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CAPÍTULO 2: O QUE É COMPETÊNCIA? UMA ANÁLISE COM

2.1 Breve Histórico da Inserção do Termo Competência na Literatura

Competência é um termo comumente usado tanto no cotidiano quanto na academia, em diversos domínios, como, por exemplo, no campo educacional, prática profissional, gestão de pessoal e administração de negócios. O termo pode ser atribuído a pessoas, grupos sociais ou a instituições30. Em dicionários da língua espanhola, francesa, inglesa e portuguesa observamos diferentes definições para o termo, que variam seus pressupostos com base na origem, definição ou em sinônimos para “competência”:

Competência: competência, aptidão; idoneidade; direito; atribuição. Competente: competente, adequado, apto (PEREIRA; SIGNER, 1996, p.63). Competência: conhecimento aprofundado e reconhecido (dentro de um domínio); aptidão legal (para instruir, julgar) (MORVAN, 2014, p.138).

Competência: 1) competência em fazer algo: a habilidade de fazer bem alguma coisa; 2) o poder que uma corte, uma organização ou uma pessoa tem para lidar com algo; 3) competência técnica: habilidade necessária para uma tarefa específica (WEHMEIER, 2000, p.260).

Competência: 1) faculdade concedida por lei a um funcionário, juiz ou tribunal para apreciar e julgar certos pleitos ou questões; 2) qualidade de quem é capaz de apreciar e resolver certo assunto, fazer determinada coisa; capacidade, habilidade, aptidão, idoneidade; 3) oposição, conflito, luta; 4) conhecimento linguístico, parcialmente inato e parcialmente adquirido, que permite a um indivíduo falar e compreender sua língua.

Competente: 1) que tem competência (1, 2 e 4); legal, suficiente, idôneo, apto. 2) próprio, adequado (FERREIRA, 1999).

30 Neste artigo trataremos apenas das discussões relativas às competências individuais. Existe ainda a

discussão sobre as competências coletivas ou de grupo, que são tratadas em um corpus de literatura diferente, uma vez que as teorias e os conceitos empregados para o nível individual ou para o nível coletivo se dirigem para fenômenos fundamentalmente diferentes (WEINERT, 2001).

Dentre as definições apresentadas, podemos constatar que a popularização do termo levou a uma compreensão generalizada de que ser competente é ter a capacidade adequada para produzir uma conduta de sucesso dentro de um domínio ou tarefa específica. É provável que esta ideia derive do fato de que o conceito de competência vem sendo relacionado a uma especificidade de alguém para fazer algo surgiu desde o final do século XV, quando era associado à legitimidade de lidar, julgar e/ou apreciar problemas específicos, conferida às instituições jurídicas (BRONCKART; DOLZ, 2002)31. No final do século XVIII, o significado de competência se expandiu para habilidade individual, designando toda e "qualquer capacidade advinda do conhecimento e da experiência" (ARDOUIN, 2004, p. 31).

Durante o século XX, o conceito se tornou mais popular e passou a ser usado por diferentes domínios do conhecimento. Na década de 1950, White (1959) introduziu na literatura norte-americana o termo “competência”, associado à ideia de desempenho de alta performance e motivação. Este autor apontou os diversos sinônimos utilizados na época para o termo – capacidade, aptidão, eficiência, expertise e habilidade, e tentou separá-lo dos demais com base na ideia de que competência seria um comportamento aprendido, ou uma habilidade desenvolvida, a partir da efetiva interação com o meio. Ele reforçou a ideia de que a competência se refere à capacidade de um organismo de interagir de forma eficaz com o seu ambiente e que, em organismos com sistema nervoso plástico, tal como o dos humanos, a competência pode ser potencializada por fatores motivacionais tais como o instinto, mas não é derivada apenas destes. Por exemplo, os comportamentos de sugar, engatinhar e a linguagem seriam competências desenvolvidas e aprimoradas gradualmente a partir de estímulos e da interação com o meio. Propagou-se, assim, a ideia de que, se assumíssemos a

31 Essa ideia da competência relacionada ao poder de apreciar e julgar ainda é expressa nos dias de hoje

nos dicionários de língua portuguesa, inglesa e francesa (FERREIRA, 1999; WEHMEIER, 2000; MORVAN, 2014).

existência de uma competência biologicamente ideal inata, ela só seria desenvolvida a partir dos amoldamentos e dos contextos aos quais a pessoa fosse submetida, necessitando de aprendizagens formais ou informais (BRONCKART; DOLZ, 2002). Nesses termos, portanto, a pessoa não nascia, mas tornava-se competente à medida que interagia com o mundo.

Na década de 1960, Chomsky começou a publicar seus trabalhos, que apresentavam uma das teorias mais influentes nas pesquisas sobre competências. Em contraposição às ideias de White sobre competências adquiridas, Chomsky distinguiu competência de desempenho e adotou uma perspectiva funcional: “Nós, portanto, fazemos uma distinção fundamental entre competência (o conhecimento do falante/ouvinte da sua linguagem) e o desempenho (o uso real da linguagem em situações concretas)‛ (CHOMSKY, 1965, p. 4). Nesse contexto, consequentemente, a competência é analisada como uma capacidade inata das pessoas, enquanto o desempenho seria a performance delas ao usar essa capacidade em contextos/situações reais. Analisada a partir desta abordagem, a pessoa nasce competente. Este foi o início da utilização do termo “competência” em oposição a desempenho.

A partir de então, as competências passaram a ser descritas nas Ciências Humanas como determinadas características inerentes da personalidade (BRONCKART; DOLZ, 2002). A expressão “competência linguística”, por exemplo, era usada em oposição ao behaviorismo linguístico32, para dar a ideia de que o desenvolvimento da linguagem se dava devido a uma capacidade inata e não somente ao aprendizado induzido por constantes exposições a situações de estímulo e resposta (BRONCKART; DOLZ, 2002). Baseados nesses pressupostos, na década de 1970 surgiram nos Estados

32 A ideia do behaviorismo linguístico, criticada por Chomsky, pauta-se na ideia de que tanto o

aprendizado das primeiras palavras quanto a formação de respostas verbais complexas estão atrelados aos mecanismos de contingências de reforço, ou seja, uma explicação essencialmente comportamental para a atividade linguística e sua aquisição.

Unidos os testes para mensurar as competências individuais, como alternativa aos tradicionais testes de inteligência cognitiva (DEIST; WINTERTON, 2005). Foi então que o termo passou a ser atraente para os contextos relativos ao mercado de trabalho, à formação e à escola (BRONCKART; DOLZ, 2002). Como consequência desse uso, os empregadores passaram a dar mais valor aos conhecimentos práticos do que aos conhecimentos certificados, ou seja, valia mais quem soubesse executar determinadas tarefas, ainda que não tivesse passado por uma formação específica na área, do que quem possuísse diplomas sem experiência prática. Nascia ai a valorização pelo “notório saber” em oposição | formação específica. As empresas queriam funcionários com competências gerais que fossem capazes de se adaptar às diferentes situações e de tomar decisões frente às diferentes tarefas enfrentadas no cotidiano profissional.

Dessa forma, o conceito de competência passou a ser comumente utilizado para caracterizar as dimensões potenciais e/ou efetivas dos trabalhadores com atuações eficazes em relação às necessidades das empresas. Algumas interpretações desse uso tendiam para a desvalorização de especialistas e do conhecimento acadêmico, favorecendo a visão dos funcionários como meros executores (DOLZ; OLLAGNIER, 2002) e o conceito de competência passou a ser compreendido como aprendizagem em nível de desempenho individual no contexto de uma tarefa.

Na década de 1980, o termo continuou ganhando forças na formação profissional. Na França, por exemplo, a discussão sobre competências já começou relacionada a ferramentas e instrumentos para gestão de recursos humanos voltados para a necessidade de desenvolver mão de obra qualificada para as empresas (DEIST; WINTERTON, 2005). Em paralelo, o Reino Unido introduziu uma abordagem baseada em competência para o programa de educação e formação profissional (Vocational Education and Training - VET) (DEIST; WINTERTON, 2005). Com isso, pretendia-se mitigar as deficiências endêmicas da formação profissional. A iniciativa expandiu-se para outros países da comunidade europeia e permanece em evidência até os dias de

hoje, com a atuação do Centro Europeu para o Desenvolvimento da Formação Profissional (European Centre for the Development of Vocational Training - CEDEFOP) e os programas de treinamento continuado baseados em competência (Trainers in continuing VET: emerging competence profile) (CEDEFOP, 2013).

Os movimentos para a qualificação de mão de obra da década de 1980 tiveram grande influência para que as competências funcionais e as habilidades para desempenho no mercado de trabalho permanecessem em evidência na década de 1990. Em diferentes países surgiram documentos e listas com as competências mais relevantes que deveriam ser priorizadas nos programas de treinamento e desenvolvimento profissional (DEIST; WINTERTON, 2005). No Reino Unido, por exemplo, o governo lançou em 1996 uma revisão sobre as qualificações profissionais que expandia a definição de competência de aprendizagem como desempenho individual no contexto de uma tarefa, para a capacidade de aplicar o conhecimento, a compreensão e as habilidades na realização de tarefas de acordo com as normas exigidas pelo empregador, incluindo a identificação e a resolução de problemas (DEIST; WINTERTON, 2005). Na mesma linha, os franceses fundaram a Agência Nacional de Emprego (Agence Nationale pour l’Emploi), baseada em um sistema de competências, e os alemães adotaram o conceito de “Schlu¨sselqualifikationen” (competências-chave) para referirem-se à nova necessidade da formação de um profissional com competências gerais, capaz de resolver os problemas do seu contexto de trabalho com autonomia e eficiência (DEIST; WINTERTON, 2005).

Neste mesmo período, o fortalecimento do termo dentro do contexto da formação profissional se expandiu intensamente para os debates educacionais. O ponto chave para essa expansão parece ter sido a compreensão generalizada de que a pessoa competente seria aquela capaz de resolver situações complexas, através da combinação de conhecimentos e habilidades aplicados de forma eficaz para um objetivo (WESTERA, 2001). A partir desse conceito, supunha-se que tanto o mercado de trabalho quanto os

educadores teriam facilidade para mensurar33 as capacidades, as qualificações e os conhecimentos individuais (WESTERA, 2001).

A emergência da noção de competência na educação foi um sinal de mudanças epistemológicas, uma vez que sua utilização veio atrelada à concepção e possibilidade do desenvolvimento de estudantes atuantes e autônomos, ao invés de reprodutores/executores de conhecimentos e tarefas (DOLZ; OLLAGNIER, 2002). Essa visão dominou a literatura do campo educacional e muitos países adotaram as competências em seus currículos como forma estratégica para promover a mudança das práticas educacionais, de tal forma que elas fossem mais "ativas" ao invés da "transmissão passiva" (DOLZ; OLLAGNIER, 2002; DEIST; WINTERTON, 2005).

Consequentemente, a década de 1990 foi marcada por debates e reformas curriculares que colocaram as competências em evidência no processo de ensino e aprendizagem. Muitos países estabeleceram quais seriam as competências mínimas que seus estudantes deveriam ter desenvolvido ao fim da escola primária e aos poucos essa abordagem se expandiu para os níveis pré-primário e secundário (DELHAXHE, 2006; PERRENOUD, 1997; BRASIL, 1996).

Como reflexo dessa corrida pela inserção das competências nos currículos, podemos observar que a literatura dos anos 2000 do campo educacional apresenta uma grande quantidade de artigos, livros e documentos com reflexões sobre esse processo. Entre abordagens epistemológicas, empíricas e históricas, autores e autoras argumentam para responder: ‚o que é competência?‛ (WESTERA, 2001; WEINERT, 2001; FLEURY; FLEURY, 2001; DOLZ; OLLAGNIER, 2002; BRONCKART; DOLZ, 2002; ARDOUIN, 2004; ROEGIERS, 2004; DEIST; WINTERTON, 2005; PERRENOUD, 2011); ‚Como avaliar as competências individuais?‛ (LASNIER, 2000; MACEDO, 2002; PERALTA, 2002;

33 Apesar dessa ideia generalizada, a literatura atual do campo educacional ainda é impregnada de

discussão sobre como avaliar as competências e questiona se, de fato, podemos avaliar as competências individuais.

SANTOS, 2003; DOOLEY et al., 2004; DE KETELE; GERARD, 2005; DE KETELE, 2006) ‚Quais são as competências mais relevantes a serem desenvolvidas nos cidadãos e nas cidadãs?‛ (PERRENOUD, 1997; RYCHEN; SALGANIK, 2003; OECD, 2005b; DELHAXHE, 2006; GORDON, et al., 2012; CEDEFOP, 2013) ‚Quais os meios e as estratégias para se desenvolver as competências das pessoas?‛ (LASNIER, 2000; EPSTEIN; HUNDERT, 2002; TEN DAM; VOLMAN, 2004; ZABALA, 2000; PERRENOUD, 2011); ‚Quais competências individuais são desenvolvidas durante os percursos de formação?‛ (PERRENOUD, 2000a; JAKOBSEN et al., 2003; RAY; MARGARET, 2003; OECD, 2005a; SANDERS; SULLINS, 2005; DURLAK et al., 2007; HARTIG et al., 2008 ; OECD, 2009; SÁENZ, 2009 ; OECD, 2012; KELLY et al., 2013; OECD, 2014); entre outras questões que aparecem nas literaturas nacional e internacional do campo educacional.

As questões sobre como desenvolver e avaliar as competências parecem não se esgotar e se repetem ao longo do tempo, fomentadas pela incerteza do que seriam as próprias competências. O debate sobre o que vale mais, os saberes eruditos (universitários) ou os saberes a partir da experiência prática, continua em voga quando o assunto é a formação profissional (tal como a formação docente, por exemplo). O histórico apresentado nesta seção sobre a utilização do termo “competência” nos mostra a flutuação da noção de "ser" ou "tornar-se” competente e como isso levou | atual tendência de tomar por “competente” aquela pessoa que tenha melhor desempenho no saber fazer (savoir faire) do que no domínio de conhecimentos factuais (savoir).

2.2 Polissemia, Mal-Entendidos e Objeções Sobre o Uso do Termo