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Breve histórico dos estudos sobre gramaticalização

2. GRAMATICALIZAÇÃO

2.2. Breve histórico dos estudos sobre gramaticalização

Faremos, agora, um breve histórico dos estudos sobre de gramaticalização. Segundo Lehmann (1982), foi Antoine Meillet, já no século XX, quem primeiro usou o termo

gramaticalização no sentido em que é conhecido hoje. O termo, porém, é bem mais antigo, pois a

idéia de que formas gramaticais evoluem de formas lexicais, isto é, que formas presas evoluem de formas livres, já tinha sido exposta pelo filósofo francês Condillac, em 1746. Em 1786, John Horne Tooke asseverou que preposições são derivadas de nomes e verbos. Mas foi Wilhelm von Humboldt, em 1822, que chegou a conclusões mais precisas sobre o assunto, e propôs quatro

Para Humboldt (1822), a significação das formas gramaticais sofre uma mudança de quatro estágios:

1. as categorias gramaticais estão completamente escondidas em lexemas e nas configurações semântico-sintáticas de expressões idiomáticas. É o que ocorre com as línguas isolantes;

2. as palavras passam a ter uma ordem fixa, e algumas formas vacilam entre palavras plenas de conteúdo e palavras esvaziadas, atuando apenas com funções gramaticais. É o que também ocorre com as línguas isolantes;

3. estágios de aglutinação: as palavras vacilantes são aglutinadas e sufixos “grudam-se” a palavras plenas. É o que ocorre com as línguas aglutinantes;

4. estágio de flexão: palavras gramaticais ligam-se a raízes, com alteração do esquema acentual, apagamento dos limites entre as palavras e criação de regras de ligação. É o que ocorre com as línguas flexionais.

Resumindo o que foi dito acima, esses quatro estágios propostos por Humboldt correspondem aos tipos morfológicos da tipologia lingüística de seu tempo: os estágios 1 e 2 correspondem ao tipo isolante; o estágio 3 corresponde ao tipo aglutinante; e o estágio 4, ao tipo flexional.

A teoria de Humboldt ficou conhecida como a teoria da aglutinação e foi seguida por Franz Bopp, Karl Brugmman, Georg von Gabelentz e por August Schleicher.

Para Gabelentz, a gramaticalização começa a ser vista como o resultado de duas forças: a tendência à articulação e a tendência à diferenciação. A evolução não é linear, é basicamente clítica. Por esse motivo, é designada pela “metáfora do espiral”.

Em 1912, Meillet publica o artigo “L’evolution des formes gramaticales”. Mas Meillet não se interessou por gramaticalização pelas implicações tipológicas, mas pela explicação de certos fatos da história das línguas indo-européias. O lingüista considera a existência de três tipos de classes de palavras: palavras principais, palavras acessórias e palavras gramaticais. Entre elas, propõe uma transição gradual, com o enfraquecimento de sentido e de forma das palavras principais e das palavras acessórias23.

23 “L’affaiblissement du sens et l’affaiblissement de la for des mot accessoires vont de pair; quand l’um et l’autre sont assez avancés, le mot acessoire peut finir par ne plus être qu’um élément prive de sens propre, joint à um mot principal pour em marquer le role gramatical. Le changemet d’un mot en élément gramatical est accompli”. (MEILLET, 1912, p.139)

Meillet acrescenta que as línguas seguem uma espécie de desenvolvimento, de evolução em espiral: surgem palavras novas para novas idéias; algumas palavras perdem força, pelo uso, se desgastam, tornando-se instrumentos gramaticais; podem surgir novas palavras para expressar novos sentidos; elas perdem força novamente e o ciclo se repete indefinidamente24.

Meillet menciona dois importantes fatores responsáveis pelas mudanças na língua – a expressividade e o uso; e cita, primeiramente, o termo “gramaticalização”, como a “atribuição de característica gramatical a uma palavra anteriormente autônoma”. Depois retoma o termo para opô-lo à analogia. Gramaticalização e analogia são, para Meillet, os dois mais importantes processos de mudança lingüística.

A analogia, nas palavras do autor, consiste em fazer uma forma tomando o modelo de outra, ou seja, as formas que surgem na língua seguem modelos já existentes, considerando o sistema gramatical da língua em que são criadas, sempre que houver necessidade.

Gonçalves (1994) nos informa que Vendryès, ao falar sobre “as transformações morfológicas”, enumera duas tendências gerais que dominam essas transformações: a analogia e a transformação de palavras plenas em palavras vazias. O esvaziamento, que corresponde ao processo de gramaticalização, pode ser exemplificado, na língua francesa, por meio do substantivo homme que se tornou instrumento gramatical (homme > on) em on dit (diz-se). Em inglês, os verbos to do, to will podem ter seu significado fonte esvaziado25 ao se tornarem verbos auxiliares, como em Do you see?, I will go. Outro exemplo é o substantivo latino mente que, hoje, serve de sufixo formador de advérbio de modo.

Ao contrário de Meillet, Karl Vossler não acredita serem apenas a analogia e a gramaticalização os componentes do sistema gramatical e apresenta seis processos de mudança: a analogia, a gramaticalização, a contaminação (considerados uniformizadores); e a mudança fonética, a mudança semântica e a diferenciação (considerados diferenciadores).

Para Vossler26, a gramaticalização é um esvaziamento do significado de palavras plenas. Ocorre o processo sempre que as palavras independentes, por conta do uso, tornam-se meros

24

“Lês langues suivent ainsi une sorte de développement em spirale; elles ajoutent de mots accessoires pour obtenir une expression intense; ces mots s’affaiblissent, se dégradent et tombent au niveau de simples outils grammaticaux; on ajoute de nouveaux nots ou des mots différents en vue de l’expression; l’affaiblissement recommence, et ainsi san fin” (MEILLET, 1912, p.139)

elementos formais, sufixos ou prefixos. É o caso dos comparativos sintéticos latinos. O sufixo –

ior (de facilior) foi perdendo a idéia comparativa, e o falante passou a utilizar formas com magis

ou plus facilis. Os demonstrativos latinos ille, iste evoluíram para simples artigos, e o verbo

habere perdeu seu significado de ter, possuir, para se transformar em morfema indicador de

tempo.

Seguindo a tradição humboldtiana, Edward Sapir se interessou por gramaticalização – mesmo sem usar o termo – apenas para estabelecer um contínuo de diferentes tipos de conceitos lingüísticos como uma base para a tipologia sincrônica.

Durante o primado do Estruturalismo, questões sobre gramaticalização ficaram adormecidas. Fora do estruturalismo, entretanto, a tradição indo-europeísta dos estudos sobre gramaticalização permanece ininterrupta. Os principais representantes da época são Kurylowiscz e Benveniste. Kurylowiscz definiu gramaticalização, no artigo “The evolution of grammatical categories” (1965), como a transformação de um item gramatical em um morfema, ou de uma forma já gramatical em uma mais gramatical.

Já na década de 70, a concepção de evolução tipológica é revista por Carleton T. Hodge e Talmy Givón. Hodge distingue apenas dois estágios de evolução, que correspondem aos estágios 3 e 4 de Humboldt27: um de sintaxe forte e morfologia fraca; e outro de sintaxe fraca e morfologia forte. Também criou o slogan “a sintaxe de ontem é a morfologia de hoje”.

Essa afirmação foi reformulada por Givón (1971), ao declarar que “a sintaxe de hoje é o discurso pragmático de ontem” (Givón, 1979). O funcionalista propôs, assim, a seguinte escala

Discurso > Sintaxe > Morfologia > Morfofonêmica > Zero. Givón sustenta que, no processo de

gramaticalização, o modo pragmático de comunicação dá lugar ao modo sintático; com isso, expressões lingüísticas com vinculação sintática fraca se transformam em expressões sintáticas fortemente ligadas.

O foco até aqui era na oposição entre o Léxico e a Gramática. No funcionalismo givoniano, a preocupação alarga-se chegando ao Discurso, considerando-o, inclusive, mais importante que a Gramática. Tal concepção gerou dois importantes desdobramentos: 1. a sintaxe icônica, que revela um grau de não arbitrariedade das estruturas com relação ao que elas significam; 2. a concepção de gramática emergente (HOPPER, 1988), que entende a gramática

como um conjunto de parcelas, cujo estatuto vai sendo constantemente negociado na fala, não podendo, em princípio, ser separado das estratégias de construção do discurso.

Hopper e Traugott (1993) definem gramaticalização como o processo pelo qual itens e construções lexicais passam, em determinados contextos lingüísticos, a servir a funções gramaticais. Em outras palavras, tal fenômeno é o processo pelo qual um item sai do léxico para entrar na gramática.

A Gramaticalização pode ser considerada, então, como regularidade, convencionalidade, modo de rotinização. Quando uma construção deixa de ser um meio inovador e se transforma em uma estratégia comum, então ela passou a ser considerada pela comunidade lingüística como gramatical.

No dizer de Castilho (1997:31), gramaticalização é:

O trajeto empreendido por um item lexical, ao longo do qual ele muda de categoria sintática (=recategorização), recebe propriedades funcionais na sentença, sofre alterações morfológicas, fonológicas e semânticas, deixa de ser uma forma livre, estágio em que pode até mesmo desaparecer, como conseqüência de uma cristalização extrema.

De acordo com Heine e Rech (1984), “gramaticalização é uma evolução na qual as unidades lingüísticas perdem em complexidade semântica, liberdade sintática e em substância fonética”. Segundo Castilho (1997), esse conceito suscita as seguintes questões: (1) de quais unidades lingüísticas se está falando: lexicais, gramaticais, semânticas, discursivas? (2) de que evolução se está falando: das categorias gramaticais, no plano diacrônico ou na emergência de categorias gramaticais e discursivas, no plano sincrônico? (3) em que consiste a complexidade semântica? Castilho (1997) acrescenta: “Embora já se tenha resposta para algumas dessas questões, outras ainda se encontram em aberto”.

Convém, ainda, citar Traugott (1988), para quem “Gramaticalização se refere ao estudo de mudanças lingüísticas situadas no continuum que se estabelece entre unidades independentes, localizadas em construções menos ligadas, e unidades dependentes, tais como clíticos, partículas auxiliares, construções aglutinativas e flexões”. Comentando o conceito proposto por Traugott, Castilho (1997) afirma que o debate sobre gramaticalização na lingüística contemporânea envolve, principalmente, três vertentes: a da tipologia lingüística, representada por Humboldt

(1822); a da mudança lingüística, representada por Meillet (1912) e por Benveniste (1968); e a da sintaxe conversacional, representada por Hodge (1970) e Givón (1971, 1979, 1984).

Entre os representantes da primeira corrente, salientamos o nome de Humboldt (1822), para quem a significação das formas gramaticais sofre uma mudança em quatro estágios, já citados anteriormente.

A segunda corrente, a da mudança lingüística, tem como representantes Meillet (1912) que, como já dissemos, considera a gramaticalização e a analogia os dois principais processos de mudança gramatical, distingue criação e renovação gramatical e propõe a existência de três classes de palavras: as principais, as acessórias e as gramaticais. Indica que há uma transição gradual entre essas classes e denomina esse processo de “gramaticalização”, que, como já apresentamos, consiste na “atribuição de um caráter gramatical a um termo outrora autônomo” (MEILLET, 1912, p.139). A partir dessa exemplificação, deduzimos que a gramaticalização é um processo:

diacrônico: a derivação de usos “acessórios” e “gramaticais” a partir de um uso “principal”;

sincrônico: a convivência dos usos assim constituídos num mesmo recorte de tempo. Preferimos, portanto, investigar o processo de gramaticalização a partir de uma perspectiva pancrônica.

Ainda segundo Meillet (1912), o processo de agregação de um demonstrativo a um nome é extremamente produtivo, mas não conduz à gramaticalização. Trata-se da criação de um item lexical, o que não traz interesse ao estudo sobre gramaticalização.

Na vertente da mudança linguística, Castilho situa também Kurylowicz (1965), que definiu a gramaticalização como ampliação dos limites de um morfema que avança do léxico para a gramática ou de um nível menos gramatical para um outro mais gramatical. Ao gramaticalizar-se, o item perde substância semântica e fonológica, passando a se comportar como um morfema: dependente (os auxiliares) ou preso (os afixos derivados de um morfema livre).

Por outro lado, o gerativista Roberts (1933) vê a gramaticalização como a mudança de uma categoria lexical para uma categoria funcional, associada à perda do conteúdo lexical. Ele apresenta os seguintes estágios para os verbos:

Verbo pleno > construção predicativa > forma perifrástica > aglutinação

Para os formalistas, como Robert, a gramaticalização é um fenômeno diacrônico que consiste no desenvolvimento de núcleos lexicais em núcleos funcionais. Esse desenvolvimento estaria encaixado na teoria da marcação, de caráter mais amplo, no aprendizado da língua e na mudança lingüística em geral, sendo essa última essencialmente randômica do ponto de vista da Gramática Universal. Uma conseqüência é que a irreversibilidade dos fenômenos tratados como gramaticalização seria apenas aparente. Outra conseqüência é que as propriedades da gramaticalização depreendidas por Lehmann (1985) (cf. sessão 2.4) decorreriam do caráter imanente de um primitivo da Gramática Universal: a existência de categorias funcionais, que, por definição, não possuem estrutura argumental nem outras propriedades semânticas, sendo por isso resultantes, diacronicamente, de categorias lexicais empobrecidas fonética e semanticamente (ROBERTS & ROUSSOU, 1999, p.23).

Como é de se esperar, a abordagem formalista da gramaticalização entra em conflito com a abordagem funcionalista quanto a questões basilares. Aqueles criticam os funcionalistas por sua insistência em relação à continuidade e direcionalidade da mudança tratada como gramaticalização. Já os funcionalistas criticam os formalistas por ignorarem o desafio que os dados do contexto de gramaticalização parecem colocar aos modelos que assumem a descontinuidade.

Para os funcionalistas, a premissa de que a estrutura da língua é independente do uso deve ser rejeitada. Segundo Bybee & Hopper (2001:1-3), alguns lingüistas começaram a pensar a estrutura da língua (a gramática) como uma resposta a necessidades do discurso, e a considerar seriamente a hipótese de que a gramática vem através da repetida adaptação de formas do discurso vivo. Situam-se nesta perspectiva Hopper (1979), Givón (1979, 1983), Hopper e Thompson (1980, 1984), Du Bois (1985), entre outros.

Um conceito central seria o de emergência (Hopper 1987, 1988, 1993), entendido como processo de estruturação em andamento. A noção de emergência constitui uma ruptura com as idéias padrão sobre gramática, na medida em que concebe a estrutura, como uma resposta em andamento a pressões do discurso e não como uma matriz pré-existente. Para dar conta da estrutura gramatical e fonológica é necessário ter em conta o modo pelo qual a freqüência e a repetição afetam e, em última instância, contribuem para a forma da língua (Bybee, 1985).

Portanto, para os funcionalistas, a rejeição das noções de categoria e estrutura como primitivos, a atribuição de um papel central ao uso e, conseqüentemente, à freqüência seriam as balizas do debate sobre gramaticalização. É no interior dessas discussões que situamos nosso objeto de estudo, pois os diferentes usos de chegar indiciam estágios do processo de gramaticalização.