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1 ESTUDOS SOBRE O FANDANGO CAIÇARA

1.5 Breve estudo sobre as marcas dandão e chamarrita na família Pereira

Apesar do grande volume de pesquisas, existem poucos trabalhos de análise musical publicados sobre o fandango tocado pelos integrantes da família Pereira. Consciente da complexidade e diversidade dessa manifestação popular e com o intuito de aprofundar questões musicais sobre o fandango realizarei a seguir uma breve análise das marcas bailadas tocadas pelos Pereira.

Ribeiro (2002) realizou um levantamento de diversas formas de análise utilizadas por etnomusicólogos e apontou a questão da transcrição das músicas de tradição oral, que por si só, já é uma forma de análise. Segundo ele, abordagens mais recentes tendem a utilizar conceitos êmicos na transcrição e análise “como forma de se aproximar mais do que a própria sociedade julga ser música.” (RIBEIRO, 2002, p.71- 72).

O equilíbrio, ou desequilíbrio, entre a análise do discurso musical propriamente dito e seu significado e forma de construção na sociedade é também ponto de reflexão entre os etnomusicólogos. Segundo Pelisnki (2000), no modelo analítico de Arom, que entendeu a etnomusicologia como musicologia sistemática, há um enfoque maior à matéria musical e sua

sistemática, ficando as questões etnográficas de certa maneira reduzidas. Contrário a isso Blacking, da antropologia cultural, pressupôs que o simbolismo social é o foco da etnomusicologia (PELISNKI, 2000).

O fato é que, como reconheceu Ribeiro (2002), na etnomusicologia com a “falta de um método específico e acolhido por `todos´, têm aparecido dezenas de abordagens que usam a música como cerne, mas se apropriam de teorias diversas” (RIBEIRO, 2002, p.69), o que causa muitas vezes uma individualidade de estudos.

O quadro descrito anteriormente não é muito promissor. As ferramentas de análise da música erudita e da música popular se mostram inadequadas para uma tentativa de análise da música tradicional devido a diferenças de natureza entre estas categorias musicais. A etnomusicologia, por sua vez, oferece uma série de reflexões pertinentes, mas também revela a diversidade não só dos objetos de estudo, mas também de métodos de análise.

Assim para a realização desta análise parto de uma categoria êmica, isto é, criada e utilizada pela comunidade cujas músicas serão analisadas. Em busca de compreender melhor a musicalidade própria do fandango, tentei caracterizar duas formas musicais, apontadas pelos próprios fandangueiros como sendo distintas entre si: o dandão e a chamarrita.

As marcas valsadas, também chamadas de bailadas, são as mais tocadas em um baile, e são denominadas por alguns fandangueiros de limpa-banco, pois como elas não possuem a complexidade coreográfica do batido, na hora dos valsados, quase todos dançam, ninguém fica sentado. É para os homens, de certa forma, o momento de descansar do batido, que exige fisicamente muito mais do que o bailado.

Os nomes das modas dandão e chamarrita não designam uma música específica, mas sim uma estrutura musical específica. Existem muitas chamarritas e muitos dandãos, e coreograficamente falando, não há diferença entre eles. É na música que essas formas se diferenciam.

Para compreender as formas musicais dandão e chamarrita, foram analisadas seis modas gravadas pela família Pereira no CD “Viola Fandangueira” (FAMÍLIA PEREIRA; VIOLA QUEBRADA, 2002). O CD é um álbum duplo gravado pelo grupo Viola Quebrada e família Pereira em 2001. Segundo informações que constam no encarte do CD, as músicas gravadas pelos membros da família Pereira foram gravadas inteiramente ao vivo com todos tocando ao mesmo tempo em um estúdio, com exceção da rabeca que foi gravada posteriormente. É uma gravação com qualidade suficiente para um estudo musical.

As faixas analisadas foram: 01- Chamarrita (Moreninha)

03- Dandão (Avião no estrangeiro) 05- Chamarrita

08- Dandão (Mulata faceira) 14- Chamarrita (Adeus morena) 15- Dandão (Duas moças na janela)

As marcas acima foram analisadas conforme seus aspectos rítmicos, melódicos, poéticos, estruturais e harmônicos e as melodias foram transcritas para a notação da música tradicional. Algumas opções foram feitas durante as transcrições, que serão explicadas no decorrer da análise.

A primeira opção foi determinar que a voz mais aguda era a melodia. Vale ressaltar, porém, que não podemos entender aqui a melodia mais aguda como voz principal, como a mais importante. Em um fandango, na dupla de cantadores há sempre o que canta os versos ou, como os fandangueiros dizem, “o que puxa os versos e o outro que vai atrás”. Muitas vezes o violeiro que puxa os versos está cantando a voz mais aguda, mas às vezes pode estar fazendo a voz mais grave, chamada por eles de baixão. Sendo assim, em termos de importância a voz do fandangueiro que puxa é a principal, mas para a presente análise tomaremos como referência a melodia mais aguda.

Tanto nos dandãos quanto nas chamarritas é mantida uma estrutura melódica que se repete no decorrer da marca, porém com alteração da letra. Para a transcrição tomou-se como referência a melodia dos primeiros versos gravados já que não há grandes diferenças se comparados com os demais, principalmente se observadas as notas que são soadas no tempo forte. As diferenças aparecem nas notas de passagem, mas não serão analisadas no presente estudo.

Com relação ao andamento, há questões a serem consideradas, conforme a tabela 3 a seguir.

Chamarrita Faixa Nome Bpm 1 Moreninha 114 5 Chamarrita 113 14 Adeus Morena 115 Média 114 Dandão Faixa Nome Bpm 3 Avião no estrangeiro 106 8 Mulata Faceira 107

15 Duas moças na janela 107

Média 107, 3

Tabela 3 - Andamento das marcas valsadas

É possível perceber que as chamarritas aqui apresentadas possuem um andamento mais rápido que os dandão. No entanto, a amostra é pequena e a diferença entre os andamentos também, para que se possa generalizar.

Ao realizar a transcrição, um dos aspectos mais complexos foi o da divisão rítmica, por dois motivos principais. Em primeiro lugar porque a divisão variava conforme a letra cantada e em segundo, porque, se houvesse uma forma de escrever exatamente o que foi cantando, certamente seria muito difícil de ler. Foi feita então uma adaptação rítmica a padrões mais simples contando no máximo com uma divisão de quatro partes do tempo. A escolha da fórmula de compasso deu-se através da consulta a outras transcrições de fandango já publicadas.

Um rápido estudo das transcrições já revela outra diferença entre essas marcas valsadas: a presença das síncopas. Nos dandão, além da presença constante das síncopas, na maioria das vezes as colcheias (metade do tempo) são utilizadas, ficando as semínimas normalmente nos finais de verso.

Nas chamarritas analisadas não há a presença da síncopa. Além disso, de um modo geral há uma quantidade menor de notas por compasso nas chamarritas, e na maior parte do tempo, são utilizadas notas de tempo inteiro ou meio tempo (semínimas e colcheias).

Figura 1 - Transcrição do dandão Mulata Faceira

Quanto à afinação, foram detectadas duas variações importantes. Tomando como referência a nota lá, há faixas do CD em que a afinação está próxima ao lá 430hz e outras próxima ao lá 445hz. No entanto isso não é relevante para a distinção entre essas formas musicais em questão, pois em um baile de fandango, dandão e chamarrita se alternam sem que o violeiro altere a afinação da viola. Pode-se atribuir essa variação aos dias diferentes de gravação, mas esta hipótese não pôde ser verificada.

Os violeiros da família Pereira utilizam na viola a afinação intaivada (ver tabela 2). Gulin, um dos maiores pesquisadores do fandango paranaense, publicou a afinação da viola com as cordas soltas (2002).

Figura 2 - Afinação das cordas soltas da viola

A sexta corda, chamada de cantadeira, ocupa apenas metade do braço da viola. Ela não é dedilhada. As 5ª e 4ª cordas em algumas regiões são utilizadas em pares, afinadas em oitava, outras vezes não.

Em nenhum momento os tocadores utilizam todas as cordas soltas. Na realidade há basicamente duas posições, uma para o acorde de tônica e outra para o acorde de dominante.

Figura 3 - O acorde de tônica

A afinação das cordas fica, portanto:

Figura 4 - Afinação das cordas no acorde de tônica Posição utilizada para acorde de dominante:

Figura 5 - O acorde de dominante A afinação das cordas fica, portanto:

Figura 6 - Afinação das cordas no acorde de dominante

Como é possível perceber através da análise da viola, que é na maioria das vezes o único instrumento harmônico em um fandango, a tonalidade das marcas gravadas é o ré maior. No entanto não é possível afirmar que todo fandango é em ré porque a afinação das

cordas pode variar, mas a relação intervalar entre elas é fixa, nos restando, portanto, a afirmação de que as marcas de um fandango são tocadas em modo maior.

A utilização dos acordes é um dos elementos de diferenciação entre as duas estruturas de marcas valsadas que aqui estão sendo analisada. Nos dandão, os violeiros alteram os acordes de tônica e dominante a cada compasso, nas chamarritas isso ocorre a cada dois compassos, existindo assim uma variação no ritmo harmônico.

A extensão utilizada pelos cantadores é semelhante nas duas formas musicais, compreendida entre a nota mi 2 e o sol 3.

Figura 7 - Extensão utilizada pelos cantadores

De um modo geral, não há grandes saltos, e a melodia é conduzida através de graus conjuntos. Os maiores saltos ascendentes (oitava, sétima e sexta) acontecem entre a última nota de um verso para a primeira de outro, estando, portanto, em frases musicais diferentes. Há também a presença de quartas descendentes. Nesses casos a segunda nota do intervalo é uma nota de passagem. Há também a utilização constante de notas repetidas.

Em relação ao contorno melódico há traços semelhantes nos dandão e nas chamarritas analisadas, são eles: o primeiro movimento é ascendente e no final dos versos o movimento é sempre descendente. Não foram encontrados traços característicos do tratamento melódico que diferenciassem os dandão das chamarritas. Os versos das chamarritas analisadas são formados, em sua maioria, por sete sílabas, chamados por isso de heptassílabos (redondilha maior). A estrofe é formada de quatro versos que se alternam de maneiras diferentes conforme a chamarrita cantada. Em todas elas a rima é cruzada, isto é, o segundo verso (que chamaremos aqui de verso B), rima com o último (verso D), conforme a figura 9 e a tabela 4 a seguir:

Figura 9 - Transcrição da chamarrita da faixa 05

Atirei mas não matei A Sabia que eu não matava B Atirei mas não matei A Sabia que eu não matava B Atirei pra adiantar C A quem adiante andava D Atirei pra adiantar C A quem adiante andava D

Tabela 4 - Esquema de rimas da chamarrita da faixa 05

Nas outras chamarritas analisadas algumas expressões intercalam os versos como “ai moreninha” e “adeus morena”, formando pequenos refrões internos. A ordem em que estes aparecem e se repetem é outra. Conforme as tabelas 5 e 6.

Primeiro cantava bem A Agora não canto mais, B Ai moreninha refrão interno

Agora não canto mais, ai B Cantava bem, ai A Agora não canto mais B

Agora não canto mais B Quem me ouviu mais há de ver, C Ai moreninha refrão interno

A vossa saudade é o que faz, ai D

Mais há de ver, ai C

A vossa saudade é o que faz D Tabela 5 - Esquema de rimas da chamarrita Moreninha

Fala viola falai Fala viola falai Ajudai o cantador Fala viola falai Ajudai o cantador Adeus morena A A B A B refrão interno Ajudai o cantador Ensinai a quem não sabe Ensinai a quem não sabe Ensinai a quem não sabe No mundo tratar de amor Adeus morena B C C C D refrão interno

Tabela 6 - Esquema de rimas da chamarrita Adeus, morena

A estrutura musical está essencialmente ligada à estrutura poética. De um modo geral, os fandangueiros executam uma estrofe, e há então um intermezzo instrumental. Depois a melodia se repete com a vocalização de outros versos, vem novamente o intermezzo e assim por diante. Na gravação do CD, foram cantados uma média de 4 versos, mas em um baile essa quantidade é maior.

Uma clara diferença na estrutura poética entre dandão e a chamarrita é a presença do refrão. Dos dandão estudados todos possuíam refrão.

Figura 10 - Transcrição do dandão Duas moças na janela

Aqui venho de tão longe A Rompendo marés e vento B Aqui venho de tão longe A Rompendo marés e vento B Somente pra não faltar C No vosso divertimento D

Tabela 7 - Esquema de rimas do dandão Duas moças na janela

O refrão é formado por duas estrofes de 4 versos, onde a rima B com D é mantida, conforme a tabela 8:

Fui andando pela rua A Encontrei com dois soldados B Fui andando pela rua A Encontrei com dois soldados B Me deram vozes de preso C Com ordem do delegado D

Duas moças na janela, disseram elas A Não prendam meu namorado B Duas moças na janela, disseram elas A Não prendam meu namorado B Com polícia não se brinca C

Merece ser castigado D

Tabela 8 - Esquema de rimas do dandão Duas moças na janela

Além disso, em um dos dandão estudados o refrão é cantado entre o segundo e o terceiro verso da estrofe, conforme explicitado a seguir na tabela 9:

Oi lai, meu bem, refrão interno

Eu aqui com os camarada A Oi lai, meu bem, refrão interno

Parece que já sabemos B Estava na minha roça, meu bem

Eu estava trabalhando, meu bem Escutei uma zoada, meu bem

Que pro ar ia voando refrão verso É o avião no estrangeiro

Oi lai, meu bem

Que ia pro Rio de Janeiro

Oi lai, meu bem, refrão interno

Fazemos aceno com o olho C Oi lai, meu bem, refrão interno

Já que falar não podemos D

Figura 11 - Transcrição do dandão Avião no estrangeiro

É válido reforçar que para este estudo, apenas um verso está sendo utilizado para exemplificar, no entanto cada moda possui de 4 a mais versos. Alguns versos cantados pelos fandangueiros são tradicionais, fazem parte de um repertório passado de geração para geração; outros, segundo descrições, são improvisados na hora.

Como resumo das diferenças entre os dandão analisados e as chamarritas, temos: 1) No dandão há a presença da síncopa;

2) Nas chamarritas há um número menor de notas por compasso do que nos dandão; 3) Nos dandão os acordes de tônica e dominante são alternados a cada compasso e nas chamarritas isso ocorre a cada dois compasso, sendo assim, no dandão, o ritmo harmônico é mais rápido que o da chamarrita;

4) As chamarritas não possuem refrão e os dandão sim.

Vale ressaltar que essa separação entre dandão e chamarrita, é uma categorização realizada pelos próprios fandangueiros.