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2 UMA ANÁLISE TEÓRICA CONTEMPORÂNEA SOBRE A

2.2 Breves considerações acerca dos modelos apresentados

A partir dos modelos apresentados no item anterior é possível tecer algumas considerações a título de arremate sobre o tema da racionalidade de nossos tempos.

A primeira observação cabível é de que nenhum dos autores ocupou-se de fornecer um modelo cunhado a partir de um viés pura ou preponderantemente procedimental. Em todos os modelos apresentados, apesar de os autores apontarem para a decisão judicial, o foco está fortemente arraigado num dos elementos estruturais da decisão, qual seja, a premissa maior do silogismo, a lei, que historicamente demonstrou trazer infindáveis problemas de ordem semântica e pragmática.

Não há dúvidas quanto ao fato de que o adequado preenchimento da carga de significações possíveis dos enunciados prescritivos integrantes do sistema jurídico mostra-se como atividade de imensa importância, mas a racionalidade jurídica não se esgota nesta tarefa de atribuição de sentido, isto é, o problema não se esgota no plano da normatividade. O horizonte da desejada racionalidade está mais além. A questão deve ser enfrentada no plano da facticidade jurídica, ou seja, é no plano da aplicação do direito que a racionalidade se converterá em problema efetivo, já que o julgador atribuirá ao sistema de direito posto o grau máximo de densidade normativa promovendo o encontro da dimensão normativa do fenômeno jurídico com a dimensão da experiência interferindo efetivamente na órbita dos direitos dos cidadãos, e assim, determinando novos rumos nas vidas das pessoas entrelaçadas juridicamente, bem como para o restante do auditório que adota os julgamentos de casos concretos como paradigmas comportamentais.

Assim, se a atribuição de um arcabouço de significações a um determinado enunciado prescritivo traduz uma decisão (interpretação), a decisão judicial não se resume a esta. A interpretação dos enunciados prescritivos deve obedecer aos critérios de racionalidade, mas a sentença ou o acórdão também devem estar balizados pelos referidos critérios, na medida em que trazem em si a porção prescritiva do enunciado individual e concreto, materializando a experiência jurídica em sua inteireza fenomênica.

De nada adiantaria a construção de uma interpretação brilhante acerca dos conteúdos semânticos de um determinado enunciado prescritivo, se no curso do processo, ou seja, se na fase preparatória do provimento fossem desrespeitadas regras processuais básicas como, por exemplo, aquelas atinentes a oitiva de testemunhas ou as relativas a publicidade dos atos processuais. Da mesma forma, de nada adiantaria o exaurimento da atribuição de

sentido aos enunciados alocados na base normativa de uma decisão, acompanhado de absoluto respeito aos preceitos de índole processual, se a decisão entregue fosse absolutamente divorciada deste histórico que a antecedeu. Desta forma, o produto da somatória da interpretação dos enunciados eleitos para ocupar o posto de premissa maior do silogismo, bem como, o absoluto respeito às regras de tramitação processual, devem estar enunciadas no resultado deste complexo processo de produção do enunciado prescritivo individual e concreto denominado decisão, para que seja possível a aferição e a controlabilidade de sua racionalidade, e assim, esteja garantida a efetividade do direito fundamental a justificação racional das decisões judiciais.

Restou demonstrado linhas acima que em nosso tempo não mais é possível apartar do fenômeno jurídico, nem a complexidade, nem a contingência. A interminável possibilidade do novo e a constante possibilidade da frustração das expectativas não podem converter-se em motivo para que o fenômeno jurídico caia na vala nefasta do relativismo pleno ou do anarquismo metodológico (CARVALHO, 2008, p. 160).

Considerando assim que complexidade e contingência devem interferir e de fato interferem na produção de conhecimento sobre o mundo circundante, há de se considerar que às vezes aquilo que para um sujeito caracteriza um irretorquível julgamento, para outro traduz absoluta teratologia. Neste sentido, o problema está no ponto de partida para a observação, análise e crítica da decisão. O problema persiste porque o viés adotado é individualista, e enquanto a análise fincar-se no padrão subjetivo individual, aquilo que para um “é”, não necessariamente o “será” para o outro. A possibilidade de convergência de opiniões é extremamente reduzida e o dissenso induz à crença de que os sujeitos relacionados estão agindo sem razão.

Não há mais espaço para aquela idílica racionalidade puramente objetiva, é dizer, uma observação pura, capaz de atingir a essência do objeto observado, independentemente dos preconceitos e convicções pessoais do sujeito cognoscente. Hoje tem lugar uma nova racionalidade que deve poder ser controlada e criticada pelos vários sujeitos cognoscentes integrantes do auditório que estará direta ou indiretamente interessado na decisão lançada, por habitar simultaneamente as subjetividades relacionadas, que compartilham de um mesmo padrão perceptivo cognoscente submetidos a uma tensão dialética, e que buscam compartilhar aquilo que conseguem apreender do objeto cognoscível sem a pretensão da plenitude da

objetividade pura. Atualmente aspira-se por uma racionalidade portadora de propensão a objetividade.

Demais disso, se fatalmente as subjetividades integrarão os juízos manifestados nas decisões judiciais, o que se espera é que estas não preponderem. A aspiração é de que o juízo ingresse no plano jurídico portando acentuada nota de alteridade, isto é, de consideração do outro, além do sujeito construtor e prolator do juízo.

Para encerrar, há de se ter em conta que integra a aspiração de racionalidade a possibilidade de controlabilidade pública dos fundamentos do juízo expedido. Equivale dizer, espera-se que aquele que tem a função de decidir decline expressa e sinceramente as suas razões de decidir, e que aqueles encarregados de revisitar estas razões respeitem a impulso recursal e efetivamente exerçam efetivo controle sobre aquelas razões, novamente declinando as razões de decidir desta segunda manifestação de juízo.

É importante ressaltar ainda, que aqui não está sendo proposto um modelo procedimental para a formulação de decisões judiciais. Longe disso. O que integra o escopo do presente escrito é a simples sistematização de critérios a serem utilizados na aferição da racionalidade do produto do procedimento decisório. Como o juiz deve elaborar o texto que enuncia uma decisão, isto é um enfoque não alcançado por esta dissertação. Se quem decide prefere primeiro passar pela lei, para em seguida descer aos fatos, para que assim seja possível vislumbrar as consequências jurídicas imputáveis à relação conflituosa; ou se diante das argumentações apresentadas pelos advogados, o juiz cria uma “pré-decisão”, que será então submetida a um teste de refutabilidade sistêmico (ATIENZA, 2006, p. 23); tudo isso não vem ao caso. O que importa para este texto frise-se, é criar condições de analisar o produto das reflexões do julgador sobre determinado problema que lhe foi submetido à apreciação e aferir se este produto é racional ou não. Em síntese, o foco é o texto final da decisão e não o procedimento de sua formulação.