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2. GRAMATICALIZAÇÃO

2.4. Princípios de Gramaticalização

2.4.1. O Princípio da Unidirecionalidade

Uma das questões que geram controvérsias no debate sobre gramaticalização é o princípio da unidirecionalidade33. Dada a importância dessa discussão para os estudos sobre o processo de gramaticalização, faz-se necessário tecer aqui alguns comentários, expondo, de forma sucinta, o que a literatura da área apresenta sobre o assunto.

Ao observarmos as etapas de gramaticalização bem como os exemplos desse processo apresentados na literatura, percebemos que as formas candidatas à gramaticalização seguem uma trajetória cíclica, cuja direção é da esquerda para a direita. Esse deslocamento de uma direção à outra sem possibilidade de reversão constitui uma das características da gramaticalização: o princípio da unidirecionalidade.

Esse princípio é defendido por Hopper e Traugott (1993), que assumem que há uma relação entre dois estágios A e B, de forma tal que o estágio A é sempre seguido pelo estágio B, mas o contrário não se verifica, o que implica dizer que não haveria “desgramaticalização”.

Heine, Claudi, Hünnemeyer (1991) também sustentam a unidirecionalidade ao apresentarem a trajetória do concreto para o abstrato. Para os autores, compreendemos o mundo das idéias em função do mundo concreto; em outras palavras, o nosso pensamento inicialmente trabalha com conceitos adquiridos pelo contato com o mundo concreto para depois expressar conceitos mais abstratos. O ponto de partida é o ser humano e as etapas do processo seguem uma escala de abstratização crescente:

PESSOA > OBJETO > ATIVIDADE > ESPAÇO > TEMPO > QUALIDADE

Os que advogam a favor do princípio da unidirecionalidade afirmam não ser possível a ocorrência de casos de reversão. Assim, as categorias maiores, mais concretas, portanto, originariam as categorias menores, mais abstratas, mas uma categoria menor não poderia ser a responsável pelo aparecimento de uma classe maior, pois, para isso, teria que seguir uma direção inversa de mudança. Lembremos a escala de mudança de Givón:

Discurso > sintaxe > morfologia > morfofonêmica > zero

Hopper, Heine et alii e todos que defendem o ‘cline canônico’ entendem a unidirecionalidade como uma condição necessária para se identificar o processo de gramaticalização, e dizem serem raros os casos de não-unidirecionalidade.

Mas há quem considere a unidirecionalidade como “algo secundário para o processo e que pode ser afetado por mudanças locais, por idiossincrasias e por fatores sociolingüísticos” (GALVÃO, 2001). Em alguns trabalhos como o de Poggio (1999, 2000), encontramos alguns fatos que sugerem a não-unidirecionalidade. Mattos e Silva (2002) ao se referir ao trabalho de L. Vitral e J. Ramos (1999), diz ser clara a não-unidirecionalidade do você, expletivo. Diz a autora:

A trajetória Vossa mercê > você > ocê > cê permitiu a J. Ramos defender o caráter clítico de cê. Mas no artigo de 1999, detectou que não é o cê que é o expletivo, mas você. Expletivo não é mais gramaticalizado que o clítico? (VITRAL E RAMOS, 1999,55)

Campbell (2001)34 afirma haver contra-exemplos à unidirecionalidade, o que implica não ser esta uma propriedade definidora da gramaticalização. A direção que seguem as mudanças gramaticais é explicada por outros tipos de mudança fonológica, semântica e a reanálise que ocorrem nas línguas.

Não negamos os contra-exemplos, mas julgamos que esses contra-exemplos, registrados em poucos números, não invalidam o processo de unidirecionalidade, cujas evidências podem ser observadas nos planos fonológico, morfológico e sintático. Além disso, entendemos, conforme já mencionamos nesta tese, que as mudanças ocorrem de categorias cognitivas mais concretas, mais próximas ao indivíduo, para categorias cognitivas mais abstratas, mais distantes do indivíduo, e não ao contrário, o que implica que as mudanças são unidirecionais.

Sobre o assunto, Castilho (2002, p. 01) propõe a substituição do “princípio da unidirecionalidade pelo da multidirecionalidade”. O lingüista apresenta, inicialmente, os argumentos dos defensores da unidirecionalidade e argumenta em favor de uma “teoria dinâmica da língua”, ou seja, a tese de que as línguas são multissistemas que podem ser representados em forma radial.

Castilho (1997, p. 57) argumenta que há poucos exemplos de desgramaticalização, mas apresenta alguns. Ei-los:

(1) A nominalização de alguns sufixos configuraria um caso de desgramaticalização: uma forma presa torna-se livre, como Port. “os ismos da ciência tal”, em que o morfema derivacional {-ismo} se transforma num Nome, com o sentido de “tendência, direção”, Inglês/Espanhol, bus “ônibus” que resultou da nominalização do morfema

flexional latino{-bus}, destacado da palavra omnibus, “para todos”, passando a designar o veículo de uso coletivo.

(2) A perda da “gramaticalidade” de constituintes de palavras, obrigando o usuário a duplicá-los, seria outro caso de desgramaticalização. Exemplos disto foram dados anteriormente, a propósito da repetição da mesma Prep. numa perífrase preposicional. No Port., é bem conhecido o caso da forma medieval migo, que já continha a preposição com (cf. Lat. mecum, de cum + me> Port. migo), e que passou de novo a admiti-la na forma atual comigo. Parece bem evidente que a perda do poder relacional das Preps. E conseqüente repetição do item seria melhor descrita como uma regramaticalização.

Entendemos que, por concebermos a gramática como emergente e em constante movimento, é possível um elemento em processo de gramaticalização ou já gramaticalizado originar mais de uma cadeia de mudança. Mas, em cada uma dessas cadeias, poderíamos flagrar as mudanças unidirecionalmente.

Resumindo o que foi exposto sobre gramaticalização, entre conceitos, etapas e princípios, podemos concluir que, ao estudar tal fenômeno, devemos dar ênfase ao discurso, pois, na visão de Hopper, é nos contextos discursivos e por meio de motivações interacionais que podemos identificar possíveis tendências de gramaticalização.

A esta visão de Hopper, soma-se a de outros lingüistas também preocupados com o mesmo processo de mudança lingüística, tal como Heine (1993), para quem a organização da língua é o resultado de processos cognitivos, nos quais estão envolvidos alguns importantes mecanismos.

Por considerarmos que tantos processos cognitivos quanto comunicativos subjazem ao uso da língua, adotaremos, nesta pesquisa, a combinação das duas visões expostas acima.

A seguir, discorreremos, brevemente, sobre dois dos processos cognitivos envolvidos na gramaticalização: a Metáfora e a Metonímia.