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Breves considerações sobre a filosofia da consciência e a linguagem como um novo

I. 5 – Traços de uma razão intersubjetiva na Filosofia do Direito em Hegel: diálogos

II.1 Breves considerações sobre a filosofia da consciência e a linguagem como um novo

Nos últimos séculos a filosofia alçou investigações profícuas quanto à questão da razão e consequentemente sobre o estudo do conhecimento. Após o surgimento da filosofia na Grécia, um hiato temporal se instalou no seio da formação do pensamento filosófico, no que se refere ao enfrentamento dessas abordagens. Contudo a chama foi reacendida uma vez mais por filósofos como Descartes, passando por Hume, Kant, Hegel, Schleiermacher, Dilthey, Edmund Husserl, Heidegger, Gadamer, e muitos outros. O estudo do conhecimento se tornou uma das grandes questões filosóficas, ora com ênfase na consciência, ora com foco na linguagem ou no existencial.

A compreensão do conhecimento pode ter vias diversas, caso se afirme que a linguagem é apenas um instrumento da consciência, considerando esta a verdadeira produtora de todo conhecimento, ou se for alegado que a linguagem é condição para a própria compreensão, não sendo apenas um instrumento ou um terceiro elemento entre o objeto cognoscível e a consciência do intérprete.

202 SALGADO, Joaquim Carlos. O estado ético e o estado poiético. Revista do tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais, v. 27, n. 2, p. 3-34, 1998, p.22.

79 Dependendo de qual caminho foi escolhido estaremos diante de uma defesa filosófica sobre o tema central de nossa tese: - a subjetividade, ou – a dessubjetivação como modo de acesso a todo e qualquer conhecimento, a partir da consideração da alteridade e tradição como elementos centrais para o desenvolvimento do conhecimento filosófico do Direito.

A filosofia da consciência, considerada como paradigma da subjetividade, foi o ponto de partida para a análise filosófica da linguagem, compreensão e existência em Heidegger, e da hermenêutica filosófica de Gadamer, com a reabilitação da tradição como condição de possibilidade para a compreensão.

A filosofia da consciência, que tem como principais representantes Descartes e Kant, estabelece que o primeiro fato humano é a relação sujeito-objeto, sustentando a ideia de que o sujeito, ao buscar o conhecimento, fundamenta suas decisões numa subjetividade necessária para todo conhecer.203

O cogito ergo sum (penso, logo existo) de René Descartes é a autoevidência existencial do pensamento, isto é, a garantia que o pensamento como consciência tem da sua própria existência.204

Em Descartes, a filosofia da consciência teria como pressuposto o fato de que a racionalidade é do homem, motivo pelo qual seria ele quem encontraria a fonte do conhecimento. Por meio dessa proposta, a racionalidade seria da própria natureza humana, tendo o homem, no seu interior, a possibilidade de conhecimento, mas com a ressalva de que esse conhecimento havia sido deformado pelos erros da tradição.205

Logo, o sentido do subjetivismo cartesiano é recuperar esse conhecimento, através da busca no sujeito pensante da fonte do conhecimento. A doutrina cartesiana apresenta várias características que a tornam relevante para o estudo da consciência. Por esse projeto, a consciência não é um evento ou um grupo de eventos particulares, mas sim toda a vida espiritual do homem, desde sentir até raciocinar e querer.

Trata-se, portanto, da esfera do eu como sujeito ou substância pensante, em que a consciência é a autoevidência existencial do eu. É exatamente essa autoevidência existencial do

eu que é o fundamento de qualquer outra evidência, isto é, de todo conhecimento válido. Assim,

203 RIBEIRO, Eduardo Ely Mendes. Individualismo e verdade em Descartes: o processo de estruturação do

sujeito moderno. Edipucrs, 1995, p.82.

204 ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. Trad. Alfredo Bosi; Ivone Castilho Benedetti. 6. ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2012., p. 219.

205 MARCONDES, Danilo. Iniciação à história da filosofia: dos pré-socráticos a Wittgenstein. 13. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2010, p. 169.

80 foi o conjunto de todas essas premissas, principalmente a consideração da esfera do eu como

sujeito pensante, que determinou a corrente subjetivista dessa filosofia.206

Logo, a partir de Descartes a noção de consciência passou a ter as características em razão das quais seria universalmente acolhida na filosofia ocidental. As teses de Descartes inserem-se, indubitavelmente, no racionalismo ou corrente filosófica racionalista.

Como esclarece Maritain, os racionalistas:

[...] opinan que la verdad es fácil de ser alcanzada; por este motivo pretenden 'someter todas las cosas al nivel de la razón', de una razón humana que no tendría necesidad de ser humilde y pacientemente disciplinada, sea que esta disciplina nos la imponga la realidad misma, um maestro, o Dios. En primer lugar estos filósofos tienden al subjetivismo, que toma por regla de la verdad al sujeto que conoce y no a la cosa objeto del conocimiento, disolviendo así el conocimiento mismo; tienden, en segundo lugar, al individualismo, que pide a cada filósofo la tarea de rehacer la filosofía según su particular punto de vista personal y crear una concepción del mundo (Weltanschauung) original e inédita; en tercer lugar, tienden al naturalismo, que pretende llegar con las solas fuerzas de la naturaleza a una perfecta sabiduría, y rechaza toda enseñanza divina.207

René Descartes, no século XVII, foi, portanto, quem iniciou o racionalismo modernamente, dele dependendo, entre outros, Spinoza e Leibniz. Mas Kant, no século XVIII, foi quem consumou a revolução cartesiana, além dos idealistas, Fichte, Schelling e até em boa medida Hegel, que mais uma vez colocam a consciência e o sujeito como pontos centrais em suas investigações filosófica. Nos últimos tópicos tratamos, em especial, o tema da subjetividade e da alteridade a partir do pensamento de Kant e Hegel, portanto não vamos nos alongar nesse tópico em relação a tais autores. Essas breves considerações nos servem apenas para abrirmos caminho para as críticas estabelecidas pelos autores nos próximos tópicos a serem desenvolvidos.

Em suma para as filosofias da subjetividade a validade da verdade se restringe ao sujeito que conhece e que julga. O conhecimento humano dependeria de fatores que residem no sujeito cognoscente.208 Daí, o porquê os conceitos formados pelas filosofias da consciência atribuem

validade universal a seu juízo, estando convencido de que seu juízo está correto e traduz um estado de coisas objetivo, razão pela qual claramente pressupõe a validade universal da verdade. Além disso, a filosofia da consciência que tanto homenageia a noção de subjetividade, carrega consigo ainda noções da filosofia metafísica, fato este que nos remete a tecer uma crítica especial. Isto é, a metafísica é a pretensão a uma verdade absoluta, e isto significa autonegação

206 ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. Trad. Alfredo Bosi; Ivone Castilho Benedetti. 6. ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2012., p. 219-220.

207 MARITAIN, Jacques. Introducción general a la filosofía. Trad. F. Leandro de Sesma. Buenos Aires: Club de Lectores, 1943, p. 156.

208 HESSEN, Johannes. Teoria do conhecimento. Trad. João Vergílio Gallerani Cuter. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 36-37.

81 da finitude humana em parte. Por isso, como se verá adiante, a metafísica é insubsistente ao pensarmos na compreensão como análise existencial, especialmente da forma como foi idealizada por Heidegger.

A superação da filosofia da consciência e da proposta metafísica ocorreu de diversas formas, por meio de formulações distintas teoricamente, mas que, ao final tinham o mesmo objetivo, superar o paradigma209 da metafísica. Evidentemente que superação, não é

aniquilação, daí o motivo pelo qual vários filósofos do século XX e XXI ainda se encontram atrelados à filosofia da consciência e à metafísica.210

Bom, é a partir dessa concepção paradigmática da consciência que surgiu a filosofia de Martin Heidegger, filósofo que irá ocupar os próximos tópicos da presente tese, para que possamos expor as profundas reflexões realizadas por ele sobre este tema.

Heidegger busca superar a noção de consciência de uma forma radical, a partir de uma análise da existência humana que prescinde completamente da noção tradicional de consciência. Portanto, essa eliminação da noção tradicional de consciência decorre da análise realizada por Heidegger acerca da noção de transcendência na análise da relação do homem com o mundo.

Tal transcendência não seria para o homem um mero comportamento entre os outros possíveis, mas sim a própria essência da sua subjetividade, de modo que o termo para o qual o homem transcende é o mundo, que nesse caso não designa a totalidade das coisas naturais ou a comunidade dos homens, mas a estrutura relacional que caracteriza a existência humana como transcendência.211

Essa mudança de rumos da filosofia através da hermenêutica da facticidade (Heidegger) e da hermenêutica filosófica (Gadamer), não tem mais como objetivo problematizar sobre a verdade dos juízos válidos, mas sim sobre a questão do sentido (ontologia). Abandonou-se a

209 Utilizamos o termo paradigma a partir das noções legadas por Thomas Kuhn. Na “Estrutura das Revoluções Científicas” de Thomas Kuhn, o termo paradigma aparece em proximidade estreita, tanto física como lógica, à expressão comunidade científica. Um paradigma é o que os membros de uma comunidade científica, e só eles, partilham – não sendo possível a posse de um paradigma por um indivíduo isolado. Reciprocamente, é a respectiva possessão de um paradigma comum que constitui uma comunidade científica, formada, por sua vez, por um grupo de homens diferentes em outros aspectos. Em seu livro A Tensão Essencial (1977, p. 354), Kuhn esclarece que podemos resumir os sentidos de paradigma em dois: “um sentido de paradigma é global, abarcando todos os interesses partilhados por um grupo científico; outro isola um gênero particularmente importante de interesse, e é assim um subconjunto do primeiro”. O primeiro sentido é relativo ao que Kuhn chamou de “matriz disciplinar” (1977, p. 358) e o segundo ao que denominou de “exemplar” (1977, p. 358-59). Ver: KUHN. T. A tensão

essencial. Lisboa: Edições 70, 1977. Obra original: The essential tension. University of Chicago Press, 1977.

210 Podemos exemplificar com os seguintes pensadores: Miachel Polanyi (1891-1976) e a consciência como atenção focal e subsidiária, Bernard Lonergan (1904-1984) e a consciência como experiência e operação, Paul Ricoeur (1913-2005) e a consciência como campo hermenêutico, além de muitos outros filósofos.

211 ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. Trad. Alfredo Bosi; Ivone Castilho Benedetti. 6. ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2012., p. 224.

82 problematização em torno da: - essência ou natureza das coisas; -assim como suas representações ou conceitos da consciência.

Para tanto, a linguagem se torna um ponto central das investigações filosóficas. A virada filosófica rumo à linguagem não é apenas, nem prioritariamente, a descoberta de uma nova área de estudo filosófico, mas, especificamente, uma virada da própria filosofia, acompanhada da modificação da forma de entendê-la.

Outro detalhe é o caráter transcendental que a linguagem assume: ao se considerar o caráter transcendental da linguagem, resta superada a teoria objetivista, instrumentalista ou designativa da linguagem, porque se coisas, atributos, propriedades etc. "não nos são dados sem a mediação linguística, é um absurdo querer determinar a significação de expressões linguísticas pela ordenação de palavras a realidades por meio de convenções."212

Mais à frente iremos retomar essa questão do deslocamento da linguagem do plano instrumental, para um plano transcendental de qualquer experiência no mundo.213 Passaremos

agora para o estudo de Martin Heidegger.