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Breve histórico da Redução de Danos no Brasil e em Santa Maria/RS

Na década de 1980, uma nova doença – a Síndrome da Imunodeficiência Adquirida (Aids) – chega ao Brasil. Desde então, diferentes discursos compuseram o quadro de definições da Aids no país. De religiosos a biomédicos, a explosão discursiva sobre a doença vem sendo alimentada há quase três décadas.

O início da epidemia no Brasil foi marcado pelos discursos religiosos e conservadores. Diariamente, pastores, padres e sacerdotes de várias igrejas sustentavam que a Aids seria uma espécie de ‘taça da ira de Deus sobre o homem’. Uma ampla aliança entre igrejas cristãs, católicas e protestantes agia na promoção da sexualidade heterossexual e monogâmica como único modelo para “salvar-se” do mal que acometia os gays (PERLONGHER 1986).

As respostas religiosas davam o tom do início da epidemia no Brasil. Os gays, um dos grupos mais afetados, eram acompanhados por outros “pecadores”, formando o grupo chamado de os 4H’s: homossexuais, usuários de drogas injetáveis (heroin-

adictions), hemofílicos e haitianos. Os homossexuais e os usuários de drogas, por serem os mais acometidos, de acordo com os dados epidemiológicos, foram classificados inicialmente pela biomedicina como grupos de risco13. Também os mais culpabilizados pela sociedade, nacional e internacionalmente.

Com o passar dos anos, a medicina lançou mão da categoria vulnerabilidade14 para os estudos e intervenções no âmbito do HIV/Aids. O público homossexual ocupou lugar de destaque no que diz respeito à prevenção ao HIV e à participação nas discussões sobre as políticas de saúde e, em meados da década de 1990, em várias cidades do Brasil, tiveram início as práticas em Redução de Danos (RD).

No que se refere à prevenção ao HIV/Aids, essas práticas consistiam na entrega do kit redução de danos a pessoas que faziam uso de drogas injetáveis, com o objetivo de evitar o compartilhamento de agulhas e seringas durante o ritual de uso. O kit, em geral, era composto por seringas, agulhas, água destilada, lenço umedecido em álcool, copo dosador, garrote, preservativo masculino e material informativo sobre as formas mais seguras de uso de substâncias psicoativas pela via intravenosa e sobre como acessar alguns serviços de saúde. Contudo, as práticas não eram direcionadas apenas às pessoas que usavam drogas, já que a rede de interação social dessas pessoas apresentava potencialidade de ampliar o cuidado e a escuta nas questões que envolvem o uso de drogas.

A proposta do Ministério da Saúde (MS) era que o trabalho em RD fosse realizado especialmente por um público específico, por meio de projetos e programas que reúnem

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Grupo de risco é elemento derivado da nomenclatura epidemiológica (fator de risco) e diz respeito a um conjunto de atitudes que tornam esse ou aquele grupo mais suscetível à infecção pelo HIV.

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O termo vulnerabilidade compreende a união de, basicamente, três fatores: o comportamento pessoal ou a vulnerabilidade individual; o contexto social ou a vulnerabilidade social e; a vulnerabilidade programática ou as respostas dos organismos nacionais ao controle da epidemia (MANN; TARANTOLA; NETTER, 1993).

[...] um elenco de ações desenvolvidas em campo por agentes comunitários de saúde especialmente treinados (denominados ‘redutores de danos’ ou simplesmente ‘redutores’) que incluem a troca e distribuição de seringas, atividades de informação, educação e comunicação (IEC), aconselhamento, encaminhamento, vacinação contra a hepatite e outras ações (BRASIL, 2001, p. 12-13).

Em meados dos anos 1990, quando surgem os primeiros Programas de Redução de Danos (PRD’s) no Brasil, pode-se dizer que havia um consenso entre os técnicos da saúde de que para ser redutor de danos era importante que a pessoa fizesse ou já tivesse feito uso de alguma droga e conhecesse a comunidade onde iria desenvolver o trabalho. Vários PRD’s foram compostos por agentes redutores de danos com essas características que, naquela época, formavam o “perfil do redutor”. Com o passar dos anos, o “fazer campo”15 mostrou que o redutor de danos não precisava ser, necessariamente, um usuário ou ex-usuário de drogas e nem morar na comunidade onde desenvolveria o trabalho de RD. O que era fundamental para ser um redutor de danos passou a ser a capacidade de criar vínculos, de realizar uma boa escuta16, ou seja, “ter a manha”, gíria utilizada por alguns redutores de danos referindo-se à habilidade de abordagem que consistia em saber se aproximar das pessoas, tratá-las bem, escutá-las e não as perceber como perigosas.

Para a realização do trabalho em Redução de Danos, são necessários deslocamentos e atuação de profissionais junto às comunidades que carregam o rótulo de “marginalizadas” ou “periféricas”, enfim, moradores de bairros populares, onde as redes de narcotráfico e criminalidade convivem com redes policiais, domésticas, escolares. Lugares em que o narcotráfico e a criminalidade se incorporam às dinâmicas cotidianas da vida, tramando as paisagens do legal e do não legal, do autorizado e do clandestino e tudo o que se passa entre. Esse trabalho de deslocamento e atuação

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No universo da Redução de Danos, fazer o campo significa o deslocamento dos trabalhadores até as vilas e bairros do município que atuam para a entrega do Kit de Redução de Danos e criação de vínculo com as pessoas do local. Essa prática será abordada nas próximas páginas desse trabalho.

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Quando uso a terminologia “escutar”, busco me aproximar da proposta de Luzeni Regina Gomes Leitão (1995) em seu texto “Não basta apenas ouvir, é preciso escutar”: Para acolher a fala no seu poder mais próprio é necessário deixar-se afetar e atravessar por ela. É preciso que a fala transforme o outro que está escutando não no sentido de convertê-lo, mas no intuito de transfigurá-lo para uma instância onde a expressão possa ser apreendida (Revista Saúde em Debate, junho de 1995).

nessas comunidades é chamado “fazer o campo”, o que exige descortinar paisagens sociais e cartografar o uso de drogas nesses cenários. Para tanto, é necessário percorrer caminhos, becos, casas desconhecidas e colocar-se em relação com o outro que habita esses territórios. Para cumprir o objetivo concreto de trocar seringas sujas por limpas e potencializar algum cuidado em saúde, são necessárias muitas outras trocas. Tarefa que não é nada fácil.

As práticas realizadas por agentes redutores de danos diferem do trabalho desenvolvido por agentes comunitários de saúde – ACS. O trabalho dos ACS’s é realizado em um território delimitado, onde são visitadas todas as casas de uma determinada área. Além disso, é realizado um acompanhamento à família inteira e, no final, preenchido um formulário que deve ser assinado pelo morador daquela casa.

Já os agentes redutores de danos chegavam a um local, bairro ou vila de Santa Maria e, ao invés de entrar em todas as casas, conversavam com quem estava disponível. A disponibilidade era avaliada por meio da expressão facial de quem estava em frente à casa, embaixo de uma árvore, na calçada de um bar, tomando cerveja ou em uma rodinha de chimarrão. Após algumas conversas, observavam se algumas pessoas eram receptivas ou davam abertura a eles. Algumas se tornavam próximas, sendo consideradas amigas do Programa Redução de Danos e, então, eram visitadas em suas casas. Não raro, atravessava-se a cidade para ir à casa de uma ou duas pessoas que se responsabilizavam por entregar material na sua região e disseminar a proposta da Redução de Danos.

4.2 Notas sobre o processo de constituição das equipes do PRD de Santa