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Capítulo 1. Um patrimônio, várias dimensões

1.2. Breves considerações sobre a noção de patrimônio

O título de patrimônio concedido à cachaça em alguns estados brasileiros mostra a diversidade de contextos que essa categoria de pensamento pode definir e como ela é acionada por diferentes grupos ou instituições.

De acordo com José Reginaldo Gonçalves (2007), utiliza-se a categoria

patrimônio para designar bens de variada natureza, o que faz do conceito algo bastante

familiar ao moderno pensamento ocidental, embora já estivesse presente nas sociedades tribais e no mundo clássico. Fala-se em patrimônios econômicos e financeiros; imobiliários; sejam eles de empresa, de um país, de uma família ou indivíduo; patrimônios culturais, arquitetônicos, históricos, artísticos, genéticos, etc. A amplitude do emprego do termo na vida social e mental de qualquer coletividade humana exprime a importância que a ideia alcança para além das modernas sociedades ocidentais.

Entretanto, se modernamente patrimônio significa o colecionamento de bens apropriados e expostos por determinados grupos sociais, demarcando um domínio subjetivo diante de outros, este não é o único significado possível:

A literatura etnográfica está repleta de exemplos de culturas nas quais os bens materiais não são classificados como objetos separados dos seus proprietários. Esses bens, por sua vez, nem sempre possuem atributos estritamente utilitários.

43 Em muitos casos, servem a propósitos práticos mas possuem, ao mesmo tempo, significados mágico-religiosos e sociais. (Gonçalves, 2007:110)

Nessa perspectiva, patrimônio pode ser considerado como extensões morais de seus proprietários sem uma demarcação de fronteiras definidas: possui ao mesmo tempo natureza econômica, religiosa, política, jurídica, estética, psicológica, fisiológica; o que Marcel Mauss definiu como “fatos sociais totais” (Gonçalves, 2007).

A cachaça vem sendo apropriada como patrimônio, contemporaneamente, por diferentes grupos e com significados distintos. Nos museus da cachaça de Paty do Alferes (RJ)45 e de Lagoa do Carro (PE)46, talvez os mais antigos, é principalmente o sentido da coleção de garrafas da bebida, de diversas regiões, que forma o patrimônio privado dos seus respectivos proprietários. Novos museus vêm sendo fundados atualmente, como, por exemplo, o Museu da Cachaça de Salinas (MG) 47, com outros significados que merecem ser analisados, em outro trabalho, diante do atual momento em que se encontra a produção e o consumo da cachaça.

Para os agentes envolvidos nas patrimonializações estaduais, a cachaça como patrimônio vincula-se, também, à ideia de elencar os bens culturais ou históricos de seus estados.

Além desses significados, é comum que os produtores de cachaça artesanal (ou de alambique) reivindiquem modos especiais de produzir a bebida, aprendidos por antepassados, o que também pode configurar uma noção de patrimônio sob a ótica do objeto como extensão dos seus proprietários. Como exemplo podemos citar a história da cachaça Coqueiro, de Paraty (RJ), elaborada pelos próprios produtores:

A Cachaça Coqueiro consagra quase cinco séculos da arte paratyense de fazer cachaça, alquimias e segredos transmitidos entre gerações e famílias da terra.

45 Fundado em 1991. Sobre o Museu da Cachaça de Paty do Alferes ver:

http://patydoalferes.rj.gov.br/pontos-turisticos/museu-da-cachaca/. Acesso em 14/01/2017.

46 Fundado em 1998. Sobre o Museu da Cachaça de Lagoa do Carro ver reportagem da Rede TV! News,

disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=CGYKpRdGfsA. Acesso em: 15/01/2017.

47 Sobre o Museu da Cachaça de Salinas ver artigo do site Mapa da Cachaça. Disponível em:

44 Ela é produzida por Eduardo Mello, herdeiro de uma sabedoria nascida no século XVIII, quando seus ancestrais já destilavam a alma da cana de açúcar. Alambiqueiro de talento, apaixonado pelo ofício de inventar cachaça, que aprendeu com o seu pai, o mestre Antônio Mello, e com o seu avô, o legendário José Mello, criador de pingas eternas, Eduardo Mello é estudioso, dedicado, se empenhando, a cada dia, no aprimoramento da deliciosa Coqueiro, uma pinga com caráter e personalidade.48

No debate sobre patrimônio, Mariza Veloso (2006) levantou a problemática que compreende o que seria o objeto coisificado, refletindo o quadro de mercantilização da cultura. Para a autora, há um risco de

(...) transformar o patrimônio material em expressão de uma história rasa; ou, ainda, transformar as manifestações culturais do patrimônio imaterial em fetiche, ou seja, privilegiar o produto transformado em objeto de consumo como qualquer outra mercadoria que circula na sociedade atual. (Veloso, 2006:439).

As preocupações de Veloso podem ser inseridas nos contextos em que se separaram as dimensões materiais e imateriais do objeto. Nos discursos contemporâneos do Brasil, o conceito de patrimônio imaterial passou a ser usado em oposição à antiga noção de patrimônio de pedra e cal: enquanto esta exprime uma concepção mais tradicional que valoriza grandes edificações e monumentos, aquele reúne lugares, festas, religiões, músicas, danças, culinárias e técnicas (Gonçalves, 2003).

Para Marisa Veloso, privilegiar o produto transformado em objeto de consumo pode desconectá-lo das suas significações, de seus contextos elaborados por grupos específicos. Entretanto, compreendemos que esses deslocamentos dos usos e apropriações dos objetos também são componentes das vivências históricas e podem ser analisados nas

48 Trecho retirado do site da empresa, disponível em: http://www.cachacacoqueiro.com.br. Acesso em

45 suas transformações de significados. O interessante é identificar as dimensões que esses objetos podem alcançar dentro dos diferentes grupos nos quais estão inseridos, como é o caso da cachaça.

Com o movimento de valorização da bebida nas últimas décadas, seja pela ação dos produtores ou dos agentes ligados às instituições públicas, existe uma seleção do que deve ser valorizado como patrimônio. Mas não se pode esquecer que os usos e significados da cachaça não se restringem ao que foi definido por tais esferas.

A história que liga a produção e o consumo do destilado às vivências de africanos escravizados e do comércio destes, durante a expansão da colonização europeia na África e América, tem pouca visibilidade na divulgação dos significados da cachaça. É preciso considerar a bebida enquanto resultado da diversa experiência humana.