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BRECHAS PARA UMA NOVA IDENTIDADE SOCIAL DA MÍDIA

No documento WALDEMIRA DE LOURDES GRAÇANO (páginas 73-77)

O grande desafio quando se fala em comunicação de massa é avaliar até que ponto a mídia tem o poder de alterar o comportamento dos cidadãos, impor ou influenciar as preferências através de suas mensagens. ADORNO (1977) observa que

“é mais fácil constrangerem-se as pessoas ao inevitável do que a se modificarem. É de se supor que a televisão faz delas mais uma vez aquilo que de qualquer forma já são, só que ainda mais do que já são” (p. 347). Mas, além desse provável efeito sobre o imaginário coletivo, o que mais interessa nesse trabalho é analisar o potencial de mediação que a mídia pode oferecer nas demandas populares por melhorias.

BOURDIEU (1997) aponta riscos na intermediação da televisão entre o público e poderes constituídos. Segundo ele, “uma forma perversa da democracia direta pode instalar-se e fazer desaparecer à distância em vista da urgência, da pressão das paixões coletivas, não necessariamente democráticas, distância que é normalmente assegurada pela lógica autônoma do campo político” (p. 92). Nestes casos os jornalistas estariam atuando como bombeiros incendiários.

De qualquer forma, inúmeras foram as situações em que a mídia teve atuação preponderante na denúncia de escândalos políticos e financeiros, esclarecimento de crimes e combate ao narcotráfico. Porém, essas coberturas geralmente estão condicionadas a outros interesses que determinam o que divulgar, quando, como fazê-lo, e o que ocultar. Este não parece ser o princípio que opera a divulgação dos fatos

apresentados no R. C., no qual os agentes das notícias são cidadãos anônimos, que se apresentam como pessoas desprovidas de força e de representatividade. Pessoas que já buscaram outras formas de solução para os problemas em questão e, sem alternativa, apelam para a televisão.

No R. C. existe uma ação e uma transformação, ainda que esta ação se resuma a forçar uma resposta verbal das instituições públicas às demandas da população. Neste sentido, BARBERO (2001) observa que “é impossível saber o que a televisão faz com as pessoas, se desconhecermos as demandas sociais e culturais que as pessoas fazem à televisão” (p. 40). As demandas existem, são apresentadas cotidianamente, muitas vezes atendidas e, outras, não. Portanto, a televisão ocupa um lugar estratégico nos modos de representação, principalmente numa sociedade fragmentada e vítima do desgaste das instituições públicas, como é o caso brasileiro.

As pessoas querem falar na televisão, querem ser vistas pelo maior número possível de outras pessoas. É como se a existência individual tivesse mais valor a partir dessa visibilidade. E, de certa forma, a dimensão de qualquer problema, projeto, trabalho, atividade em geral, ganha novos contornos a partir dessa visibilidade. Resta saber qual é a real motivação dessa procura pelo R. C.: será que os cidadãos acreditam, de fato, no potencial de mediação da televisão ou se manifestam à mídia apenas pela oportunidade de revelar sua existência individual ou coletiva?

A mídia vem tomando para si funções indicativas das transformações políticas e culturais que ocorrem no meio social. Uma destas transformações se verifica no próprio papel do Estado, que procura se adequar, encontrar seu tamanho ideal, identificar as formas de presença nas novas experiências de vida. Enquanto tenta estabelecer esse formato, o Estado vem, ao mesmo tempo, deixando de construir uma ordem justa, e abrindo espaço para que a mídia assuma, ainda que quase sempre de forma distorcida, a prerrogativa de representar os cidadãos no espaço público.

A maioria da população brasileira vive a modernidade sem ter ainda passado pela consolidação dos direitos básicos de cidadania. Este seria, na concepção de TELLES (1994, pp. 7-14), o paradoxo da modernização brasileira. Há a inserção nos circuitos globalizados, onde a vida econômica é determinante dos movimentos de

exclusão social e, no outro extremo, o não cumprimento de tarefas básicas da modernidade para a grande massa da população, como garantia de direitos e de justiça no conjunto da vida social.

Neste contexto, Barbero evoca a solidariedade na comunicação e a apresenta como espaço fundamental para o reconhecimento das demandas das maiorias, tanto quanto dos direitos das minorias. A solidariedade na comunicação é apontada como capaz de impulsionar o direito à participação, ou seja, uma brecha para que as comunidades e os cidadãos intervenham nas decisões que afetam seu viver. Trata-se de uma nova perspectiva em que a comunicação significará a colocação em comum da experiência criativa, o reconhecimento das diferenças e a abertura para o outro. Em suas palavras:

O comunicador deixa de figurar como intermediário – aquele que se instala na divisão social e, em vez de trabalhar para abolir as barreiras que reforçam a exclusão, defende o seu ofício:

uma comunicação na qual os emissores - criadores continuem sendo uma pequena elite e as maiorias continuem sendo meros receptores e espectadores resignados – para assumir o papel de mediador: aquele que tona explícita a relação entre a diferença cultural e a desigualdade social, entre diferença e ocasião de domínio e a partir daí trabalha para fazer possível uma comunicação que diminua o espaço das exclusões, ao aumentar mais o número de emissores e de criadores do que o dos meros consumidores (BARBERO, 2003, p. 69).

O comunicador passa a ser mediador de um público que requer seu direito à comunicação e não somente o direito à informação. Um público que sente a necessidade de interagir num espaço em que os atores sociais sejam também sujeitos da produção informativa, e não simplesmente receptores. Portanto, a formação de um espaço comum, onde a sociedade civil se expresse em sua pluralidade, são desafios que a mídia precisa enfrentar na busca de visibilidade. As novas formas de sociabilidade reivindicam a democratização da esfera pública.

Os meios de comunicação se constituem em instrumentos fundamentais para a ampliação ou restrição do público, sendo o público, parafraseando Hannah Arendt, o que pode ser visto e ouvido por todos. Barbero ainda relaciona maneiras de se ampliar ou restringir o público. Ele descreve:

Amplia-se o público, ao fazer visíveis preocupações de atores que, de outro modo, não se notariam, ao estender os limites do reconhecimento dos “outros”, ao qualificar as

compreensões que os cidadãos têm de seus problemas ou das orientações das decisões de seus governantes. Restringe-se, ao distorcer a informação, ao banalizar os processos, ao tirar a densidade da complexidade do social. Amplia-se, ao contribuir para constituir o público a partir de uma isonomia cidadã, isto é, ao fortalecer a igualdade diante da lei de todos os cidadãos, bem como sua adequada participação no poder (pp. 86 e 87).

Uma versão mais contemporânea do público inclui em seu debate temas como a presença de novos atores sociais, cujos interesses já não se restringem aos problemas de representação, mas de expressão e de reconhecimento. Para isso, torna-se fundamental pensar uma comunicação que promova a universalização da cidadania, uma comunicação na qual os sistemas globais de mídia não sufoquem identidades, laços comunitários e direitos coletivos. Ainda que se empenhem em manter tradicionais esquemas de dominação e de construção da realidade, os meios de comunicação estão sofrendo, cada vez mais, pressões de um público que está decidido a participar e que está mais atento às manipulações.

No caso brasileiro, alguns fatores poderiam ser apontados como desencadeadores dessa nova postura. Entre eles está a melhoria dos canais de acesso à educação, ainda que de forma precária e de qualidade questionável. Paradoxalmente, ao mesmo tempo em que a população tem mais acesso ao ensino e toma mais consciência de seus direitos, sofre com o aumento da exclusão social. Entre 1980 e 2000 a exclusão social aumentou, passando de 42,6% da população de 120 milhões de habitantes (51 milhões de excluídos), para 47,3% da população de 170 milhões de habitantes (80 milhões de excluídos).26

Em se tratando especificamente do jornalismo, não importa o quanto a atividade tenha sofrido mudanças ao longo dos anos. O fato é que sua finalidade básica permanece constante, embora nem sempre respeitada desde o surgimento da noção de imprensa, há mais de trezentos anos. Apesar de todas as evoluções técnicas e de mudanças na natureza da difusão das notícias, sempre existiu uma filosofia , segundo a qual a principal finalidade do jornalismo é fornecer aos cidadãos as informações necessárias para serem livres e se auto-governarem. Portanto, a finalidade estava clara;

26 Os dados são do Atlas de Exclusão Social no Brasil-2, que revela o ranking dos estados e a evolução da exclusão no país entre 1960 e 2000. O Atlas revela que a educação foi o único setor a apresentar relativas melhora no período.

o que faltava era uma nova postura do público consumidor de notícias e do jornalista produtor de notícias, o que finalmente começa a acontecer. É verdade que isso se dá muito mais por força das circunstâncias do que pelo processo de desenvolvimento social; infelizmente, não é possível concluir que isso se deva à própria vontade dos meios.

No documento WALDEMIRA DE LOURDES GRAÇANO (páginas 73-77)