurier, Albert. Choses d’art, Mercure de France, 1 mar. 1891.

382 Jan Veth. Theo van Gogh. De Amsterdammer, 2 de fevereiro de 1891: “[...] jongen moedigen man [die]

met onbaatzuchtigheid en bedaarde volharding [had] gewerkt wat hij kon voor hetgeen in schilderkunst hem nobel leek”.

383 Isaacson, J.J. Uit de schilderswereld. Theodorus van Gogh. De Portefeuille, 12, p. 573, 7 de fevereiro

de 1891: “[...] een der stoutste kampioenen [...] die streed voor de artiesten, met hen leed en zich voor hun streven opofferde”.

Figura 49 – Aurier, Albert, Choses d’art, Mercure de France, 1 mars 1891

Essa retórica, no entanto, não deve ser separada de sua atuação como homem de negócios. Vimos no capítulo anterior que a promoção da arte moderna estava associada ao próprio desenvolvimento do mercado. Em outras palavras, uma coisa não se dissocia da outra: ser um defensor dos artistas contemporâneos significava também ser um homem de negócios. As duas coisas se misturam e dificultam uma visão polarizada: o marchand não era exatamente o herói apontado por Rewald, afastado do comércio, nem tampouco um gênio do mercado financeiro, “mais esperto que Warren Buffet”, como exagera uma recente publicação384. Mais que um escudeiro de seu irmão pintor, Theo foi um campeão da arte moderna porque, assim como Durand-Ruel, soube fazer dela seu negócio – o que não está em contradição com sua admiração e defesa dessa mesma arte. Mas conforme o mito de Vincent aumentava, mais Theo se tornava um marchand quase artista, como disse o irmão pintor na carta vista ao final do capítulo anterior.