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3.2. Disputas em torno das legislações ambientais: “interesse nacional” versus

3.2.1. Breve caracterização geológica e ecológica das formações ferríferas

O ferro é um elemento abundante na crosta terrestre e presente em diversos minerais. Destes minerais, devido a diferentes níveis de concentração e distribuição nas rochas, apenas alguns podem ser explorados economicamente para obtenção do ferro. Podemos citar, por exemplo, a magnetita, a hematita, a goethita e a pirrotita, que apresentam conteúdo teórico de ferro acima dos 60%. Os grandes depósitos de ferro do planeta se formaram em um intervalo de tempo restrito e muito antigo da história da Terra – entre 3,8 e 1,9 bilhões de anos atrás, durante o período pré-cambriano. As maiores reservas de ferro do mundo são as chamadas formações ferríferas bandadas, que são constituídas por rochas laminadas e compostas, principalmente, por sílica, ferro e oxigênio. Elas podem apresentar centenas de metros de espessura e centenas ou até milhares quilômetros de extensão. No Brasil, essas formações são denominadas itabirito e estão presentes em todas as regiões produtoras de ferro, como o Quadrilátero Ferrífero, a Província Mineral de Carajás e a região de Corumbá (LINDENMAYER; LAUX; TEIXEIRA, 2001; CARVALHO et al., 2014).

O Quadrilátero Ferrífero, que se estende por uma área aproximada de 7.200 km2, é composto, em termos de suas características litológicas, pelo Supergrupo Rio das Velhas, pelo

Supergrupo Minas, pelo Grupo Itacolomi e pelo Embasamento Cristalino (Figura 3) (ALKMIM; MARSHAK, 1998). Nos corpos de rochas pertencentes ao Supergrupo Minas, particularmente no Grupo Itabira ou, ainda, na Formação Cauê107, estão localizados os grandes depósitos de ferro do Quadrilátero Ferrífero. As principais jazidas possuem camadas de itabiritos que atingem até 250 metros de espessura (ROSIÈRE; CHEMALE JR., 2000). Acima dessas camadas, sugiram conglomerados de rochas ferruginosas – denominados cangas – como resultado de um longo processo de erosão, principalmente, de itabiritos e de hematitas, ocorrido durante milhões de anos. Tais minerais, com elevados teores de ferro, formaram uma cobertura sobre os principais depósitos do minério, que pode atingir até trinta metros de espessura (JACOBI; CARMO, 2008; CARMO, 2010).

Essas especificidades geológicas da região e, particularmente, do Supergrupo Minas, fizeram com que o Quadrilátero Ferrífero desenvolvesse, além da riqueza mineral, formações vegetais e ecossistemas únicos. Sobre as cangas, desenvolveu-se uma vegetação associada a tais substratos ricos em ferros, à qual se nomeou campos rupestres ferruginosos, conhecidos também como vegetação de canga. Os campos rupestres ferruginosos, ainda pouco estudados no Brasil, ocorrem, em Minas Gerais, em altitudes de 900 a 1900 metros ao longo de topos e encostas de serras cobertas pela canga (JACOBI; CARMO, 2008). Na Figura 3, podemos observar como tal vegetação ocorre de forma isolada e em áreas restritas – ela emerge exclusivamente nas áreas em preto, que correspondem às formações ferríferas bandadas, onde também estão localizadas as minas de ferro em operação na região. Assim, a intensa atividade mineradora na região tem provocado a destruição dos campos ferruginosos e a extinção de espécies. Essa situação é agravada pela restrição geográfica desse ecossistema. De todo Quadrilátero Ferrífero, estima-se que apenas aproximadamente 100 km2 sejam recobertos por cangas, o que significa menos de 2% de toda a região (DORR, 1964).

107 Além do Grupo Itabira, o Supergrupo Minas inclui outros três Grupos – Caraça, Piracicaba e Sabará. O Grupo Itabira é composto pelas Formações Cauê e a Gandarela, sendo que, na primeira, predominam itabiritos (ROSIÈRE; CHEMALE JR., 2000).

Figura 3 - Mapa geológico do Quadrilátero Ferrífero e localização aproximada das principais minas de ferro de Minas Gerais em operação

Obs.: A Serra do Curral, ao sul de Belo Horizonte, já foi extensamente explorada. Assim, como grande parte de suas minas estão exauridas, não aparecem na imagem. Minas ainda em fase de licenciamento ambiental também não estão referenciadas.

Fonte: adaptado de Spier et al. (2008). A seleção das principais minas foi definida no Anexo 2. A localização das minas foi baseada tanto em Spier et al.(2008) como em Pires (2003). Os nomes dos morros, serras e sinclinais foi retirado de Dorr (1964). O Complexo Paraopeba inclui as minas Capão Xavier, Córrego do Feijão Jangada e Mar Azul; o complexo Vargem Grande inclui as minas Abóboras, Capitão do Mato e Tamanduá; o Complexo Itabiritos, as minas Segredo, João Pereira, Sapecado e Galinheiro; o Complexo Mariana, as minas Alegria, Fábrica Nova e Fazendão; e o Complexo Minas Centrais, as minas Brucutu, Gongo Soco e Água Limpa; e o Complexo Itabira, as minas Cauê, Conceição do Mato e Minas do Meio. Para demais minas e empresas proprietárias, ver Anexo 2.

Sinclinal Gandarela

Devido às características geológicas peculiares de seu ambiente, os campos ferruginosos ocorrem em poucas e restritas regiões do país. Além do Quadrilátero Ferrífero, observa-se sua ocorrência, de forma expressiva, na Serra dos Carajás (Figura 4). Na Província Mineral de Carajás, há importantes depósitos de ferro na chamada Serra Norte e na Serra Azul, que formam um platô coberto pela vegetação de canga. Esses depósitos constituem as maiores jazidas de ferro de alto teor do mundo, com uma concentração de ferro acima dos 65%. A espessura do minério, abaixo da cobertura de canga, pode ultrapassar os 200 metros (LINDENMAYER, 2001). As cangas, na região, estão localizadas entre os 630 e 650 metros de altitude – altitudes máximas existentes na Serra de Carajás – e surgem como “minienclaves de vegetação exótica em relação às florestas predominantes nos bordos a nos altos da serrania, (...) de aparência muito arcaica, suficiente para revelar liames perdidos da história da vegetação e dos paleoclimas do velho maciço.” (AB’SÁBER, 1996: 83). As cangas das Serras Norte e Sul totalizam 11.380 hectares - ou seja, menos de 3% da Floresta Nacional de Carajás, que possui 392.725 hectares –, sendo, em ambas as Serras, cercada por uma floresta tropical densa.

Figura 4: Mapa da Floresta Nacional de Carajás e localização aproximada das minas de ferro em operação e em fase de instalação

Fonte: adaptado de Martins et al. (2012:46).

A antiguidade das cangas, o isolamento geográfico e condições ambientais bastante restritivas fazem com que a vegetação e a fauna, especialmente alguns animais invertebrados, que aí vivem, apresentem alta taxa de endemismo e, em muitos casos, sejam raras. Algumas dessas condições ambientais não são exclusivas das cangas, sendo comuns a todos os campos rupestres, inclusive de ocorrência mais frequente que os ferruginosos – como, por exemplo, os campos formados por substratos de quartzito-arenito e de granito- gnaisse, que já foram vastamente estudados pela literatura108. Em termos gerais, os campos rupestres apresentam características estressantes para as espécies vegetais e animais, como altas variações térmicas ao longo do dia, alta evapotranspiração, baixa retenção de água dos solos e temperaturas elevadas de sua superfície, que pode atingir quase 70ºC. Dentre as condições ambientais particulares aos campos ferruginosos, podemos destacar a presença de solos ácidos, rasos, de baixa fertilidade e compostos por até 90% de óxidos de ferro (JACOBI

et al., 2007; JACOBI; CARMO, 2008). Diante dessas condições, as plantas dos campos

108

rupestres ferruginosos desenvolveram uma série de adaptações morfológicas e fisiológicas, cuja descrição detalhada e a apresentação extensiva das espécies estão além dos objetivos do presente trabalho, mas podem ser consultada na literatura indicada.109

As plantas metalófitas, por exemplo, são capazes de tolerar ou acumular altas concentrações de elementos metálicos em seus tecidos. O grupo vegetal das metalófitas desenvolveu mecanismos de resistência biológica aos solos com alta concentração de metais, que seriam tóxicos para a maior parte das plantas. Por suas características, essas plantas podem fornecer importantes serviços ecológicos, especialmente, para mitigar problemas ambientais decorrentes da própria atividade mineradora. Entre esses serviços, pode-se destacar a retirada de metais tóxicos dos solos (fitoextração), a revegetação e a restauração de condições ambientais anteriores à mina (fitoestabilização) e, até mesmo, a prospecção de minérios de baixo teor que não poderiam, economicamente, ser explorados de outra forma (fitoprospecção). Contudo, dado o avanço rápido da destruição das cangas pela mineração e o baixo número de estudos realizados até o presente, é muito provável que grande parte das plantas metalófitas dos campos rupestres brasileiros – muitas delas endêmicas – sejam extintas antes mesmo de serem conhecidas (GINOCCHIO; BAKER, 2004).

Também se destaca, particularmente nos campos ferruginosos de Carajás, a presença da planta medicinal jaborandi, cuja substância pilocarpina é utilizada na produção de colírio para o tratamento de glaucoma e em cirurgias oftalmológicas. O jaborandi está na lista de espécies da flora ameaçadas de extinção e já desapareceu em várias regiões do Brasil. Há experiências de cultivo de jaborandi em larga escala, porém a qualidade da planta nativa, tendo em vista seus fins medicinais, é muito superior. Em Carajás, onde resiste uma das últimas grandes reservas da espécie, suas folhas são coletadas por uma cooperativa local, com autorização do IBAMA e do ICMBio. A cooperativa, da qual participam cerca de sessenta famílias, promove o manejo sustentável do extrativismo do jaborandi, contrastando com o extrativismo predatório que ocorre em outras regiões. Contudo, devido a sua ocorrência nas áreas de canga de Floresta Nacional de Carajás, onde estão localizados os grandes depósitos do minério de ferro, a planta é ameaçada pela expansão das cavas de mineração (ICMBIO, 2012; COSTA, 2012).

Além de tais especificidades da flora, a literatura recente em espeleologia também indica a importância do patrimônio espeleológico e arqueológico dos campos rupestres ferruginosos e de formações ferríferas. As cavernas formam ecossistemas bastante complexos

109 Confira, especialmente, JACOBI; CARMO, 2008 para informações sobre o Quadrilátero Ferrífero e CHAVES; FERREIRA, 2014 e NUNES, 2009 para informações sobre a Floresta Nacional de Carajás.

e frágeis, com grande endemismo da fauna e ainda, com frequência, possuem vestígios paleontológicos e arqueológicos bastante preservados. Nas cangas e formações ferríferas, a identificação e estudo das cavidades naturais subterrâneas são ainda bastante recentes. Nessas regiões, até o final do século passado, poucas cavernas haviam sido identificadas e, no geral, eram consideradas como tendo pouca relevância biológica – talvez por possuírem, em geral, dimensões reduzidas. Posteriormente, estudos biológicos e ecológicos mais detalhados mostrariam, contudo, a existência de grande diversidade de espécies troglomórficas110 endêmicas e de comunidades bastante complexas, que se desenvolveram, especialmente, em microhabitats (espaços sob rochas, fendas etc.) (FERREIRA, 2005).

A grande riqueza da fauna das cavernas em formações ferríferas, quando comparada a cavidades de outras formações, seria resultado, principalmente, das características geológicas das cangas, que levariam ao desenvolvimento de pequenos canais (canalículos) conectando espaços de diferentes dimensões dentro das cavernas, favorável ao desenvolvimento de grande número de organismos. Ademais, como grande parte das cavernas em formações ferríferas desenvolve-se nas cangas, relativamente próximas à superfície, os canalículos também permitiriam um maior trânsito da fauna entre o exterior e o interior, aumentando a diversidade de espécies mesmo em áreas profundas. A superficialidade dessas cavidades também favoreceria a presença de raízes de plantas da vegetação externa, que mantêm um volume importante de alimentos para uma grande variedade de espécies de invertebrados, constituindo a principal fonte de nutrientes nesses sistemas. Assim, a presença de raízes, bastante incomum em cavernas brasileiras, também permitiria entender porque, mesmo em formações relativamente pequenas, há grande diversidade da fauna (FERREIRA, 2005; SILVA; MARTINS; FERREIRA, 2011).

Em termos de vestígios paleontológicos, destacam-se as recentes descobertas de escavações produzidas por mamíferos gigantes extintos – as paleotocas –, encontradas nas cangas localizadas em Minas Gerais. No norte do estado, na região Vale do Rio Peixe Bravo, onde há importantes depósitos de minério de ferro e diversos títulos minerários já em fase de requerimento de lavra, foram realizadas as primeiras descrições de paleotocas em sistemas ferruginosos. A existência desses animais é identificada a partir de marcas de garras da escavação e de marcas ou polimento resultantes da passagem do animal. As marcas nas cavernas do Vale do Rio Peixe Bravo indicam que as paleotecas foram produzidas por

mamíferos xenartros dasipodídeos (tatus-gigantes) e por mamíferos xenartros milodontídeos

110

(preguiças-gigantes) entre três a dez milhões de anos atrás (CARMO et al., 2011). No Quadrilátero Ferrífero, por sua vez, foi registrada a maior paleoteca, de 340 metros, localizada no Sinclinal Gandarela (cf. Figura 3), escavada provavelmente também por milodontídeos (RUCHKYS; BITTENCOURT; BUCHMANN, 2014). Somadas aos vestígios arqueológicos encontrados em cavernas tanto no Quadrilátero Ferrífero como em Carajás, esses registros de paleotecas também constituem elementos de importante valor científico e cultural, ainda pouco conhecidos e estudados.