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É possível argumentar, como Nem Singh (2012), que o aumento do controle estatal sobre os recursos naturais em países sulamericanos, e particularmente no Brasil, constituiria potencialmente parte de uma alternativa ao neoliberalismo, ainda que de algum modo limitado pela crescente integração econômica global. É verdade que a constituição de interesses nacionais pode ser um primeiro passo para viabilizar um desenvolvimento econômico menos dependente da exploração de recursos naturais na medida em que permite uma maior coordenação visando aprofundar a diversificação da economia. Contudo, o nacionalismo dos recursos naturais não pode garantir, por si só, que exista uma maior capacidade de desenvolvimento de progresso tecnológico e de mudança da estrutura econômica. Discutir o conjunto de políticas e medidas necessárias para promovê-los está para além dos limites deste trabalho, mas pode envolver políticas industriais, políticas tecnológicas, diversificação dos investimentos públicos, tributos sobre a exportação de commodities, controle de capitais etc. (ver MEDEIROS, 2013).

A própria renda minerária, ou royalty, tem o papel, na visão de alguns autores, de permitir a diversificação em economias baseadas em recursos não renováveis. O royalty “(...) é uma compensação ou retribuição paga pelo uso de um direito, no caso, a exploração de um recurso natural exaurível” (BERCOVICI, 2011: 328). Nesse sentido, não poderia se limitar a compensar a degradação ambiental ou os custos sociais da exploração de recursos naturais, nem ser destinado ao pagamento de dívidas ou ao pagamento do quadro permanente de pessoal – estes últimos, expressamente proibidos pela Lei nº 7.990/1989. Os royalties deveriam, na realidade, permitir a diversificação econômica, preparando a economia um para

futuro sem mineração.101 É, portanto, incorreta a ideia de que os royalties existem para compensar os impactos socioambientais da mineração. A exigência de compensação por tais impactos deve ocorrer no processo de licenciamento ambiental. Tampouco, eles são um tributo. Os royalties têm outra natureza:

A renda obtida com a autorização de pesquisa e a concessão para a exploração de recursos minerais tem natureza jurídica de receita pública originária, pois de trata da exploração de bens públicos. Os bens minerais são da União (artigos 20, IX e 176 da Constituição), portanto a renda obtida não é indenização, nem tributo, por não ser uma receita derivada. Os

royalties da contraprestação minerária têm natureza jurídica de preço

público, decorrente da exploração do patrimônio do Estado (BERCOVICI, 2011: 329).

O fato de os royalties serem frequentemente confundidos com uma compensação pelos impactos socioambientais, apenas indica que estes não têm sido devidamente compensados pelas mineradoras tal como previsto pela legislação ambiental. Na própria cerimônia de lançamento do Marco Regulatório da Mineração, a Presidente Dilma afirmou: “Em relação aos royalties propomos a manutenção dos percentuais destinados aos municípios, estados e União, reconhecendo que a maior parte da renda cabe aos municípios já que neles ocorre o maior impacto da exploração mineral” (ROUSSEFF, 2013). Ao considerar que os

royalties eram uma compensação pelos impactos da mineração, o Governo Federal abria mão

de discutir a sua repartição, que é fortemente concentrada nos municípios (65%) e nos estados (23%). E, dessa forma, também diminuía a importância estratégica do uso da renda minerária e, particularmente, o seu papel em gerar alternativas à mineração. É claro que, por este mesmo motivo, parcela dos royalties deve ficar em municípios e estados mineradores – e também de outros municípios envolvidos nas cadeias produtivas da mineração –, já que a sua dinâmica econômica é fortemente atrelada à mineração. Contudo, a proposta de aumento da alíquota sem uma discussão estratégica dos fins e da repartição da renda arrecadada por meio dos

royalties era necessariamente incompleta (ver INESC, 2013).

Evidentemente que a manutenção da repartição dos royalties era também, e talvez principalmente, uma forma de o Governo Federal evitar conflitos com estados e municípios. Porém, o envio do novo Código à Câmara dos Deputados em junho de 2013 mostraria que os obstáculos para mudança da regulamentação minerária seriam muito maiores do que inicialmente fora previsto. A Comissão Especial criada para fornecer um parecer ao Projeto

101 O argumento jurídico considera que esse futuro sem mineração decorre do esgotamento das jazidas. Porém, podemos imaginar igualmente que, nesse futuro sem mineração, ainda possam existir jazidas, mas legalmente inacessíveis por estarem em terras indígenas ou em território de outras comunidades tradicionais, ou em áreas de preservação ambiental etc.

de Lei 5.807/13, ao longo de dois anos de discussão, produziu diversos substitutivos ao projeto original que continham centenas de emendas descaracterizando por completo os elementos mais reguladores presente na proposta do Governo Federal.102 Nos projetos substitutos, a licitação tinha um papel secundário, já que os direitos minerários continuariam a ser outorgados por meio dos requerimentos de autorização ou concessão. No substitutivo de agosto de 2015, definia-se que: “Somente as áreas livres caracterizadas pela existência de recursos ou reservas minerais poderão ser objeto de concessão precedida de licitação” (artigo 8º, § 2). O problema é que a definição de “áreas livres” no substitutivo (artigo 5º, III) era bastante restritiva e, portanto, reduzia o número de jazidas passíveis de licitação. Ademais, neste projeto substitutivo as alíquotas de royalties haviam sido reduzidas em relação ao projeto original. A alíquota do minério de ferro, por exemplo, só seria igual a 4% (valor do projeto original) se o preço da tonelada do minério superasse os 100 dólares; para preços abaixo de 60 dólares, a alíquota seria de apenas 1%.103

Por um lado, as visões divergentes entre o Governo Federal e a Câmara dos Deputados refletiam a grave crise política que se instaurou no final do governo Dilma. Por outro, seguramente, as mineradoras viam-se representadas de uma forma desmedida na Comissão Especial da Câmara. Um levantamento de Oliveira (2013: 14-20) mostra como grande parte dos deputados da Comissão Especial, autores de emendas do Código, tinha suas campanhas financiadas por mineradoras. Ademais, um fato bastante noticiado em fins de 2015 foi que o documento do substitutivo, assinado pelo deputado Leonardo Quintão do PMDB, havia sido alterado em diversos trechos pelo advogado Carlos Vilhena do escritório de advocacia Pinheiro Neto, que tem como clientes mineradoras como a Vale e a BHP (ver SENRA, 2015). Estes fatores ajudam a compreender os grandes retrocessos em termos dos aspectos socioambientais nos projetos apresentados pela Comissão Especial. Se o projeto original elaborado pelo Governo Federal já era omisso em relação a tais aspectos, os substitutivos colocavam o uso do território pelas mineradoras explicitamente à frente de qualquer outro uso concorrente possível. O artigo 119 definia que “A criação de qualquer

102 Apenas o deputado Eduardo Cunha (PMDB), integrante da Comissão Especial, apresentou quase 90 emendas, que corresponde a aproximadamente a um quarto de todas as emendas apresentadas pelos 28 deputados da Comissão. As emendas propostas para a elaboração do primeiro substitutivo pode ser consultadas no parecer do Dep. Leonardo Quintão (PMDB-MG) sobre o Projeto Lei nº 37/2011 (e apensados PLs 463/2011, 3403/2012, 4679/2012, 5.138/13, 5306/2013 e 5807/2013) de 8 de abril de 2014. Disponível em: http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1245211&filename=PRL+2+PL0037 11+%3D%3E+PL+37/2011

103 Comissão Especial destinada a proferir parecer sobre o Projeto De Lei Nº 37/2011. Substitutivo ao Projeto De Lei Nº 37, de 2011, e Apensos. 28 de agosto de 2015. Disponível em: http://www2.camara.leg.br/atividade- legislativa/comissoes/comissoes-temporarias/especiais/55a-legislatura/pl-0037-11-

atividade que tenha potencial de criar impedimento à atividade de mineração depende de prévia anuência da ANM” e o artigo 136, por sua vez, previa a permissão de mineração, inclusive o beneficiamento, em unidades de conservação de uso sustentável.

No final, uma série de fatores concorreu para que nenhuma das versões do Novo Código fosse votada. No dia 5 de novembro de 2015, na cidade de Mariana, em Minas Gerais, a barragem do Fundão da mineradora Samarco, controlada pela Vale e pela BHP Billiton, rompeu liberando os rejeitos da produção de minério de ferro sobre o povoado de Bento Rodrigues, onde morreram 19 pessoas, e sobre o Rio Doce, por onde o rejeito espalhou-se até atingir a foz do rio no Oceano Atlântico. Para alguns autores, esta tragédia pode inclusive se tornar, no Brasil, um “grande marco do fim do megaciclo das commodities” (ver POEMAS, 2015: 15). Seguramente, ela realçou algumas das contradições de um modelo de desenvolvimento brasileiro no período, que são particularmente importantes para compreender os desdobramentos em torno do desenvolvimento do novo Código. Afinal, como um novo código da mineração em pleno século XXI, encabeçado inicialmente por um governo “progressista”, poderia abster-se de mencionar medidas relacionadas às intervenções socioambientais diretas e inevitáveis da mineração? Após a tragédia da Samarco, a pressão dos movimentos sociais, de pesquisadores e de comunidades atingidas parecia ganhar proporções e uma nova versão do Código que incluía algumas de suas demandas chegou a ser apresentada.104 Contudo, em fins de 2015, a crise política que culminaria no impeachment da presidente Dilma já estava instalada e impactava diretamente no andamento das atividades da Câmara dos Deputados.

104 Ver Comissão Especial destinada a proferir parecer sobre o Projeto De Lei Nº 37/2011. Substitutivo ao Projeto De Lei Nº 37, de 2011, e Apensos. 26 de novembro de 2015. http://www2.camara.leg.br/atividade- legislativa/comissoes/comissoes-temporarias/especiais/55a-legislatura/pl-0037-11-

3.2. Disputas em torno das legislações ambientais: “interesse nacional” versus