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CAPÍTULO 1 – PROFISSÃO MARCHAND, PROFISSÃO ARTISTA

2.6 GAUGUIN VAI A ARLES

Os termos do acordo de Theo com Gauguin são conhecidos somente pelas cartas de Vincent. Assim como a parceria firmada com Monet, era de natureza informal. Note- se, entretanto, que ao passo que o acordo com Monet foi feito dentro da galeria, o trato com Gauguin era uma iniciativa pessoal de Theo. O contrato também marca a esperança de Vincent de construir uma associação de pintores baseada em Arles, que pudesse fazer

frente às dificuldades encontradas pelos artistas no mercado e que teria Gauguin como líder: de alguma maneira inspirada na colônia de artistas liderada pelo pintor francês em Pont-Aven322. Do mesmo modo que o antigo plano de uma associação de marchands, o projeto envolveria obras de artistas vivos, com o objetivo de proporcionar condições materiais para que os pintores continuassem pintando, e não o enriquecimento de seus idealizadores. Voltarei a este aspecto da parceria entre os artistas no próximo capítulo.

Em carta de junho de 1888, Vincent escreveu a Gauguin que seu irmão estaria disposto a pagar 250 francos mensais a serem divididos pelos dois em Arles. O valor final foi 50 francos mais alto. Na prática, os termos do trato acabaram sendo os mesmos daquele que vigorava entre Theo e Vincent: 150 francos mensais em troca de uma pintura por mês323. É bom lembrar que os acordos estabelecidos entre Durand-Ruel e os impressionistas nos primeiros anos da década de 1870 funcionavam de modo semelhante. Antes de deixar a Bretanha, Gauguin enviou um carregamento de pinturas a Theo; outras foram trazidas a Theo da Bretanha por Émile Bernard, entre elas Visão após o sermão (figura 39). Parte das despesas de sua transferência para o sul foi paga pela venda dessas obras324. Ao todo, Theo recebeu 20 pinturas, como descreve a sua irmã em carta do período, a maioria paisagens, das quais o marchand faz descrições bastante vívidas – em perfeita consonância com o espírito da época que colocava a natureza como elemento central da apreciação artística325 – como “há também paisagens primaveris com árvores de galhos finos, em que todas as folhas jovens pendem como pequenos sinos e contam a alegria da natureza rejuvenescida”. Essas 20 pinturas foram expostas no mezanino da galeria na mesma época. Entre elas estavam: Primavera em Lézaven , Cães correndo no

322 O termo Escola de Pont-Aven se refere ao grupo de artistas que se formou, em meados da década de

1880, em torno de Gauguin na Bretanha (na comuna de Pont-Aven), como Émile Bernard, Paul Sérusier e Charles Laval. O grupo se caracterizava por uma pintura de amplas áreas de cores saturadas, contornos espessos, e temas com apelo simbolista, estilo conhecido como Sintetismo ou Cloisonismo. Seria a inspiração inicial do grupo dos Nabis, na década de 1890. Para mais informações, sugiro a leitura de Thomson, Belinda, op. cit., e Cariou, A. et al. L’Aventure de Pont-Aven et Gauguin. Musée des beaux-arts. Paris: Skira, 2003.

323 Ver cartas 715 e 717.

324 Ver carta 704, enviada por Vincent a Theo em 15 de outubro de 1888. 325 Ver nota 1 da carta 704.

campo, Entrada em frente ao porto em Pont-Aven, Garotas Bretãs Dançando e Pastores na campina326.

Figura 39 – Paul Gauguin, Visão após o sermão, 1888. Óleo sobre tela, 73x92 cm, National Gallery, Edimburgo

Apesar dos esforços do marchand holandês, Gauguin relutou em aceitar o acordo. Em carta a Vincent pouco tempo antes de sua partida, mencionou um investimento de 600.000 francos para montar um negócio de pinturas impressionistas, que supostamente seria financiado por banqueiros judeus327. Se Vincent alimentava esperanças de construir uma associação de pintores que dividissem a renda da empreitada sem fins lucrativos, as ideias Gauguin tinham natureza especulativa, compatível com sua experiência pregressa no mercado financeiro. No fim, o esquema se revelou uma “fata morgana328” e mesmo Vincent – não exatamente alguém com os pés no chão – atribuiu os planos do amigo a

326 As obras se referem aos números de catálogo de Gauguin, respectivamente: W279/W249; W282/W265;

W276/W266; W296/W251; W280/W250. Wildenstein, Daniel. Catalogue Raisonné of the paintings. Wildenstein Institute, 2002.

327 Referências aos planos de Gauguin podem ser encontradas nas cartas 623, 625 e 630. E nas cartas 646,

688 e 692, enviadas por Gauguin a Vincent no segundo semestre de 1888.

328 Expressão utilizada por Vincent para se referir ao caráter ilusório dos planos de Gauguin em cartas do

algum tipo de doença ou ilusão da consciência. A melhor opção à mesa para Gauguin era a proposta de Theo.

Isso não impediu que o pintor desconfiasse das boas intenções do marchand. Em carta enviada ao pintor Schuffenecker329, Gauguin se referiu a Theo como um holandês frio e calculista, que propunha o acordo para comprar suas pinturas por um preço baixo e depois vender mais caro. A desconfiança de Gauguin é compreensível quando se leva em conta que a média de suas obras recentes vendidas por Theo era de cerca de 320 francos. Comprar uma pintura por mês pelo valor de 150 poderia significar lucro de mais de 100%. Vincent chega mesmo a sugerir ao irmão que, se fizessem o mesmo com Bernard, deveriam pagar apenas 125 francos, em vez de 150330.

Figura 40 – Paul Gauguin, Mulheres bretãs conversando, 1886. Óleo sobre tela, 71x94cm, Neue Pinakothek, Munique

329 Ver carta de Gauguin para Emile Schuffenecker, enviada em outubro de 1999. In: Gauguin Lettres, p.

141, nº LXXI, e Rewald, John, op. cit., p. 34.

Da carta enviada por Theo ao irmão em 27 de outubro de 1888, sabemos que Gauguin recebeu 500 francos pela venda de Mulheres Bretãs Conversando331. Na mesma época, Theo vendeu uma das pinturas (Camponesas Bretãs, Museu d’Orsay) a Dupuis por 600 francos, com lucro de 510, e uma das cerâmicas enviadas por Gauguin tempos antes por 300 francos. A renda dessas obras foi utilizada nas despesas da viagem do francês a Arles, complementada com o dinheiro vindo dos recursos da herança de Tio Cent332. Essa herança excluía Vincent, e de algum modo usar esse dinheiro em uma empreitada que atendesse ao desejo do irmão pode ter parecido a Theo uma maneira de fazer justiça.

Theo ainda vendeu mais três obras de Gauguin no contexto da exposição: duas a Dupuis, e uma a Jules Chéret, segundo os registros da galeria, totalizando cinco pinturas em cerca de dois meses; renda de 1440 francos para Gauguin, sem contar a quantia mensal recebida do marchand. Uma pergunta para qual não existe resposta parece irresistível: que impacto a venda de cinco pinturas em dois meses teria sobre Vincent, em termos de autoestima, estabilidade e otimismo? Ela leva à outra de resposta ainda mais difícil: se Theo conseguia vender Gauguin, por que não conseguia vender as obras do irmão? Não poderia Dupuis se interessar por uma paisagem ou retrato de seu irmão? Ou ainda: por que em nenhum momento as obras de Vincent foram expostas no mezanino da galeria, assim como Theo fazia com os demais artistas?

É possível que o histórico de Vincent com os donos da firma – notadamente Boussod, responsável direto por sua demissão na década anterior – tenha dificultado a exposição de suas obras na galeria. De qualquer forma, Theo mostrou pinturas de seu irmão a outros artistas e colecionadores na época, como Berthe Morisot e Eugène Monet ou ao escritor Gustave Kahn, e enviou-as a Tersteeg no contexto de sua tentativa de se estabelecer como um marchand de impressionistas, segundo o plano do irmão. Além disso, é muito provável que algumas obras de Vincent tenham sido vendidas via Tanguy e sabemos que Theo enviou uma pintura do irmão para uma galeria na Inglaterra, embora não haja informações precisas sobre seu paradeiro333.

331 Carta 711, enviada por Theo a Vincent em outubro de 1888 – especificamente nota 1.

332 Tio Cent, falecido em meados 1888, não tinha filhos, deixando sua herança inteiramente aos sobrinhos. 333 A esse respeito, ver van Dijk, op. cit., p. 136.

O desfecho da aventura de Gauguin em Arles é bastante conhecido: o pintor francês se mudou para a Casa Amarela – apelido do local que os dois dividiam na cidade – onde ficou por cerca de três meses na companhia de Vincent. A convivência foi tumultuada e a parceria se encerrou com o incidente em que o pintor holandês cortou o lóbulo de sua orelha direita, em 23 de dezembro de 1888, mesma data em que Theo se tornou noivo de Johanna Bonger. No dia seguinte ao noivado, Theo socorreu o irmão a mais de 700 km de distância de sua futura esposa. Na volta a Paris, concluiu uma transação de sete obras de Monet por 9700 francos, mais lucros das vendas. Entre um noivado e uma tragédia, respirou fundo e esteve pronto para negociar em seu melhor interesse334.

Pelos quatro pagamentos de 150 francos, Gauguin entregou somente uma pintura: As Arlesianas (figura 41), conforme indicam documentos do artista. A obra, entretanto, não foi negociada pelo marchand e tampouco consta na coleção de Theo. Outra obra, um retrato de Vincent feito pelo francês (figura 42) foi dada como presente a Theo. Na prática, esse foi o saldo do período do pintor francês em Arles: duas pinturas pelo preço de 300 francos cada. A relação pessoal e a comercial esfriaram temporariamente após os acontecimentos de Arles: os registros da galeria mostram que somente três pinturas foram vendidas ao longo de 1889335. Se o trato com Gauguin foi por água abaixo, o acordo com Monet seguiu um caminho semelhante, mas por razões bastante distintas.

334 Rewald, op. cit., p. 45.

335 Rewald aponta para o fato de que, em carta enviada a Redon, Gauguin não fez cerimônia ao oferecer

Figura 41 – Paul Gauguin, As Arlesianas, 1888. Óleo sobre tela, 73x92 cm, Art Institute Chicago

Figura 42 – Paul Gauguin, Retrato de Vincent van Gogh, 1888. Óleo sobre tela, 73x91cm, Museu Van Gogh, Amsterdã